Pronunciamento de Sérgio Vieira de Mello (em 21/11/2002), então à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no seminário “Visões para o futuro das comunicações”, realizado em Viena, de 20 a 24 de novembro de 2002, por ocasião do décimo aniversário da instalação do centro de operações do International Press Institute (*) na capital austríaca. Título e intertítulos da redação do OI.
Sr. presidente, diretores e integrantes dos comitês nacionais do International Press Institute (IPI), representantes das organizações pela liberdade de imprensa, senhoras e senhores.
Sinto-me honrado em lhes falar esta noite por ocasião do 10? aniversário da sede em Viena do International Press Institute. Começo parabenizando o International Press Institute e todos os seus componentes por esta ocasião. Agradeço ao Ministério do Exterior da Áustria por patrocinar esta noite. Sei que a chanceler, Sra. Benita Ferrero-Waldner, falará a vocês amanhã, e esse discurso, como o de boas-vindas proferido hoje pelo presidente da Áustria, Sr. Thomas Klestil, simboliza a importância dada à liberdade de opinião e da mídia pelas autoridades e o povo austríacos.
Quando os escritórios do IPI no Spiegelgasse abriram as portas em 1992, muitos de nós estávamos ainda cheios da esperança e do otimismo nascidos com a queda do Muro de Berlim. Uma onda de liberdade parecia varrer partes do mundo que até então conheciam apenas a repressão. Em maio de 1991, por exemplo, jornalistas africanos se reuniram na capital da Namíbia, Windhoek, para um seminário regional de promoção da mídia independente e pluralista [em alusão ao encontro, 3 de maio passou a ser o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa]. A Declaração de Windhoek tornou-se o primeiro de uma série de compromissos, região por região, de apoio à liberdade das pessoas em toda parte de proclamarem sua opinião e terem acesso a uma variedade de fontes independentes de informação.
E, de fato, na década passada a imprensa em muitos países ficou mais independente e pluralista. As transmissões de rádio e TV têm sido liberalizadas. Jornalistas e outros trabalhadores de mídia ficaram mais profissionais. E, graças à internet, mais e mais pessoas ganharam acesso direto aos meios de comunicação de massa. Essas mudanças têm ajudado a estabelecer e a fortalecer a democracia em muitos países, permitindo aos cidadãos que façam escolhas com informação, portanto responsáveis, e que tomem parte nas decisões que moldarão suas próprias vidas e o futuro de seus países.
“Argumento da necessidade”
As aspirações por um mundo mais livre, mais justo que muitos de nós guardamos no coração surgiram a pouca distância daqui, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de 1993. O consenso entre países muito díspares tanto sobre a suprema importância dos direitos humanos quanto sobre sua universalidade e indivisibilidade teria sido impensável apenas poucos anos antes da conferência. Impulsionada pelos ventos da mudança, a assembléia, que criou o posto que tenho hoje o privilégio de ocupar, clamou pelo fortalecimento do império da lei, da regência da justiça e da real e efetiva participação dos povos nos processos decisórios que afetam seu destino. Os líderes mundiais em Viena consideraram a promoção da liberdade de expressão tão importante quanto as demais.
Infelizmente, muitas de nossas esperanças esbarraram na realidade: vastas áreas do mundo mergulharam em conflitos ainda mais complexos, e a mordaça e a repressão apenas mudaram de face e de forma. Os jornalistas e a mídia, entre os beneficiários legais do mais alto nível de respeito aos direitos humanos de que deveríamos usufruir no fim da Guerra Fria, têm freqüentemente encabeçado as listas de vítimas de abuso na última década. Um olhar sobre o “Death Watch” do IPI em qualquer semana é um sóbrio lembrete de que a mídia com muita freqüência paga o preço final por corajosamente fazer seu trabalho, como testemunhei em muitas de minhas missões, inclusive, recentemente, com a perda de um amigo cinegrafista no Afeganistão.
No escritório do Alto Comissariado, temos mantido nossas próprias estatísticas, deprimentes. Fornecemos o apoio essencial ao Relator Especial para a Liberdade de Opinião e Expressão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, atualmente Ambeyi Ligabo, que informa anualmente a situação mundial. O Sr. Ligabo sucedeu Abid Hussain, que em seu último informe antes de deixar o posto observou que o número de queixas anuais continua a aumentar. Em 2001, por exemplo, ele recebeu 1.900 comunicações (aumento superior a 10% em comparação ao ano anterior). No mesmo ano ele enviou 124 “apelos urgentes” em favor de indivíduos em risco iminente de abuso ou que tinham sido vítimas de desrespeito aos direitos humanos.
A maioria dos casos levados ao Relator Especial e ao meu escritório está relacionada a violações e ações contra profissionais de mídia. Parte do problema é a impunidade que de que gozam os infratores. Freqüentemente, a segurança nacional e o “argumento da necessidade” são usados pelas autoridades em muitos países para silenciar e/ou suprimir a mídia independente. Forças hostis e irregulares também visam os jornalistas, como ocorre com as equipes da ONU que denunciam seu comportamento.
Códigos de conduta
Gostaria de deter-me por um momento nas possíveis conseqüências da reação aos ataques terroristas para a liberdade de opinião e de expressão. Ainda que na ordem do dia na seqüência dos terríveis ataques terroristas nos Estados Unidos, no ano passado, na Indonésia e da Federação Russa mais recentemente, a questão sempre foi um dos principais focos do sistema de direitos humanos da ONU. Embora todos reconheçamos o dever dos Estados de proteger-se e a seus povos, se necessário com medidas excepcionais, em alguns casos tais medidas podem resultar numa quebra dos mais fundamentais direitos humanos. Elas podem levar à negação dos princípios pelos quais lutamos tão arduamente, como as sociedades livres com acesso à plena liberdade de expressão e ao direito de divergir. É particularmente importante então que os Estados considerem as implicações nos direitos humanos de qualquer passo que dêem em resposta a esta ameaça; que os direitos humanos estejam no centro de tal resposta, particularmente a liberdade de informação.
Responder ao terror retrocedendo nos direitos humanos arduamente conquistados é entregar a vitória aos terroristas. Não menos perigoso em tal visão é que quando países democráticos empregam atividades que atingem os direitos humanos estão incentivando regimes menos abertos de governo. Em nível internacional, o peso do exemplo, especialmente o de caráter negativo, não deve ser subestimado. As sociedades livres têm portanto uma dupla responsabilidade: proteger os direitos de seus cidadãos e não oferecer comparações fáceis ou pretextos baratos aos que tendem ao abuso de autoridade.
Outra feia conseqüência dos ataques foi a facilidade com que parte da mídia tratou certas crenças, países ou comunidades, com desrespeito, usando perigosas generalizações e estereótipos. Esta tendência, a par do assédio e da violência contra seguidores do Islã, continua a causar profunda preocupação. Felizmente, os casos de mídias canalizando discursos preconceituosos e espalhando animosidade foram exceção, compensados pela cobertura equilibrada e sensível da maioria dos veículos. Precisamos de uma imprensa livre para ajudar a prevenir uma ruptura que pode ter desastrosas conseqüências ao aumentar o potencial das formas extremas de violência. Precisamos identificar as razões deste estado de coisas altamente emocional e, juntos, detê-lo. A mídia tem uma responsabilidade pedagógica.
Isso me leva a outra questão delicada, motivo de tensão e violência, ou seja, o equilíbrio entre os imperativos da liberdade de expressão e a necessidade de conter o discurso do ódio e a incitação ao ódio, particularmente racial, étnico ou religioso. Sei que o IPI manifestou preocupação sobre propostas apresentadas durante os preparativos da Conferência Mundial contra o Racismo no ano passado. A linguagem da minuta criticada pelo IPI, que não foi mantida no documento final, teria estimulado os governos a estabelecer organismos de consulta nacional para monitorar, mediar e auxiliar na preparação de códigos de conduta. A maioria dos delegados da conferência concordou com o IPI, em que as propostas poderiam levar a restrições à independência da mídia e ser usadas em alguns países para reprimir formas de expressão que seriam consideradas legítimas em outros.
Compromisso renovado
Concordo com vocês em que o direito à liberdade de expressão deva permanecer íntegro, e em que esteja longe disso. O Relator Especial declarou que a ênfase em restrições ao direito à liberdade de opinião e de expressão ocorre em todo o mundo. O escopo de proteção no artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [de 1966, só assinado pelo Brasil em 1992] é abrangente e, em geral, a proteção da liberdade é a regra, e sua restrição deveria ser a exceção.
Entretanto, como repete a mídia diariamente em sua cobertura, com o poder vem a responsabilidade. O Pacto também permite que a liberdade de expressão seja limitada se o exercício deste direito resulta na ruptura do direito de outrem. Especificamente, o Pacto determina que os Estados podem interferir na liberdade de expressão proibindo propaganda da guerra e defesa de ódio racial.
Não faltam exemplos de mau uso da mídia no estímulo ao ódio e ao fanatismo. Ruanda, a antiga Iugoslávia ou a retórica talibã vêm logo à mente. É um problema persistente, presente em várias regiões do mundo. Vimos recentemente um fenômeno semelhante na Costa do Marfim. Há obrigações legais internacionais, aceitas pela maioria dos Estados, que proíbem incitação ao ódio racial, religioso e étnico ? não só anti-semitismo ?, e é preciso aderir a elas. O Tribunal Penal Internacional também deveria funcionar como instância dissuasiva e como cão de guarda, pois tais práticas estarão sob sua jurisdição.
Sou de opinião que é preferível envolver a mídia no monitoramento de suas próprias atividades e no fornecimento de treino e recursos aos jornalistas para promover no seu trabalho, de forma simples e sábia, os direitos humanos e a liberdade; e também ajudem os cidadãos a participar plena e produtivamente de suas sociedades. Meu escritório está à disposição para cooperar de todas as maneiras possíveis nestes esforços. Na verdade, em alguns dias estaremos discutindo algumas destas questões num seminário que promoveremos sobre a interdependência entre democracia e direitos humanos. Um dos temas principais do encontro será “A mídia nas democracias: papel, responsabilidades e os direitos humanos”. Não é um tema novo, mas que devemos revisitar, de tempos em tempos, com lucidez, vigilância e compromisso renovado.
Senhoras e senhores, votos de feliz 10? aniversário ao IPI em Viena e sucesso continuado em sua tarefa vital. [tradução: Marinilda Carvalho]
(*) O IPI é uma rede mundial de editores, executivos de mídia e jornalistas de prestígio dedicada à liberdade de imprensa e ao aperfeiçoamento dos padrões e das práticas do jornalismo