Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A sabedoria universitária

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SHOW DO MILHÃO

Deonísio da Silva (*)

Aquele homem simples já ganhara 40 mil reais no Show do Milhão. Se acertasse a próxima pergunta, chegaria a 50 mil reais. Sílvio Santos perguntou-lhe se queria ajuda. Entre os três universitários, a postos para auxiliar os concorrentes, o homem preferiu as cartas, mas já tinha recorrido à sorte ou ao azar três vezes e, segundo as regras do jogo, tinha apenas duas alternativas: pedia ajuda aos universitários ou desistia. Talvez assustado com a "sabedoria" dos universitários que haviam enterrado outros concorrentes, ele, um homem prático, preferiu desistir e embolsar 50% do que já tinha amealhado. Foi para casa com 20 mil reais.

Informado por meus alunos de que os universitários faziam o maior fiasco no programa, comprei um CD para examinar o conteúdo. Encontrei o de número 3, com 3.000 perguntas. É um sucesso. Já vendeu mais de 1,3 milhão de exemplares. Recebi depoimentos juramentados de que os universitários erram perguntas simplórias, pois são fracos em conhecimentos gerais.

Às perguntas e seus erros

Para eles, um colosso pode ser uma coleção de ossos. E têm dúvida se extrovertida quer dizer ciumenta, alegre ou triste. Também vacilam ao responder se o responsável pela disciplina da turma é escrivão, benfeitor ou bedel. E um enxame? Será coletivo de gente, de gatos ou de abelhas? E ainda que alguns sejam parentes de fazendeiros, não conseguem afirmar com certeza se roubo de gado é furtogado, ladrogado, robogado ou abigeato.

Quando as perguntas rondam a literatura brasileira, eles, que passaram no vestibular, quando responderam a perguntas semelhantes, hesitam diante do verdadeiro autor de Menino de Engenho. Foi Jorge Amado, José Lins do Rego ou Euclides da Cunha? E este último tratou da Guerra dos Cem Anos, da Guerra do Paraguai ou da Campanha de Canudos em Os Sertões? Em História, aumenta o espanto. Os universitários podem ter dúvidas se Bartolomeu Bueno da Silva foi bandeirante, filósofo espanhol ou rei português.

O jogador pode escolher Matemática, Inglês, Português, História, Geografia, Ciências. Pode também responder a perguntas de todas essas matérias juntas, misturadas aleatoriamente pelo computador. Às vezes, surgem algumas "pegadinhas", de que é exemplo estomagado, que significa irritado, mas que apresenta armadilhas de outros significados, dando a impressão de que tem a ver com estômago. Tem, desde os antigos romanos, mas por outros caminhos. Estava de bom humor na Roma antiga quem estivesse com bonus stomachus, e furioso, em outro contexto, como em tuis litteris stomachatus sum (fiquei irritado com tuas cartas).

Falcão é ex-ministro ou réptil?

O programa tem o encanto das curiosidades, e as perguntas não permitem nenhuma ambigüidade. A resposta correta só pode ser uma das quatro alternativas apresentadas. E o concorrente tem 40 segundos para descobri-la. O insólito fica por conta da absoluta carência de lastro intelectual de universitários que porventura serão bons estudantes de engenharia, farmácia, química ou letras etc, mas ficam em dúvida se Joana D?Arc foi uma heroína australiana, portuguesa, inglesa ou francesa. E se Antonio Vicente Mendes Maciel era o nome de Vivaldi, Vivarini, Figueiredo ou de Antônio Conselheiro. Também podem vacilar ao definir falcão como réptil, ave, anfíbio ou mamífero. Ou se salmonela é bactéria, peixe, inseto ou ave. Ou qual é a maior glândula do corpo humano: o intestino, o rim, o coração ou o fígado. Ao saber a resposta correta, talvez possam mudar suas declarações de amor: "eu te amo de todo o meu fígado".

O Show do Milhão mostra muitas coisas e nos ensina outras tantas. Algumas conclusões me ocorrem. Nosso ano letivo é um dos menores do mundo. Muitos dos universitários ali postos para ajudar os concorrentes fizeram o ciclo básico em escolas onde podiam passar de ano estudando apenas 50% dos dias prescritos, desde que tivessem combinado faltar em dias alternados com o professor, pois mestre e discípulos tinham direito a 25% de faltas. Dos 180 dias prescritos, sobraram apenas 90. Mas ficavam expostos à aprendizagem apenas meio período. Sobraram 45 dias. O ano tem 365. Foram à escola menos de 13% dos dias. Alguns cursos superiores ainda funcionam assim e ninguém menos do que o ministro da Educação tenta fechá-los ano após ano, sem sucesso, porque podem recorrer a não-sei-quantas instâncias.

Às vezes, os universitários, sempre bem vestidos, são bons em suas disciplinas específicas e ostentam aparência física invejável, mas falta-lhes aquilo que podemos chamar de cultura geral. Eles são vítimas e cúmplices de um saber para o qual não viam então, nem vêem agora, finalidade imediata e por isso não se interessaram e nem se interessam em aprender nada do que agora lhes perguntam. A questão é antiga. Camões já reclamara no século 16: Dá a terra lusitana Cipiões/ Césares, Alexandros, e dá Augustos;/ Mas não lhe dá contudo aqueles dons/ Cuja falta os faz duros e robustos/ Otávio, entre as maiores opressões./Compunha versos doutos e venustos". "Vai César subjugando toda a França/ E as armas não lhe impedem a ciência/ Mas, nu?a mão a pena e noutra a lança/Igualava de Cícero a eloqüência.

Quem sabe, agora, com Os Lusíadas transposto para o teatro e em cartaz em São Paulo, os universitários possam comprovar que A disciplina militar prestante/ Não se aprende, Senhor, na fantasia/ Sonhando, imaginando ou estudando/ Senão vendo, tratando e pelejando. E que a verdadeira ciência pode ser um saber de experiências feito, mas para adquiri-lo é indispensável a relação bunda-cadeira-hora, sem a qual não se aprende nada. Ou se aprende muito menos do que é imprescindível para diferenciar um ser humano de um pé de couve.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos. É colaborador regular desta página, das revistas Caras e Época, e do sítio <www.eptv.com.br>. Seu livro mais recente é o romance Os Guerreiros do Campo (Siciliano/Mandarim).

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