ENTREVISTA / NILSON LAGE
Luiz Egypto
A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística, de Nilson Lage, Editora Record, Rio de Janeiro e São Paulo, 2001
Nilson Lage é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Começou em jornal 45 anos atrás, tem larga experiência de sala de aula e levou para a universidade (em especial para o curso de Jornalismo da UFSC) o compromisso com o rigor factual (e conceitual) típico das melhores redações. É testemunha ocular das transformações da imprensa e jamais foi adepto, na academia ou fora dela, da abstenção ao bom debate. Participa amiúde de encontros, palestras, comissões, seminários, colóquios, conferências e ainda acompanha alunos em graduação e pós-graduação. De certo modo, pode-se dizer que Lage sempre deu a cara a tapa e tem exercido como poucos, e com arguta radicalidade, o exercício da crítica, da polêmica e da reflexão sobre a prática e os rumos do jornalismo no Brasil.
O professor acaba de lançar A reportagem: teoria e técnica
de entrevista e pesquisa jornalística, um livrete de
189 páginas que aceitam a leitura de qualquer pessoa interessada
no jornalismo – não é preciso ser do ramo. A linguagem
é clara, os exemplos pertinentes e os argumentos, consistentes.
O livro tem uma matriz notável: a sala de aula: a partir
dela foi construído e a ela preferencialmente se destina
? o que não significa que seja um tratado técnico
nem que não seja recomendado para o leitor geral. São
oito capítulos, um apêndice e uma bibliografia de experiência
levada ao papel: o professor Lage tem atuação pública
conhecida, base intelectual sólida e um currículo
sem omissões. Publicou outros seis livros. Eis sua entrevista
ao Observatório da Imprensa.
Seu livro tem uma origem e um destino claros: a sala de aula, e tudo o que esta significa para o futuro das gerações e das sociedades. Os cursos de Jornalismo no Brasil sabem preparar os novos profissionais da mídia informativa? Outras perguntas, na mesma: os cursos de Jornalismo são mesmo necessários para formar um jornalista? Por quê?
Nilson Lage ? Invertendo as questões: o jornalismo não era profissão de nível superior quando comecei a trabalhar, na década de 50. Havia três categorias de jornalistas: os competentes, que ou escreviam bem ou entendiam de produção gráfica, raramente as duas coisas; os que traziam anúncios ou tinham contatos políticos (entre esses os jovens da elite que não se adaptavam às profissões destinadas à sua classe); e, finalmente, os que faziam o trabalho mais pesado ou menos nobre, como saber o que se passava nas delegacias de polícia ou dar plantão nos hospitais. Os salários, para os jornalistas considerados necessários, costumavam ser complementados por empregos públicos, patrocinados pelas empresas e a que não se tinha de comparecer; os demais eram às vezes remunerados pelas fontes ou podiam arrumar outras receitas ? participando, por exemplo, do rateio do dinheiro tomado pela polícia das prostitutas ou dos bicheiros.
É claro que a formação superior elevou o padrão ético, trouxe dignidade ao ofício e permitiu, senão maior brilho nos grandes momentos, pelo menos padrão mínimo de qualidade na produção rotineira. Está certamente relacionada à consciência de classe da categoria, que lutou por ela meio século.
Resta saber se qualquer formação superior serviria, como regra. Não creio. Primeiro, porque é jogar fora tempo e dinheiro. Um médico, entre a faculdade e a residência médica obrigatória, consome sete a oito anos de sua vida; se decidisse ser jornalista, gastaria mais um ou dois, no mínimo, até adquirir, da experiência e por autodidatismo, novos esquemas de pensamento e alguma proficiência ? assim mesmo restrita aos impressos, ou ao rádio, ou à televisão, ou à internet. Sua formação básica (como médico) poderia ser útil apenas para uma porcentagem pequena de matérias e lhe traria, por outro lado, impedimentos éticos específicos: por exemplo, ao denunciar a desonestidade de um charlatão diplomado dirigindo-se não aos conselhos regionais de medicina, mas ao público em geral. Mesmo considerando que tal pessoa fosse empregada exclusivamente para cobrir o setor de saúde, e que habilmente se livrasse dos conflitos deontológicos, a maior exatidão técnica de seu texto teria que ser compensada por uma visão social e política que não é enfatizada nos cursos médicos.
Em minha opinião, apesar desse desperdício, deveria ser dada oportunidade de formação de jornalistas em cursos de pós-graduação, desde que contemplados os conteúdos técnicos e treinamento laboratorial. No entanto, nos países onde existe, esse canal de ingresso na profissão é mais procurado por executivos da área de comunicação do que por pessoas que ambicionam o salário de repórter, redator, repórter fotográfico etc.
Outra é a questão das escolas. Nesse sentido, avanço significativo foi obtido com o trabalho das comissões do Provão e de Avaliação das Condições de Oferta, atualmente a cargo do Inep. Há dois grandes problemas:
1) a "teoria" ensinada, a chamada "teoria da comunicação", varia em conteúdo de uma escola para outra e, de modo geral, coleciona velhos preconceitos e crenças ideológicas que têm em comum o horror à ciência e à modernidade. Teóricos dessa área são responsáveis por algumas das bobagens mais renitentes nos discursos sobre a mídia ? por exemplo, que as pessoas se contemplam na televisão "como Narciso" ou se transformam, por causa dela, em idiotas contemplativos;
2) reunidos em torno dessa "teoria", alguns sujeitos espertos e uma corte de mediocridades acadêmicas enquistaram-se nos órgãos de fomento e gestão da pesquisa, dificultando o estudo objetivo (essa palavra, por exemplo, eles odeiam) do fenômeno do jornalismo e de seu papel nas sociedades contemporâneas.
Um bom curso de jornalismo deve contemplar, no Brasil, o ensino do texto em geral (coisa que já não se faz há muito tempo nos cursos básicos e médios); as técnicas de redação usadas em Jornalismo, nas diferentes modalidades; a interface com a tecnologia, o que pressupõe o conhecimento não só do que existe e do que está por vir, mas também a preparação para trabalhar conjuntamente com profissionais de outras áreas (informática, telecomunicações etc.) na estruturação de sistemas produtivos; uma carga elevada de informação sobre os fatos e idéias dos últimos 50 ou cem anos; a ética jornalística; e alguma teoria, de preferência recente e consistente, sobre o ofício: teoria da cognição, crítica da mídia, estudo das políticas de comunicação, dos processos de produção e de sua influência no produto etc.
Um dos princípios (quase um truísmo) básicos
da reportagem é a fidelidade ao fato. Como observador contumaz
e profissional da cena jornalística e acadêmica, acredita
que a imprensa brasileira tem interpretado bem os fatos e, os estudantes
de jornalismo, aprendido a ser fiéis aos fatos?
N. L. ? O fato em si, em geral, é informado (quando é) com razoável fidelidade. No que se refere à interpretação, a mídia é hoje pautada principalmente por duas fontes ? o poder (político, econômico) e as ONGs, vinculados, ambos, na essência, aos mesmos interesses. Por exemplo: se o Brasil tem 3,7 % dos índios (os que vivem na selva; de origem indígena é quase toda a população do Norte, do Centro Oeste e uma parte da gente do resto do país), tem 36 % das organizações que cuidam, no mundo, de "proteger" os índios ? quer para roubar madeiras, extrair minérios ou apropriar-se de espécimes de suas reservas, quer para manter jardins zoológicos de gente destinados à reprodução do discurso antropológico.
Quanto ao poder, sabe-se dos seus encantos: as empresas jornalísticas operam concessões de estados nacionais encalacrados que se apóiam em oligarquias; ganham migalhas em grandes negócios, como as telecomunicações; dependem da banca que financiar suas compras e ter acesso à melhor tecnologia. Já as ONGs, financiadas geralmente por fundações que manipulam verbas oriundas de governos de países ricos e grandes corporações financeiras, representam o oposto: com discurso contestador, empregando um mar de gente simpática e bem falante, convencem de coisas absurdas o jornalista ingênuo, oriundo da super-ingênua militância acadêmica, informado na faculdade por ingênuas teorias maniqueístas e retrógadas. Por exemplo, convencem-no de que as vacinas fazem mal, que as pirâmides e os cristais curam X doenças, que os astrólogos são pesquisadores equilibrados e sérios, que namorar meninas de 16 ou 17 anos é pedofilia, que os mulatos são negros (como têm ascendentes brancos e negros, poderiam igualmente ser considerados brancos), que todo índio é selvagem ("antes, eram seis milhões, agora são 200 mil …") etc.
A melhor escola para o repórter é a rua, o campo, as referências contextuais ? o que pressupõe a mobilidade física, a pesquisa e o contato com fontes primárias. Não há repórter que só apure por telefone, eu presumo. Por que a presença da reportagem é cada vez mais rarefeita nos jornais brasileiros? Por que custa dinheiro ou por que os empresários e seus editores substituiram-na pela cr&oocirc;nica (política, econômica, cultural, o que seja)?
N. L. ? Porque, por melhor que seja o cronista ? e há excelentes no Brasil ? nada mais contundente do que a visão direta dos fatos, a partir da fala das ruas e do que ela reflete do sentimento das pessoas. Em suma, reportagem envolve o risco do imprevisível, que se agrava nos momentos de crise: quem está por trás das rebeliões nos presídios? E da série de greves de ocupação armadas da Polícia Militar? Por onde circula o dinheiro do tráfico de drogas?
Há uma questão econômica, sem dúvida, determinando a concentração da cobertura do país no Rio, São Paulo e Brasília ? mais de 75% do mercado nacional, que é tudo que importa para essa gente ? e em alguns lugares, onde raramente acontece algo importante (o Congresso, por exemplo, quando o país é regido por medidas provisórias). Mas é engraçado quando, ocorrendo algo momentoso numa região distante ou mesmo na periferia da metrópole, envia-se "o repórter": agindo como um explorador de Marte, ele se espanta diante das piscinas dos ricos nas terras secas do Piauí, do gigantismo das universidades suburbanas ou por que as índias conhecem a socialite pelas reportagens de Caras ? e tenta, coitado, ver a realidade através das lentes pretas de seus/nossos preconceitos. Tem bons antecedentes: Euclides da Cunha, por exemplo, partiu para cobrir a guerra de Canudos acreditando piamente que os sertanejos faziam parte de uma conspiração monarquista vinculada a supostos barões do Império.
É falso ou verdadeiro que o grosso da reportagem produzida no meio impresso transformou-se em pura apuração desprovida de interpretação?
N. L. ? Falso. Interpretação se tem para tudo ? geralmente, apressada e interesseira. Falta apuração. Fatos podem não comprovar nenhuma teoria, mas derrubam teorias equivocadas. É por isso que eles são perigosos.
Jornalismo "investigativo" é uma redundância porque, para ser jornalismo, sempre haverá alguma investigação, alguém sempre perguntará alguma coisa para alguém. Qual sua análise sobre a enxurrada de fitas e grampos telefônicos que invadiu a imprensa brasileira nos últimos anos? É o reino do atirar primeiro para perguntar depois?
N. L. ? Acredito que o que se esconde por detrás disso é (a) a mobilização da imprensa como instrumento de luta por grupos oficiais ou privados, desde procuradores da República a espiões industriais; (b) uma estratégia de desvio da atenção pública dos problemas reais do país para deliciosas alcovitices; (c) a eventual criação de uma eventual habilitação, a de repórter-araponga, munido de microcâmara, micromicrofone, microcéfalo e voz cavernosa.
As fontes ? principalmente as do poder político, econômico e cultural ? tornaram-se também protagonistas importantes na pauta da mídia jornalística. Como avalia seu afã em pautar a imprensa e até onde isso é aceitável?
N. L. ? Não há fonte isenta. No livro, lembro especificamente da implantação no Brasil das empresas de seguro-saúde. Como, na época, a assistência médica pública dispunha de boa imagem junto à classe média (média, mesmo; não os ricos), a assessoria da Golden Cross montou um setor de atendimento a repórteres, de onde partiam denúncias diárias de problemas em hospitais públicos com base em informação dos médicos associados. Os jornalistas, julgando estar prestando um serviço ao denunciar a ineficiência do "governo" e, assim, combatendo o regime militar, passaram a cobrir com todo entusiasmo rachaduras de paredes, enguiços em aparelhos de raios-X, filas em postos de saúde, cozinhas bagunçadas etc. A indústria da medicina, penhorada, agradeceu essa prestimosa militância.
A fonte sugere a matéria que lhe convém, com o enfoque que lhe interessa e a versão que lhe apraz. Cabe aos jornalistas avaliar e fazer exatamente o que é sugerido ou qualquer outra coisa.
No capítulo "Repórteres & Ética", ao referir-se à institucionalização "além da realidade" da relação de emprego e aos procedimentos judiciais sobre crimes de imprensa, você pergunta: "No caso dos jornalistas, se é a empresa quem paga por supostos erros de informação, que sentido têm os códigos de ética dos jornalistas empregados?" Qual a resposta?
N. L. ? O que me parece mais relevante aí é a americanização da Justiça que está por trás da voga das indenizações. Violações éticas devem ser punidas com ações disciplinares efetivas; nos crimes de imprensa não dolosos, isto é, quando o dano não é intencional (casos de erro ou imperícia), cabe a pronta, cabal e imediata retratação ? com destaque ou relevância até maiores, se for o caso; nos casos de dolo comprovado, a punição só pode ser cadeia para os reais responsáveis. A honra das pessoas, a vida das vítimas, a credibilidade de instituições e empresas não têm preço. Ou passaram a ter? Nessa questão das indenizações, no entanto, o que me parece mais grave é o destino das pequenas empresas jornalísticas locais, sujeitas ao arbítrio de juízes que podem impor multas gigantescas e inviabilizar empreendimentos até pelo custo do recurso a instâncias superiores.
O discurso de oposição vocalizado pela imprensa tende, em geral, a ser reconvertido e apropriado pelas instâncias de poder ? até como mecanismo de autodefesa e aposta na diluição do argumento contrário. Onde o espaço para o jornalismo independente em tempos de oligopolização e cartelização da mídia?
N. L. ? É, com freqüência, o que Roland Barthes, o último dos teóricos franceses legíveis, chamava de "vacina". Por exemplo: o governo admitir "distorções" na distribuição de cestas básicas no Nordeste para esconder relações espúrias com as oligarquias locais e suas bases eleitoreiras. No caso brasileiro, a situação é bem complicada. Mais do que compromissos com o Estado , as maiores organizações, do porte da Abril ou da Globo, movem-se em um cenário crescentemente internacional, onde, sob certo aspecto, críticas a poderes locais são menos danosas do que antes. São relações de amor e ódio, subserviência e guerra surda entre essas empresas e os segmentos econômicos do grande capital externo que, se por um lado as subministram e toleram, por outro estão permanentemente ameaçando substituí-las por grupos multinacionais diante dos quais são relativamente pequenas e frágeis.
A reportagem assistida por computador é tendência irreversível no mundo digital multimídia? Substitui com vantagens a reportagem de campo?
N. L. ? Acho que é irreversível, mas não substitui coisa alguma: amplia. Poderemos ter interpretações e análises baseadas em dados mais concretos e confiáveis. Poderemos substituir algumas fontes interesseiras por apurações feitas a partir do processamento de dados primários. Teremos nossos próprios bancos de dados e o acesso a milhões de bancos de dados alheios, mais ou menos confiáveis. Isso já é uma diferença sensível. E mais: caminhamos para uma época (pode demorar um pouco, por causa das implicações políticas) em que qualquer pessoa poderá, de qualquer parte do mundo, com equipamentos baratos e praticamente sem custo, enviar texto (escrito, oral) e imagens (paradas, em movimento), com excelente definição, para qualquer outra parte do mundo. Isto significa que, se interiorizarmos devidamente o jornalismo, qualquer veículo de uma região poderá receber matérias de qualidade profissional de outra região, remota que seja. Da mesma forma, um país como o Brasil, com pequeno custo poderá beneficiar-se de uma visão própria, útil na prática, de questões como as brigas do Oriente Médio, os debates políticos da Europa, os conflitos na África do Sul ou a condição dos Estados Unidos que, sendo a potência-símbolo do Primeiro Mundo, em tantos aspectos lembram impasses e paisagens culturais semelhantes às do Terceiro. Os canais atuais de informação podem tornar-se obsoletos, para alegria do povo e felicidade geral das nações.