URNA ELETRÔNICA
Pedro Antonio Dourado de Rezende (*)
Dirijo-me aos cidadãos e cidadãs do meu país com mais um alerta, sob o peso de uma responsabilidade com que me investiu o presidente da República. A de representar nossa sociedade no órgão de Estado encarregado de normatizar sobre segurança na informatização dos seus processos, a ICP-Brasil.
Nosso futuro democrático está sob ataque. Corremos o risco de virmos a ser governados por uma dinastia, com os que estão no poder vindo a eleger, com ou sem a verdadeira maioria dos votos, os seus sucessores, no segundo caso e com a devida cautela impunemente. Estamos retrocedendo às condições que fizeram eclodir a revolução de 1930. A nação, anestesiada, parece desconhecer o perigo que está correndo. Os meios de comunicação, com honrosas exceções, omitem-se, como se o assunto não fosse merecedor de nossa preocupação, ou com o verbo indo atrás da verba.
A razão desse alerta é a encruzilhada em que se encontra o nosso processo eleitoral, baseado nas urnas eletrônicas e na informatização completa do sistema, num momento em que os poderes da República testam novos níveis de fricção. Com esta informatização, não mudam apenas a maneira de se registrar e de se contar o voto de cada eleitor. Muda também a forma de se fiscalizar eleições, cuja eficácia é a matéria prima da confiabilidade em todo o processo. O direito de qualquer parte interessada em fiscalizar uma eleição passa a requerer novas disposições, técnicas e jurídicas, já que os meios para a fiscalização se transformam ainda mais radicalmente do que os meios de registro e contagem de votos.
Quando o voto era em cédulas de papel, a fiscalização não requeria mais do que um batalhão de observadores atentos à possível burla dos interesses que representam, durante as várias etapas do processo: preparação, sufrágio, apuração e totalização. Eficácia se traduzia em quantidade de olhos atentos, pois qualquer ato falho de fiscalização poderia comprometer uma pequena quantidade de votos válidos. E pequenas quantidades, somadas muitas vezes, poderiam comprometer o resultado da eleição.
Com a informatização, a fiscalização passa a requerer mecanismos de auditoria com características radicalmente distintas dos mecanismos anteriores, pois agora o que precisa ser fiscalizado são processos informáticos, dos quais a tela do computador só mostra o que o autor do software quiser. Um batalhão de observadores, atentos agora ao que se lhes faz visível nessas telas, será quase certamente inútil.
Ovos de ouro
O grande desafio, para quem, sob o pressuposto da honestidade e fidelidade de princípios, se põe a planejar a informatização do processo, passa a ser o de conceber mecanismos eficazes de fiscalização que não requeiram conhecimentos técnicos em demasia, quer dos fiscais, quer dos juízes, e que não comprometam outros aspectos da confiabilidade do sistema, enquanto atenuam novos fatores de escala no perfil dos riscos, próprios da informatização mesma.
Ninguém quer menosprezar ou desqualificar os benefícios desta informatização, que agiliza o registro e a contagem dos votos. Mas alguém precisa lembrar ao leitor, e ao eleitor, que esses benefícios, como quaisquer outros, têm seu preço. E o preço, neste caso, é alto, pois, com a informatização completa, a eficácia fiscalizatória do processo eleitoral torna-se o nó górdio da modernização democrática.
Mesmo que os partidos possam, por exemplo, examinar o código-fonte dos programas que constituiriam o software do sistema eleitoral, se não puderem saber, por meios próprios, se tais programas são exatamente os mesmos usados nos computadores durante a eleição, todo o esforço fiscalizatório torna-se equivalente a um mero ato lúdico, como o de mágicos e palhaços no picadeiro de um circo. Mas com uma diferença extremamente perigosa, que é a descrença, ou o desconhecimento, da natureza lúdica do ato.
Qualquer informatização traz, como contrapartida a seus benefícios, um efeito amplificador de riscos, pois qualquer pequeno ato falho na fiscalização pode agora comprometer, em larga escala, a confiabilidade do sistema como um todo. Este seria o verdadeiro desafio de uma Justiça Eleitoral ocupada com a modernização dos seus processos, pressupondo que sua missão não muda pelo simples fato de assim ocupar-se.
Mas, diante desse desafio, a Justiça Eleitoral brasileira vem tomando um rumo totalmente oposto ao que dela espera um cidadão de boa-fé, que acredita na preservação da natureza democrática do nosso ordenamento jurídico, ao longo da aventura modernizante da nossa sociedade. Isto porque ela vem dando sinais, cada vez mais inequívocos, de sua disposição em forçar mudanças na natureza da sua missão, à guisa de uma autoproclamada necessidade de comandar a modernização do processo que lhe cabe regular, executar e controlar, processo que sustenta nosso regime democrático, pondo em risco, com tal guinada, a própria natureza deste regime.
Enquanto os países maduros em democracia caminham no sentido de buscarem a informatização eleitoral de forma a permitir ao eleitor verificar, por si mesmo, a correta tabulação do seu voto, o Brasil vai na contramão, com o agente responsável tentando suprimir qualquer possibilidade de conferência ou recontagem dos resultados, apelando, de formas tanto sutis quanto grotescas, para uma cega crença alheia em sua pretensa infalibilidade e isenção intestável.
Segurança computacional é assunto técnico especializado e complexo, e assusta-nos a falta de seriedade com que nossa votação eletrônica, pseudomoderna, tem sido tratada, nos Três Poderes, por desconhecedores da matéria. Ministros do TSE, autoridades em suas áreas porém leigos nas ciências afetas à computação, têm afirmado publicamente que nosso sistema é confiável, seguro, orgulho da engenharia nacional, enquanto, infelizmente, nada disso é verdade.
Dizer que a eleição de Lula é prova da segurança de nosso sistema eleitoral e da lisura dos seus resultados é sofisma. Mais do que isso, é ofensa ao bom senso de quem conhece os meandros da informática e das sombras que se projetam da natureza humana. Lula pode ter sido eleito, noutra hipótese, através de um sistema inauditável que lhe atribuiu quarenta e um mil votos negativos na terceira hora de apuração do primeiro turno, devido à combinação de dois fatores: votos suficientes e uma certa relação entre riscos, na qual um deles mataria a galinha de ovos de ouro de um sistema inauditável, porém crível para a maioria da sociedade, regulamentado, projetado, operado, controlado e julgado em seus resultados por um mesmo e único agente.
Hóstia-CD
Nosso sistema é hoje intrinsecamente fraudável, e nenhuma quantidade de sofismas, falácias e ataques ao mensageiro desse alerta pode alterar tal fatalidade. Nada impede que o software do sistema possa ser furtivamente modificado para identificar ou alterar o voto de qualquer eleitor, já que a Justiça Eleitoral resiste, de maneiras cada vez menos nobres, à demanda fiscalizatória para que potenciais vítimas tenham ? e exerçam se tiverem a devida competência ? o direito de conhecer a lógica e o modus operandi desse sistema, e de, conhecendo, denunciar eventuais falhas.
Não há nada de mal que vejamos, como querem os otimistas, nosso sistema eleitoral tal qual plataforma de lançamento das modernidades democráticas, cobiçada pelo mundo afora. Mas seria imprudente ignorar, ancorando-se em arroubos de emocionalidade e tosco ufanismo, que por trás das maravilhas mostradas por holofotes e câmeras escondem-se erros, falhas, deficiências e vulnerabilidades no projeto, no controle e na fiscalização do mesmo, que podem levar nossa democracia a se desmoronar, queimando seus heróis numa grande fogueira.
Seria este alerta uma mórbida tentativa de aviltar a honrosa memória dos nossos heróis de Alcântara, para promover a cizânia? O autor não pode impedir que julguem seus motivos, mas pode oferecê-los do seu íntimo. Este alerta se deve à novidade do "registro eletrônico do voto", com o qual o TSE, e seus acólitos-legisladores, pretendem desbancar as medidas fiscalizatórias em vigor, prestes a ir às derradeiras e sorrateiras votações no Congresso Nacional.
De que se trata? Tal novidade pretende trocar o atual boletim de urna, contendo o registro eletrônico dos totais de votos sufragados por candidato na sessão eleitoral, por uma lista embaralhada de registros individuais desses votos. Só que pelo mesmo software, desconhecido das potenciais vítimas de eventuais burlas nele inseríveis, e praticáveis, quer seja sobre os totais dantes somados, quer seja sobre a lista de votos que agora se pretende embaralhar e registrar, antes que ganhem, totais ou listas embaralhadas, a luz da vista alheia, com ou sem assinatura digital.
Fiscalização de eleição informatizada é dos maiores desafios do nosso tempo. Auditoria de software não é o conhecimento de programas gravados em CD e armazenados nalgum cofre do Judiciário, como dá a entender meia página de anúncio pago pela Microsoft no maior jornal de Brasília, em dias corridos da semana passada. É o conhecimento e a validação da totalidade do software realmente envolvido, direta ou indiretamente, no registro e na contagem de votos de uma eleição verdadeira, por quem de legítimo interesse. O que aconteceria se o software que está no cofre, e o que está nos computadores da eleição, não forem idênticos, como mostrou uma perícia no processo de anulação da eleição de 2000 em Camaçari, Bahia?
Na situação atual, nada. Nada se prova e nada ocorre, pois a Justiça Eleitoral ? que julga seus próprios atos ? os anuncia idênticos, e pronto. Na verdade algo sim, bastante sutil, ocorre. O anúncio é oferecido como se fosse o mistério da eucaristia pós-moderna. A palavra mágica é "tecnologia". Quem absorve pelos olhos, de uma tela de computador em Brasília, o código fonte que emana de uma hóstia-CD, precisa crer que este ato transmutará o código visto em programa que estará executando nas urnas e tribunais eleitorais espalhados pelo Brasil, para nos salvar de todo o mal eleiçoeiro, e nos abençoar com uma apuração quase instantânea. Enquanto diáconos e acólitos, junto com outros políticos de fino trato, em coro cantam amém.
Incitação à desobediência
De que serve a esses fanáticos jurarem de pés juntos que o sistema é 100% seguro, a cada inserção de novos penduricalhos tecnológicos inauditáveis na urna, como agora querem com firmware importado para assinatura digital? Trata-se de uma medida cara que não garante lisura nenhuma a terceiros, e que, sob a perspectiva de riscos desses terceiros, apenas introduz mais um elemento obscuro, mais um canto onde "botões macetosos" podem ser acoitados, recontaminando todo o sistema com mais obscurantismo. E elevando as despesas, contrariamente à justificativa com que se pretende introduzir mais essa mágica modernosa, ao invés de diminuí-las. De que servem as juras? Simples. Servem para manter a fé dos crentes da seita do santo byte, e a incredulidade ? ou a hipocrisia ? dos demais.
Destarte, não há razão para que a urna eletrônica continue recebendo o número do título de eleitor para liberar o mecanismo de votação, se o voto deve ser secreto. Desta forma, o sistema é capaz de identificar o meu, o seu, o nosso voto, para aqueles que manipulam suas entranhas, o corpo espiritual da santa urna. O voto secreto no Brasil, hoje, é mera ficção: nós o teremos na medida em que os controladores do sistema o permitirem, na intimidade e no mistério da sua discrição.
Os que decidem que o sistema deve ser assim são pessoas que não entendem de segurança computacional. São pessoas que poderiam, no mínimo, afirmar, a partir do bom senso que os levam a conhecer a natureza humana e a informática, esta nos limites da sua compet&ecirecirc;ncia até aqui demonstrados, que o sistema, assim, é seguro contra fraudes externas apenas, e apenas para quem detém o seu controle (se houver fraude bem feita, interna ou externa, estará no arbítrio de quem controla o sistema desvelá-la: se mal feita, terá sido acidente). Em outras palavras, o sistema é seguro, sim, mas apenas para aqueles que assim afirmam, qualquer que seja o seu verdadeiro propósito. Eles não mentem, desde que continuem omitindo o complemento verbal das suas juras de segurança.
Para o eleitor o sistema é, claramente, 100% inseguro, pois os programas do sistema podem ser ligeiramente alterados para "eleger" desde vereadores até o próprio presidente, com tais desvios podendo ser introduzidos por uma única pessoa, com acesso e conhecimento privilegiados e no devido momento, independente do espetáculo místico-midiático onde algum software é mostrado aos partidos sessenta dias antes da eleição, em meio a holofotes e câmeras de TV, à guisa de se "permitir a auditoria".
Iniciativas visando tornar arriscado o acesso furtivo que introduz burlas no software, para quem o acesso capaz de modificar software se justifica, ao contrário de iniciativas visando tornar obscuro os acessos justificados, para quem se prejudicaria com burlas no software, é o que falta para se ter um mínimo de "segurança do eleitor". O TSE jamais aceitou convites para debater tecnica e publicamente a segurança do sistema, pois sabe das suas inseguranças internas. Nenhum estudo isento e independente sobre sua alegada confiabilidade, sem subjetivismos, foi feito até hoje.
O próprio estudo de um grupo da Unicamp (pago pelo TSE), parcial e pleno de ressalvas, recomendou vários procedimentos como condição para se estabelecer níveis recomendados de segurança para o processo, omitidos na propaganda sobre as maravilhas da urna, e agora defenestrados pelo projeto do senador Eduardo Azeredo, caracterizando verdadeiro engodo a sua invocação em juras de segurança. Se o sistema algum dia cair sob o controle de pessoas desonestas, estas poderão eleger quem desejarem, e políticos interessados saberão onde e como sua eleição poderia ser garantida.
Doutra feita, confiar apenas nas pesquisas eleitorais é perigoso, pois sabemos que pesquisas podem, também, ser manipuladas. Os registros dos métodos de pesquisa no TSE, por exemplo, revelam que estas são "autoponderadas". Auto-absolvição? Além disso, se as diferenças entre candidatos for mesmo pequena, as pesquisas nada representam para efeito de validação de resultados. Confiar nas pesquisas como única salvaguarda, como pregou o diácono FHC ao declarar que "a mídia é quem fiscaliza as eleições", incitando a Justiça à desobediência ao artigo 66 da lei 9604/97 (então em vigor), apenas eleva o custo, e com ele as barreiras de entrada ao negócio, do ilícito através de possíveis e eventuais burlas no software eleitoral. E finalmente, se o risco de exposição de eventuais burlas for pequeno, este fato atrairá a cobiça de ambições fundas e escrúpulos rasos ao controle do sistema.
Jogo infeliz
Não existe sistema informatizado imune a fraudes. A proteção possível será através da combinação equilibrada de salvaguardas técnicas, transparência e auditabilidade onde necessárias, contemplando suficientes direitos àqueles que possam ser prejudicados pelas possibilidades de burlas invisíveis, constituindo-se esses na sua cidadania. No caso em tela, os direitos dos candidatos e do eleitor. Mas esses direitos estão sendo pisoteados a achincalhados por quem, na posição de administrador dos mesmos, se faz de desentendido das tais possibilidades, enquanto posa de vestal.
São os mesmos que, no poder, não reconhecem, ou desdenham, as forças sociais que fizeram eclodir a revolução francesa, a revolução de 1930, e o movimento global contra a erosão do Direito provocada pelo fundamentalismo de mercado, dogma que prega o predomínio global do poder do capital como bem supremo. Este poder tem por missão, impessoal e instintiva, a destruição do conceito de bem público, e como bem público se pode classificar os direitos de cidadania. O fundamentalismo de mercado tenta transmutar os direitos de cidadania, nascidos da revolução francesa, em mecanismos legais de premiação, direta ou indireta, da avareza humana.
"Nenhum sistema é mais fiscalizado do que o nosso sistema eleitoral informatizado", proclamou, antes da eleição de 2002, como "prova" da total segurança e lisura do dito, uma autoridade eleitoral, das que reagem agressivamente a qualquer crítica ou à mera insinuação de inconsistência, como se fossem heresias. Pode ser que sim. Mas é verdade mais certa, e esta bem mais significativa, que nenhum sistema é mais mal fiscalizado, apesar do que diga a seita do santo byte.
Até aqui, a fiscalização desse sistema vem se constituindo em mero espetáculo lúdico, ou um ritual místico sem nenhuma eficácia ancorável na ciência da computação. Por mais pomposo que seja o espetáculo, ou por mais credulidade que inspire o rito, são, de qualquer forma, absolutamente incompatível com os valores em jogo, mesmo numa sociedade que mede seus valores pelo próprio espetáculo ou pelo vigor dos seus mitos. O episódio da sessão paralela de cinema, promovido por um privilegiado fiscal de partido em 9 de agosto, co-extensivo e concomitante ao ato final da "cerimônia de auditoria" do sistema, dois meses antes do primeiro turno de 2002, bem o ilustra. E as ilustrações não para por aí.
Segundo a diretoria técnica da empresa vencedora da correspondente licitação, o TSE teria especificado, para a eleição de 2002, para uma experiência voluntária "de teste" com a medida fiscalizatória do voto impresso, que as impressoras fossem fornecidas com um selo de lacre sobre a greta por onde os votos seriam ejetados. E que o TSE teria se esquecido de avisar aos técnicos que teriam que lacrar o saco de coleta de votos à impressora montada na urna, na montagem da "experiência", para que antes retirassem o selo de lacre da greta. Esqueceu-se. Resultado, conforme relatório que o TSE elaborou e enviou ao congresso, por iniciativa própria, sobre a tal experiência voluntária: "Alta porcentagem de falhas", sem maiores explicações.
O TSE licitou mais de 70 mil dessas impressoras, montou cerca de 50 mil delas em urnas eletrônicas, e distribuiu vinte e poucas mil nas sessões eleitorais escolhidas para a experiência. Essas sessões também tiveram, em sua maioria e em média, cadastros de eleitores inchados. Coincidência. O TSE também programou essas urnas para requererem um clique a mais no botão "Confirma", ou esperar três minutos antes de liberar o voto para o próximo eleitor. Mas esqueceu-se de avisar, através de sua milionária campanha educativa, aos eleitores "premiados" com o direito de ver seu voto insculpido em meio indelével, da necessidade desse segundo clique. Esqueceu-se. Resultado, no tal relatório: "Longas filas e eleitores confusos", sem maiores explicações.
E finalmente, o tal relatório declara: a experiência mostrou que tal medida "nada acrescenta à segurança do sistema". Resta perceber que acrescentaria se pudesse ser usada. Por exemplo, na última eleição do Distrito Federal, totalmente "premiada" com a tal experiência, vencida por pequena margem e contestada no seu resultado eletrônico. Mas quem teve dúvidas sobre o resultado, contestou e solicitou a recontagem dos votos impressos junto ao tribunal regional, teve seu pedido negado por unanimidade "para não atingir a credibilidade das eleições". Afinal, era apenas um teste!
Até falsos boatos teriam sido injetados, em círculos políticos não premiados, dando conta de que tal medida fiscalizatória é perigosa pois o eleitor poderia, com ela, vender seu voto. Como seria isso possível, se ninguém pode ver votos alheios impressos, mesmo contestando no tribunal o resultado da eleição? Vade retro!
Tampouco é verdade o que noticiou o telejornal da Rede Record de 13/9, de que a impressão voto terá que ocorrer em todas as urnas, já na eleição de 2004, se a lei eleitoral em vigor não for revogada. Durante sua aprovação em 2001, o TSE fez lobby para incluir na lei dispositivo que lhe faculta escolher o ritmo em que tal medida viria a ser inplementada. O TSE, querendo, poderá, sem ferir a lei atualmente em vigor e com o mesmo orçamento da eleição de 2002, fazer a impressão dos votos nas mesmas sessões eleitorais "premiadas" naquela ocasião. Mas o TSE quer algo mais.
Quer, agora, justificando-se com este relatório, defenestrar as medidas fiscalizatórias estabelecidas autonomamente e a duras penas pela legislatura anterior, que, assustada com as repercussões do escândalo no painel do Senado, enfrentou e venceu o mesmo lobby. Venceu mas não levou. E o eleitor, em vez de cobrar seus direitos, até agora vem dando a impressão de preferir aceitar passivamente, junto com a grande mídia, o papel de tolo nesse jogo infeliz, organizado por quem se propõe a "testar voluntariamente" medidas fiscalizatórias dos seus próprios atos, realizado através de uma triste e vergonhosa execração pública, como se democracia fosse sinônimo de conveniência.
Cantilena de fanáticos
Seria fruto de uma paranóia conspiracionista este alerta? Pode ser que sim. Mas se o for, será nisso mais honrado e saudável do que a vassalagem crédula ou interesseira, e do que a ingenuidade medrosa ou hipócrita. Pelo menos para a dignidade e, quiçá, para o futuro daqueles conceitos pelos quais ainda se luta. Conquistados com muito sangue por nossos antepassados, em carnificinas que precederam o período das luzes, das quais nasceram, como dignos gêmeos, a Cidadania e o Estado Democrático de Direito, e cujos ecos reverberaram na nossa revolução de 1930.
Todo jurista, juiz, advogado ou policial investigador sabe que a possibilidade de ocorrência de fraude é inversamente proporcional ao risco de punição do infrator, da severidade e da extensão desta punição. Enquanto, em sistemas informatizados, o bloqueio à efetiva auditabilidade externa equivale à garantia da impunidade para quem o controla. Sendo a parte sobre a qual o cientista da computação tem vantagem de aprendizado em relação aos operadores do Direito, tal equivalência se faz motivo deste alerta.
Equivalência que pode ser resumida na constatação de que sistemas informatizados sensíveis se tornam propensos à fraude, por parte daqueles que o controlam, na medida direta das dificuldades para sua auditoria externa e das vantagens que tais ilícitos oferecem. Desnecessário dizer mais sobre ambos, no caso. O que pretendem, então, aqueles que fingem em público desconhecer essa lei social do mundo hodierno, investidos que foram de amplos poderes para proteger a sociedade contra, dentre outros, os seus efeitos?
Este alerta não é uma acusação, por parte de um irresponsável que não tem provas, da ocorrência de fraudes eleitorais. É uma acusação, por parte de quem representa a sociedade civil no órgão de Estado que regula a segurança na informatização dos seus processos, do cerceamento do direito de se obter tais provas, caso fraudes eleitorais ocorram. Mais precisamente, caso as mais fáceis formas de fraude ocorram. As provas deste cerceamento estão em projetos de leis, em processos e atas do Judiciário e do Legislativo, em resumo compiladas e referidas em dezenas de artigos espalhados por vários portais na internet, inclusive no site do autor. Examina-as, entende-as e valida-as quem quiser.
A Justiça Eleitoral quer vestir a si mesma com um véu de imaculada, sacrossanta e infalível confiabilidade, através da anulação do direito das partes interessadas fiscalizarem o processo eleitoral, à guisa da sua auto-proclamada necessidade de informatizar o processo com "contenção de gastos" e "mais modernidade". Quer anular esses direitos, depois de boicotá-los, promovendo, através de um estranho lobby conduzido pessoalmente por seus mais altos representantes, a substituição do artigo 66 da lei eleitoral em vigor (lei 9.504/97) e da medida fiscalizatória do voto impresso, por mais um jogo de espelhinhos e protinholas digitais furtivas.
Mais um balangandã de penduricalhos teconológicos inauditáveis dentro da urna, acoplado a uma linguagem capciosa dentro da lei, transformando o sistema eleitoral brasileiro em exemplo lapidar do tipo de caixa-preta contra o qual nos alerta o presidente da República. Para se ter idéia, o tal projeto foi originalmente encaminhado pelo senador Azeredo com dispositivo que ditava, aos operadores do Direito, ser a assinatura digital inauditável no registro eletrônico de votos "para impedir o questionamento do período de votação".
Doutra feita, não entendemos como juristas e legisladores que se fazem ilustres, aparentando acreditarem no que falam, locucionam vacuidades com tamanha convicção, em áreas que não dominam, áreas alheias ao seu campo de atuação, desdenhando o cerceamento aqui denunciado. Ou, pior, quando, pelo perfil profissional, deveriam dominar. Não entendemos como a grande mídia valoriza tais locuções, como se a segurança computacional de sistemas informáticos públicos fosse assunto de fé religiosa, ou de foro íntimo sobre gosto individual ou ética atribuída a palpites do que seja modernidade.
Em particular, às locuções de quem propôs a extinção da medida de auditoria via voto impresso, através do referido e famigerado projeto de lei, aprovado no Senado sem que os senadores ouvissem ninguém a respeito de fora do TSE, e depois enviado à Câmara, que tampouco se dispõe a ouvir quem quer que seja fora do TSE. Os fanáticos do santo byte acusam seus críticos de "lobbistas", e seus argumentos de "politizados", para descartá-los.
Descartada, doutra feita, a possibilidade de má-fé, essas ilustres e poderosos senhores demonstram, ultimamente em debate nas respectivas comissões de Constituição e Justiça, completa ignorância do assunto, aliada a um acerbo conforto com a mesma, real ou fingida, argumentando sem entender daquilo que se propõe e se discute, valendo-se de argumentos que, repetidos de terceiros e fora de contexto, constituem falácias a se propagar em profissões de cega fé que seriam cômicas, se não fossem trágicas. Trágicas porque não se pode distinguir a ingênua fé no santo byte, da performance cênica interesseira misturada à sua romaria.
Por que agem assim a maioria dos nossos legisladores? Por que se esforçam tanto em nos convencer que a mera mudança do registro do voto de papel para bytes transforma aqueles que projetam, operam e controlam o sistema em seres angelicais? Estariam tendo visões alucinatórias, depois de alguma beberagem pelos ouvidos?
No dia 17 de Setembro a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados acordou da cantilena dos fanáticos. Deliberou e votou por enviar requerimento à mesa da casa, solicitando que lhe seja permitido dar parecer sobre o referido projeto, antes de sua submissão ao plenário.
O discurso e o disfarce
Elementos do mais alto escalão do Poder Judiciário vêm pressionando deputados e senadores para que aceitem, sem questionar, disparates do jaez contido no projeto encaminhado por Azeredo, através de lobby cerrado, tons de desafio implícito, barganhas obscuras e insubstanciadas, imiscuindo-se na autonomia do Poder Legislativo, a pretexto de protegerem o sistema eleitoral contra "hackers", "despesas excessivas" e "velharias". A maioria dos pressionados diz amém, sagrando-se diáconos desta estranha seita do santo byte.
Por que o TSE não presta contas das despesas com a execução, "oferecida" através de seu sistema, de eleições na Argentina e na República Dominicana, antes de execrar, por seus "altos custos", as medidas fiscalizatórias conquistadas a duras penas pela legislatura anterior? Quem paga por tal generosidade, enquanto aqui se engalfinham muitos de seus atores, empenhados em contribuir para estrangular, até à medula, o erário na manutenção dos seus privilégios por tempo indefinido?
Por que altos magistrados pressionam o Poder Legislativo para que não seja promovida nenhuma audiência pública sobre tal projeto obscurantista, nem mesmo para que especialistas em segurança computacional sejam ouvidos, enquanto outros supremos magistrados acusam o presidente da República de imiscuir-se na autonomia do Poder Judiciário, com seu alerta sobre caixa-preta?
Dois pesos e duas medidas se reserva, assim, o Poder cujo símbolo seria o da escala única para administração da Justiça, expresso na figura duma balança auscultada por mão guiada por olhos vendados, até em estátua frente ao STF. Ao cobrir-se com véu de suposta imaculada e sacrossanta retidão, a Justiça Eleitoral se faz cega, e também surda, não mais à influência de interesses alheios sobre aquilo que lhe cabe judicar, mas ao nexo causal que guardam entre si a possibilidade de fraude e o risco de punição para o fraudador.
Nexo que, no mundo capitalista, tem força de lei equivalente à da gravidade no mundo material, razão do alerta presidencial: fraudes ocorrem em proporção direta não só à facilidade da sua execução e ao valor que representam para o fraudador, mas também à dificuldade de se produzir provas da sua autoria. É como se marchassem esses ilustres senhores, lépidos e faceiros, ouvidos bem tapados rumo a um abismo, julgando-se assaz espertos por entenderem as "regras do jogo". Poder usa quem tem.
Ao promoverem intenso lobby a favor de legislação obscurantista, que destrói o direito de potenciais vítimas produzirem provas de eventuais ocorrências de fraude nas formas mais facilmente perpetráveis através do sistema eleitoral em uso, alguns supremos magistrados não só afrontam a autonomia do Poder Legislativo, mas o fazem com superlativo agravante: o desrespeito à memória cívica de recentes e vergonhosos episódios, como o do painel do senado e o da inexplicada votação negativa de Lula no primeiro turno. Ao mesmo tempo em que desafiam o presidente da República em sua orientação, como líder supremo da nação, para que se dê cabo de injustificadas opacidades no Poder Judiciário.
O escândalo do painel do Senado trouxe à tona, justamente, um mecanismo de fraude para quem controla o sistema poder fraudar sem ser incomodado. O "botão macetoso" teria sido encomendado, segundo a empresa fornecedora do sistema, pelo próprio senado, como parte nova (e oculta) do processo, para que funcionários da casa pudessem votar em deliberações senatoriais, em nome de senadores ausentes. Note-se que, para o público, dizia-se desse sistema haver sido projetado para impedir a ação de senadores "pianistas", que vez por outra votavam, sorrateiros mas sob o risco de flagrante por câmeras atentas, em nome de colegas ausentes.
Quem, na sociedade, estava atento, aprendeu do episódio uma boa lição da era digital. Uma lição sobre o papel da eficácia fiscalizatória como nó górdio daquilo em que nela se transforma a cidadania. A expectativa de certos senadores, de que o sistema do painel de votação de sua casa nunca viesse a ser externamente auditado, desfez-se com a cizânia provocada por uma escalada na luta interna entre dois caciques, expondo com isso, à sociedade, a dimensão dos riscos a que nos expomos ao aceitarmos sistemas informatizados inauditáveis, como intermediários no controle do nosso destino coletivo.
Ao fazerem lobby sobre o Legislativo para que nosso sistema eleitoral se transforme de vez, de fato e de direito, em modelar caixa-preta, autoridades do Poder Judiciário afrontam sobejamente não apenas a autoridade máxima da República, desafiando sua orientação de líder supremo da nação, para que nossa sociedade evite os perigos desta perniciosa forma de obscurantismo pós-moderno. Insultam também a inteligência do cidadão comum, apostando na sua incapacidade de aprender lições de cidadania que a História ministra.
Como as lições do painel do senado, da votação negativa atribuída, por essa mesma caixa-preta, ao candidato Lula no primeiro turno em 2002, dos vergonhosos espetáculos da execração pública de uma medida fiscalizatória antes mesmo que vigisse, encenado pelo próprio fiscalizado, e da capacidade articuladora dos seus membros em defesa de particulares e mesquinhos interesses entrelaçados ao poder que representam, exibida durante a negociação da reforma da Previdência.
Afrontam os aprendizes da História na expectativa de que suas vozes sejam caladas, muitas vezes rotulando-as de retrógradas, paranóicas e conspiracionistas. Na esperança de que a sociedade brasileira venha a aceitar passivamente a silhueta que pretendem desenhar sobre a instituição que representam, cobrindo-a com precário véu de imaculada e sacrossanta retitude, precário pois seu significado está sendo tecido com o fio de uma indisfarçável inflação de autoridade.
Mas nem todo cidadão está disposto a confundir esta silhueta com o papel desenhado para o Poder Judiciário enquanto Janus, judicador e custodiante do processo eleitoral, em nossa Carta Magna. Nem todo cidadão está disposto a se calar diante desses abusos. O parlamentar que mereceu o nosso voto, merece também saber da nossa opinião e perplexidade a respeito. Os que se curvarem, entrarão para a História por uma outra porta, como entraram por distintas portas os que se enfrentaram na revolução de 1930. Quanto mais se muda, mais igual tudo fica. O discurso da modernidade é disfarce: o que eram livros de votação antes de 1930, são hoje softwares. O futuro nos espera.
(*) ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança na Informática da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira