ELEIÇÕES
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Um dos mais famosos historiadores da atualidade, Eric Hobsbawm desabafou na Folha de S.Paulo um dia antes das eleições na Inglaterra: "Não há esquerda… Não há clima de campanha… São todos iguais…", reclamou o autor de A Era dos Extremos.
Os radicais de esquerda aqui nestas plagas disseram a mesma coisa às vésperas do pleito americano, novembro passado: "Gore e Bush são a mesma coisa". Arrependeram-se na madrugada seguinte à eleição, diante da manipulação das prévias pelo pool das empresas de mídia, depois com a farsa da contagem dos votos na Flórida, depois com a decisão pró-republicana adotada pela Suprema Corte e, finalmente, quando Bush Jr. montou uma das equipes mais ostensivamente conservadoras desde os tempos de Eisenhower. Então bateram no peito, contritos.
Hobsbawm também se esqueceu do que escreveu: a sua era dos extremos ideológicos e do radicalismo político acabou em 1991 com a queda do Muro de Berlim. É a tese central da sua obra, datada no subtítulo ("O Breve Século XX: 1914-1991"). Acontece com autores que também são ativistas: na reclusão dos gabinetes comportam-se como sábios, enxergam longe. No palanque político são estouvados como os discípulos.
A debacle do comunismo soviético não se resumiu ao simbólico desmonte de uma parede de concreto separando as duas Alemanhas. Desabou um enorme edifício feito de sonhos, lutas, sacrifícios, projetos consistentes e utopias desvairadas que leva o nome genérico de socialismo e demorou séculos para montar. O resultado está na própria Alemanha, onde o neonazismo é mais visível no Leste ex-comunista e o socialdemocrata Gerhard Schröeder e seus verdes comportam-se tão moderadamente quanto os adversários.
Na politizadíssima Itália (que conseguiu o milagre de oxigenar o comunismo), um Berlusconi de extrema direita ganhou as recentes eleições não por sua plataforma ideológica mas graças a um "ismo" diferente – o não-me-importismo, a lavagem cerebral produzida pelo lixo das suas redes de TV.
Essa homogeneização partidária não é fenômeno exclusivamente ocidental: no recluso Irã, caso o reformista Mohamed Khatami seja declarado o vencedor nas eleições de ontem, pouco se conseguirá avançar para implementar a plataforma liberalizante. O fundamentalismo incorporou-se às estruturas do país, levará tempo para ser revertido.
A França retórica tenta ser exceção: o "escândalo" do momento não envolve dinheiro ou problemas conjugais de homens públicos. O premiê Lionel Jospin admitiu que foi trotskista quando jovem. E daí? Daí que o trotskismo sempre foi tabu. O próprio Leon Trotsky (1879-1940) insistia em que não era trotskista. E não porque o seu nome verdadeiro fosse Lev Bronstein, mas porque a designação fora inventada pelos detratores, os estalinistas (seus assassinos). As idéias de Trostky vão muito além das denúncias sobre a degeneração do aparelho soviético ou da sua férrea convicção nos conceitos do internacionalismo e da revolução permanente.
O trotskismo foi aviltado tanto pela máquina agit-prop dos sovietes como pelo oportunismo de algumas de suas próprias lideranças quando faziam o jogo do capitalismo. Jospin escondeu o seu passado justamente por isso: não queria revelar um eventual anticomunismo, mesmo de esquerda. Afinal é candidato à Presidência em 2002 e o PC francês ainda conta pontos.
O trotskismo no Brasil está envolto no mesmo véu de mistério. Nas áreas próximas ao PT não é de bom tom lembrar que uma das jogadas mais hábeis do general Golbery foi estimular o fracionamento do antigo MDB (abrigo de liberais e diversas facções comunistas, dos estalinistas aos eurocomunistas). Com o apoio de alguns veículos jornalísticos, o mago tudo fez para criar um antídoto ao sindicalismo-trabalhista originário da era Vargas e que tanto abominava.
Hoje, pela quarta vez pronto para abiscoitar o poder, o PT ainda não ultrapassou algumas de suas dificuldades originais. Além do entrechoque das diferentes tendências (inclusive trotskistas), o partido parece sofrer de um processo semelhante à esquizofrenia. Luta contra o poder mas não se prepara para chegar ao poder. E, quando percebe que está na hora de mudar, entrega-se ao oportunismo.
Sofre da mesma síndrome de Hobsbawm: um lado, palanquista (dos palanques eleitorais), aferra-se à oposição sistemática, quer barulho, agitação. Outro, realista, reconhece que a era dos extremos passou, está na hora de preparar-se para o poder e isso compreende não apenas projetos como capacidade de compor-se, fazer política, admitir áreas cinzentas entre o ideal e o possível.
Já abancado em importantes paços municipais e estaduais, o PT está percebendo como é difícil conciliar o vanguardismo com as realidades de ser governo. Em São Paulo, não fosse a Secretaria de Saúde, a gestão petista ficaria restrita à esfera da "belezura", isto é, conversa mole.
Isto porque o PT passou os últimos seis anos preocupado em ser o legítimo anti-FHC e agora que o carlismo roubou-lhe essa preciosa bandeira está órfão. Desnorteado. Não fosse o tom apoplético dos ataques, ACM poderia ser considerado no momento um das mais diligentes aliados do presidente: livrou-o do Lula polemista que, convenhamos, é uma das facetas menos brilhantes do líder petista.
Graças a ACM também ganham relevância os movimentos do grupo realista do PT, aqueles que desejam disputar eleições para ganhar, sem frustrar o eleitorado no dia seguinte. Em apenas dois dias o grupo ensaiou duas propostas extraordinárias: a) agenda mínima de compromissos econômicos para os candidatos da esquerda a fim de permitir uma transição sem traumas; b) manutenção de um status quo fiscal para garantir a receita nos primeiros tempos de um governo petista.
Se os kamikazes palanquistas não abortarem esse processo de amadurecimento, o PT terá dado um passo decisivo para a conquista do poder. Mas é preciso tomar cuidado para que na véspera do pleito não reapareça a síndrome de Hobsbawm reclamando que petê e efeagacê é tudo a mesma coisa.
(*) Copyright Jornal do Brasil, 9/6/01