Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A síndrome de Hollywood

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Não parecia cinema; era cinema mesmo, escrevemos ao verificar a precisão do "roteiro" executado pelos terroristas no dia 11 de setembro, ato de visível intenção midiática pelo simbolismo embutido nos objetivos atingidos e na forma como foi planejado, com tal requinte que, voluntariamente ou não, terminou assegurando até os 18 minutos necessários ao posicionamento correto das câmeras para a captação das melhores imagens do segundo avião mergulhando no World Trade Center.

Pois, tal como no cinema de ação americano, em que uma cena eletrizante funciona como anzol que prende a atenção do espectador até o final da trama, parece que os roteiristas de Hollywood foram chamados para dar seqüência ao "roteiro" brilhantemente iniciado pelos terroristas. Aliás, novamente não "parece": os melhores roteiristas, diretores e produtores do cinema de ação (os realizadores de Duro de matar, Profissão perigo e Invasão dos Estados Unidos, entre outros) foram mesmo chamados pelas autoridades do exército americano para imaginar novas ações terroristas e possíveis defesas. E estão lá, dando uma força.

A interpenetração de realidade e ficção, que no passado se verificava de forma epidérmica, eventual ou por mera coincidência, vem adquirindo a cada dia a condição de prática rotineira, com os mecanismos dos roteiristas de obras de entretenimento invadindo a realidade e definindo os contornos do imaginário. Isso não é novo em Washington. O ator Ronald Reagan cometeu vários atos falhos durante sua passagem pela Casa Branca que denunciaram sua "atuação". Ainda na campanha para governador, ao ser perguntado que tipo de dirigente seria, respondeu: "Não sei, nunca fiz o papel de governador."

Reagan via a Presidência como filme, tanto que os assessores se acostumaram a preparar "roteiros" em linguagem hollywoodiana para seu dia-a-dia, incluindo as conversas particulares. Não se envergonhava de ensaiar as "cenas" antes de encontros com chefes de Estado. À noite, na véspera, repassava as "falas" com assessores. A simbiose chegou a tal ponto que Reagan foi flagrado num discurso em que homenageava os mortos na invasão da Normandia perguntando "Onde encontrar homens iguais?", sem perceber que repetia a frase do almirante do filme As pontes de Toko-Ri. Mas… tudo bem, até aí morreu Neves. Afinal, Reagan era um ator.

Curioso é que George Bush, que no máximo pegaria uma ponta numa paródia aos westerns (adora descansar em seu rancho na Flórida fantasiado de cow-boy), embora não tenha ensaiado as cenas, vai pelo mesmo caminho, ao repetir chavões típicos dos filmes de bang-bang. "É a luta do bem contra o mal", afirmou na primeira aparição após os atentados. "Queremos bin Laden vivo ou morto", diria pouco depois. "Quem não estiver conosco está contra nós", e vai por aí. O próprio bin Laden, em sua caverna, desempenha com perfeição sua parte no roteiro, ao demonstrar domínio absoluto do timing do espetáculo (condicionou a emissora al-Jazira, do Catar, a só divulgar seu pronunciamento pré-gravado após a confirmação do primeiro ataque ao Afeganistão). E, no discurso, revelou segurança e tranqüilidade, mobilizando o mundo muçulmano além do Afeganistão ao evocar a causa palestina e dividir o planeta entre fiéis e infiéis (que o especialista em Oriente Médio da Universidade de Oxford Philip Robins considera a imagem invertida, de cabeça para baixo, das declarações dicotômicas americanas sobre a luta entre o bem e o mal).

Enquanto isso, a indústria cinematográfica entrou no circo ao proibir os filmes que retratam ações terroristas. A hora é de mexer mais uma vez no imaginário para reforçar valores americanos, como lembrou Ed Gernon, vice-presidente da produtora Alliance Atlantis. O controle da mídia, de sua parte, vai garantindo o cumprimento do roteiro em sua plenitude.

Roteiro em tempo real

Parêntesis rápido. Aqui mesmo em nosso quintal a história do entretenimento televisivo registra significativos momentos de interseção entre realidade e ficção, como no dia em que o senador Darcy Ribeiro subiu à tribuna do Senado para homenagear o "senador Caxias", personagem fictício da novela O rei do gado. O "senador" de mentirinha seria homenageado, dias depois, em seu enterro, pelos senadores Eduardo Suplicy e Benedita da Silva. Foi a primeira vez que políticos reais compareceram ao "velório" de um personagem de ficção. No tempo da censura, um personagem da novela O casarão (de Lauro César Muniz, 1976), candidato a prefeito da pequena Tangará, foi proibido de participar normalmente da trama por estar em campanha política. Estávamos em plena vigência da Lei Falcão, segundo a qual a participação dos candidatos na tevê se restringia à apresentação de seu nome, sua foto e seu número. "Era uma lei tão ampla e poderosa que interferiu até na vida de personagens de ficção", observou Inimá Simões (Capítulo "Nunca fui santa", do livro "A TV aos 50", SP, 2.000, org. Eugênio Bucci).

Neste momento, quando a paranóia do antraz invade as casas com a complacência de certa mídia profundamente interessada em mantê-la ou se possível elevá-la para garantir tiragens e audiências, a gente quase se trai ao olhar para a tela e confundir as imagens dos homens vestidos em roupas de proteção com Dustin Hoffman atuando em Epidemia. Sensação idêntica aos que olharam para as torres explodindo e pensavam estar diante de uma cena de Independence Day.

O diretor de cinema Walter Salles, num dos primeiros artigos escritos após os atentados, lembrou a frase do seqüestrador do ônibus 174 ? "Isto não é Hollywood!" Tudo bem, o Jardim Botânico não leva jeito mesmo para estúdio de cinema, embora a Globo tenha rodado seus principais sucessos em seus estúdios de lá, antes do Projac. Porém, cada vez mais, o Pentágono e Nova York se parecem, sim, com Hollywood, tamanha a perfeição do roteiro, a atuação dos atores e a verossimilhança dos efeitos especiais. A única diferença é que lá o filme é pra valer, com gente morrendo e matando, e o roteiro sendo escrito em tempo real.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>

    
    
               

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