Monday, 30 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1307

A sociedade adormecida

CASO ABRAVANEL

Claudia Rodrigues (*)

A imprensa deve ou não deve divulgar e cobrir seqüestros? Será que devemos parar nessa pergunta, cuja resposta óbvia é sim?

O problema, bem grande, que envolve a vida de pessoas ? a das seqüestradas e de suas famílias, e a das que seqüestram e de suas famílias ? como de costume está sendo reduzido a purpurina. Para variar, a mídia não aproveita o momento para debater o sistema penitenciário e as causas do aumento da criminalidade. Tudo é visto sob a perspectiva da conseqüência. Bandido tem que ir para a cadeia, bandido não pode fugir da cadeia, as cadeias precisam ter mais cimento, mais armamento. Os ricos e famosos deveriam investir mais em segurança particular, os classe média que se virem em centros comunitários para conseguir um guarda para a esquina, os miseráveis úteis que se esquivem dos miseráveis inúteis e por aí vai.

Detalhes mórbidos, encheção de lingüiça e muita falta de critérios. Isso foi o que se assistiu no SBT no dia em que Silvio Santos virou refém de um rapaz de 24 anos sem ficha na polícia.

Os apresentadores, excessivamente envolvidos com o envolvimento do patrão, criticavam o "maligno" seqüestrador, um rapaz que até pouco tempo era um bom funcionário, um empacotador de supermercados, cuja inteligência e vivacidade não permitiram que se submetesse a vidinha sem dignidade de um salário mínimo em troca de horas absurdas de trabalho. Dutra não é muito mais nem muito menos do que um jovem sonhador que perdeu as estribeiras ao perceber que suas chances de crescer profissionalmente eram muito pequenas em um país como o Brasil. É um dos milhões de brasileiros, como outros tantos, que se cansam de remar nessa canoa furada do salário mínimo.

O Ratinho não cansava de divulgar o custo de um preso ao governo de São Paulo: 1.500 reais. Ironia é não comparar quanto se gasta para sustentar um preso com quanto se paga para um trabalhador honesto e cumpridor de seus deveres: 180 reais. Ninguém pergunta quanto custa à vida emocional e psíquica ? sem falar no lado prático ? de um ser humano que recebe menos de 200 reais por mês para trabalhar de sol a sol. É enlouquecedor. Não há padre que segure essa onda.

O investimento no crime é alto e só se pensa em investir mais. Nos cidadãos, para mantê-los afastados da tênue linha que separa a vida marginal honesta da marginal desonesta, se investe nada. E é claro que a banda do lado de lá, dos descontentes, como Dutra, só tende a crescer.

Não há esse debate, parece que ninguém quer encarar de frente o verdadeiro âmago da questão. Os raciocínios, permeados pelas leis que regem a economia, só têm uma direção: aumentar a segurança, construir mais presídios, comprar mais armas, aumentar policiamento, fermentar a coisa toda.

A apresentadora do SBT falava sobre a ousadia do rapaz que pulou o muro da casa de Silvio Santos. No Jornal Nacional, nas reportagens das revistas, sempre sobra o tom assoberbado sobre a ousadia. Como se a violência não nascesse na falta de boas escolas públicas e n&atilatilde;o se multiplicasse na ausência de uma distribuição justa de renda!

Como se os criminosos, nesse número cada vez mais incontrolável, nascessem do nada e lutassem contra coisa nenhuma! A culpa é das drogas, da falta de pastores na vida das jovens ovelhas. É 2001 antes da queda da Bastilha.

Ousado mesmo deveria ser o salário que o rapaz ganhava como empacatador e mais ousado ainda deveriam ser os conselhos de "abaixe a crista" do pastor da igreja que ele freqüentava. Ousados são os tributos que pagamos para ter direito à cidadania. Cidadania!? Que ousadia! O rapaz estava era desesperado, com medo de morrer estrangulado pela polícia. Com toda a razão e com toda a emoção, diga-se de passagem.

A sociedade compadecida de si mesma, uma vítima de criminosos; míope, cega, centrada no próprio umbigo, não percebe que os presídios continuam sem professores, sem terapeutas, sem arte, sem cultura, sem lazer. Estaria o governo interessado em recuperar presos, reintegrá-los à sociedade, diminuir a criminalidade investindo na reconquista de uma cidadania perdida?

E as empresas, que eventualmente vinculam trabalhos aos presídios, a máxima do momento em estados como Santa Catarina, por exemplo, na verdade exploram o trabalho do preso, que inclusive não é considerado cidadão, já que uma pessoa perde a cidadania quando comete um crime. Assim, esses presos têm direito a um salário ainda menor do que o mínimo, que vai para suas famílias. Essa solução, de preso trabalhando de graça, está sendo vista como muito nobre pela imprensa. O fato, baseado em uma lei, de que preso não é cidadão e portanto não tem certos direitos, já não seria motivo para questionamentos?

Nada disso consta nas matérias, ninguém consegue se compadecer de um rapaz de miolo mole que cansou de bancar o escravo contemporâneo.

E é escrava toda pessoa que trabalha o dia inteiro em troca de um salário mínimo. E quanto tempo poderemos manter esses escravos sem que se rebelem dos casulos das igrejas e entrem em contato com a verdade nua e crua; a de que somos, em grande maioria, uns mais e outros menos, explorados por uma ditadura empresarial sem precedentes na história?

Ou será que ninguém lembra que as assessorias de imprensa de empresas emergiram de sopetão em um Brasil pós-ditadura militar?

Amnésia total e coletiva. Antes bundinhas e peitinhos de fora eram censurados pelos militares, mas curiosamente havia grande produção cultural nos bastidores da imprensa. Agora não há censura alguma para bundões e peitões. É a era dos sem cérebro. Vale tudo, menos pensamento, reflexão, coisas incômodas à economia vigente.

A mídia não informa mais nem nos bastidores, o caldo cultural é um mingau sem gosto e raso mas com muitos aditivos convincentes, como o de explorar o trabalho dos presos, a idéia "mais nobre", bem ao estilo podr?chiq, que se pôde constatar nos "debates" sobre o aumento de seqüestros e da criminalidade em geral.

Você que é jornalista, artista plástico, músico, dentista, professor, médico, psicanalista, bancário, ou outro ista, ogo, omo, já tentou oferecer seu trabalho para ajudar na recuperação de presos, seja trabalhando com as poucas e estressadas pessoas que "cuidam dos presos" ou com os próprios presidiários mesmo?

Tente para ver. Eu já tentei. Fui dispensada com muita diplomacia. Não há verbas para pessoas que queiram recuperar presos. As verbas são exclusivas para cimento, armamentos, aparatos. Até a instalação de uma TV é mais importante. São verbas para contenção, nunca para recuperação. A menos, é claro, que você, ovelha de Deus, esteja disposto a fazer um trabalho voluntário dos mais pesados, enquanto as empresas tiram o sangue dos presos e o seu por tabela. A menos, é claro, que você pague o seu transporte para se deslocar até o presídio, trabalhe de graça, e não desista do empreendimento, pois um dos maiores problemas enfrentados pelas penitenciárias é o da alta rotatividade dos trabalhadores voluntários.

A recuperação é coisa grave, passa por tomada de consciência e sabe como é, temos o exemplo da queda da Bastilha, não se pode arriscar investindo nessas pessoas. Elas podem mesmo se dar conta de que muita, muita coisa está injustificavelmente injusta.

Em tempo

Nota zero para o iG, que após o seqüestro de Patrícia Abravanel e depois de Silvio Santos ter sido mantido como refém não se contenta em revelar que o empresário freqüenta um salão de beleza X, fato absolutamente relevante, mas vai além e dá o endereço do salão. O que quer o iG? Que a polícia, com medo de mais retaliações, coloque guardas em frente ao salão?

Mais repórteres falando do último tom de tinta escolhido pelo apresentador e por seu fiel cabeleireiro?

Mais um seqüestro?

Francamente, com tanta coisa importante a ser debatida, é triste que o saldo de uma quase tragédia seja apenas mais purpurina à fama de alguém.

(*) Jornalista

    
    
                     

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