Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sociedade e a "operação Mídiabrás"

SOCORRO DO BNDES

James Görgen (*)

Constatar, debater, negociar. No jogo retórico em que se transformou a intenção declarada de o Estado brasileiro financiar com recursos públicos a reestruturação financeira dos veículos privados de comunicação, estes verbos poderiam ser mais conjugados. O que acontece, até o momento, é justamente o contrário. Entidades representativas dos meios de comunicação dizem querer transparência no trato da questão. Porém, apresentam um diagnóstico que há mais de três meses permanece desconhecido da sociedade. O mesmo acontece com suas contas há pelo menos meio século.

Do outro lado do balcão, o governo diz que a mídia é uma atividade estratégica para o país e que, ao financiá-la, não pretende exercer tutela. Mas relaciona-se com ela de maneira ambígua. Ora lhe dá puxões de orelha públicos, ora troca cumplicidades que já extrapolam os afagos iniciais da tão falada lua-de-mel. Agindo desta forma, ambos sinalizam que o casamento extra-oficial vai de vento em popa.

No lado do balcão em que a sociedade não entra, o único debate que prospera parece ser o volume do dote e a forma com que a noiva o receberá. Especula-se que se o governo fosse abranger todas as demandas teria que abrir a torneira para sair de 2 bilhões de reais a 7 bilhões de reais. Como o desligado marido traído, a sociedade sabe pouco do relacionamento do atual governo com a mídia. Por enquanto, sabe que o dote virá. Sabe que não será pouco. Sabe também que recursos públicos poderão entrar no aporte. Sabe ainda que as empresas que privilegiam o conteúdo nacional serão priorizadas.

Na lista do que não sabe, a sociedade contabiliza um bom prejuízo. O Brasil não sabe se suas empresas de comunicação estão enfrentando uma verdadeira crise sistêmica que exija um "salvamento" por parte do Estado (1). Mal desconfia do que e de quem a causou (2). Não faz idéia dos benefícios tributários e fiscais que o setor goza há décadas (3). Sequer imagina os riscos externos que esta capitalização disfarçada de empréstimo representa para o país (4).

Se a crise e a ajuda estão dadas para o governo e o empresariado, faz-se necessário um diagnóstico mais preciso sobre determinadas verdades que ainda não foram computadas na coluna dos riscos de toda a operação.

1. A extensão do problema

A indústria da comunicação social é uma das atividades econômicas menos acompanhadas e estudadas pelo governo federal. É a única área dos serviços púbicos operados por meio de concessões que atua sem uma efetiva regulação e fiscalização dos poderes constituídos. Ao contrário da água, da energia elétrica, dos transportes e da telefonia, a qualidade da comunicação não é medida nem acompanhada de forma eficaz pelos órgãos reguladores criados na última década. Com exceção dos grupos com negócios no exterior, seus relatórios de resultados financeiros são mistérios bem guardados.

Sem dados para analisar, e sem especialistas no quadro de pessoal, o governo não tem como avaliar se a crise apresentada pelas empresas é estrutural, sistêmica ou sazonal. Talvez possa, no máximo, diagnosticar se as perdas acumuladas são coletivas ou particulares. As principais redes de TV, por exemplo, não apenas cresceram em termos de faturamento, como incrementaram seu aval nos negócios cambaleantes dos demais segmentos onde os grupos atuam.

2. Das razões e seus autores

As últimas perdas registradas pelas empresas da área das comunicações têm causas visíveis e outras menos tangíveis. As preferidas dos empresários são sempre a desvalorização do real frente ao dólar, a retração do mercado publicitário na década de 1990 e os investimentos em novas tecnologias. Eles esquecem de dizer que toda a economia brasileira esteve submetida à mesma crise cambial e que o bolo da publicidade vem diminuindo drasticamente em dólar. Quando medido em real, houve até crescimento nos últimos dois anos.

De acordo com o Projeto Intermeios, de 2001 para 2002 o acumulado dos investimentos publicitários em todas as mídias (TV aberta e por assinatura, jornal e revista, rádio, outdoor e mídia exterior) cresceu 3,36% em real e caiu 16,5% em dólar. Comparando setembro de 2003 com o ano anterior, o acumulado em dólar caiu 4,18%, enquanto em real houve um aumento de 7,93%. Caso as dívidas contraídas não fossem em dólar, a história da crise seria outra.

Outro impacto na receita é causado pela concorrência das chamadas novas mídias. Aí podem ser incluídas desde a TV paga até a internet. Dois meios cujos faturamentos são praticamente controlados, ou partilhados, pelos mesmos grupos de mídia. Logo, o dinheiro continua chegando às mesmas mãos. Com a diferença de que agora retorna aos bancos, grandes anunciantes da indústria da comunicação.

No campo tecnológico, novamente as perdas foram causadas mais por decisões levianas e ambiciosas do que por fenômenos externos. Pegue-se como exemplo o endividamento bilionário acumulado por dois grandes grupos de mídia com a construção da atual rede ociosa de TV a cabo no Brasil. Enquanto a "lei do cabo" (aprovada em janeiro de 1995) previa o desenvolvimento de uma rede "única e pública" construída e compartilhada por todos os interessados, a voracidade concorrencial levou os conglomerados a instalarem milhares de quilômetros de cabo de forma redundante, gerando a situação tecnicamente denominada de overbuilding nas principais cidades brasileiras. Só aqui foram 5 bilhões de dólares.

Antes que pudessem medir o impacto retroativo do insustentável investimento realizado no novo segmento, entre 1997 e 1998 as mesmas empresas faziam outra aposta de risco. Contraíram novas dívidas para entrar na oportunidade única que se apresentava com os leilões da privatização do Sistema Telebrás. Em tempos de convergência, controlar telecomunicações e radiodifusão parecia um canto da sereia para qualquer empresário de mídia. A euforia parece ter provocado um menosprezo da astúcia das operadoras internacionais e a submissão de agentes financeiros nacionais, que deixaram a mídia fora da maioria dos consórcios que atualmente controlam as telecomunicações brasileiras.

Quase simultaneamente, a mesma promessa de um pote de ouro no fim do arco-íris fez o empresariado de comunicação colocar mais uma soma extravagante de recursos em projetos de internet e tecnologia da informação para o acesso de menos de 10% da população. Expurgada do filé da telefonia, a mídia mais perde do que ganha ao colocar o conteúdo de seus veículos nada digitais para valorizar megaportais controlados pelos conglomerados de telecom.

No momento, os mesmos conglomerados que se dizem em crise já comprometeram recursos que não têm para bancar a transição de equipamentos da tecnologia analógica para a digital. Fizeram isso sem o governo decidir qual será o modelo econômico mais apropriado para a TV e o rádio digital do Brasil. Fizeram isso sem procurar uma alternativa mais em conta. Podem repetir o que ocorreu na implantação da TV a cabo.

Se parassem para raciocinar, veriam que existem alternativas em todos os cantos. No Japão e em alguns países da Europa, por exemplo, o ônus da transição da TV digital está sendo rachado entre as emissoras, que constroem uma única torre de transmissão e a compartilham de forma civilizada, reduzindo custos. Nos Estados Unidos, recentemente, as indústrias de TV aberta e a cabo apoiaram um acordo que vai permitir que os mesmos equipamentos receptores estejam aptos a captar tanto os sinais de abertos quanto os pagos.

3. Benefícios tributários e fiscais

Desde o fim da era Vargas, a comunicação social no Brasil é um grande negócio do ponto de vista de impostos e contribuições. Até hoje, os jornais não pagam imposto de importação do papel que consomem. E as emissoras de rádio e TV não arrecadam ICMS (fato consumado pela recente reforma tributária aprovada no Congresso Nacional). Os argumentos, mais uma vez, são tácitos ou quase subjetivos: a imprensa não é taxada na importação por correr o risco de ser achacada por um governante vil; a radiodifusão tem salvo-conduto por ser de recepção livre e gratuita.

Ao mesmo tempo, as empresas do setor têm sido sistematicamente preservadas de qualquer tentativa do Estado em recolher contrapartidas para a formação de fundos de incentivo ao setor audiovisual, de financiamento de emissoras públicas ou de universalização de serviços de radiodifusão ou de telecomunicações. Iniciativas mais recentes de enquadramento neste sentido foram parar na Justiça e noticiadas como ataques à liberdade de expressão.

Antes de abrir o cofre dos recursos públicos, seria interessante o governo dizer à sociedade qual o valor que poderia ser arrecadado por ano com estas isenções e renúncias e qual o privilégio real destas empresas em relação às demais entidades envolvidas com algum tipo de atividade econômica.

4. Saneamento sob encomenda

O risco externo da ajuda interna também é outro fator que precisa ser medido com cautela. Faz um ano que o capital estrangeiro foi legalmente autorizado a entrar nas empresas brasileiras de mídia (rádios, TVs, jornais e revistas) no limite de 30%. Indagados pela imprensa especializada, os investidores não pensam duas vezes ao confirmar o potencial do país para o mercado de comunicação e de entretenimento. Curiosamente, nenhum negócio de vulto foi fechado. O baixo interesse dos futuros sócios deve se basear no receio de todo player: dívidas milionárias e necessidade de investimentos em infra-estrutura ? neste caso, para financiar a introdução da tecnologia digital.

Da maneira que for conduzida, a "Operação Midiabrás" pode ser o empurrão que faltava para o saneamento do caixa dos grandes conglomerados e o ingresso definitivo dos principais atores internacionais no imaginário da população brasileira. Na TV por assinatura, setor em que a limitação ao capital estrangeiro foi originariamente menor, a composição societária das operadoras mostra até onde vai o apetite dos gigantes. Juntas, Sky e DirecTV já controlam mais de 30% da base de assinantes. Ambas estão sob o controle internacional do magnata Rupert Murdoch, proprietário da News Corporation..

Para quem se recorda do processo de privatização do Sistema Telebrás, quando recursos públicos sanearam financeiramente as empresas posteriormente vendidas a consórcios majoritariamente multinacionais, vale o paralelo de que a mão benevolente do Estado neste episódio também pode representar o repasse de um setor estratégico da economia e da cultura ao capital internacional sem nenhum tipo de controle do Estado ou da sociedade.

Nos primeiros dias do novo ano, uma parte do "governo em disputa" iniciou sondagens com a pretensão de montar a solução final da crise. Em análise está a situação de crise emergencial, em que as empresas seriam apoiadas pelo sistema bancário via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e outra mais conjuntural, que incluiria até a formulação de uma política pública para a área das comunicações.

Sobre as duas, muita gente tem o que falar e opinar. À luz de velas e a portas fechadas foi a maneira como os presidentes sempre trataram dessas questões. Talvez esteja na hora de Lula ensinar a seus comandados que mídia não é mais apenas assunto de Estado. Mas de sociedade.

(*) Jornalista