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(*) Prefácio de Alberto Dines para A Herança de Sísifo, de Lira Neto. Edições Demócrito Rocha, 208 páginas. Preço a definir. Pedidos pelo fone (85) 255.6256 ou para <edr@opovo.com.br>
O mito de Sísifo contém duas interpretações antagônicas: a clássica vê o rei de Corinto punido por Zeus com a tarefa de empurrar morro acima uma pesada pedra de mármore que, tão logo chega ao topo, rola morro abaixo. É a metáfora da tarefa infindável, inacabada e insatisfatória. Porém jamais abandonada.
Já o existencialista Albert Camus percebeu na mesma fábula os ingredientes para alimentar a sua percepção pessimista: o esforço justifica-se? A vida vale a pena ser vivida? Faz sentido esta labuta incessante e sem resultados?
Com o seu refinado espírito, o jornalista Lira Neto arma uma provocação a partir do título de seu novo livro. Ao colocar a missão do ombudsman da imprensa dentro do ancestral conflito missão versus desalento, transfere para um plano superior uma questão que pulsa diariamente na seção de cartas e erratas da maioria de nossos jornais ou revistas.
A crítica da mídia tem condições de remediar ou minorar o Mal-Estar da Civilização Mediática? O jornalista, individualmente, tem condições de recusar normas e procedimentos intrínsecos à própria atividade? A edição do dia seguinte é capaz de corrigir cabalmente a edição anterior? O leitor devidamente advertido para a precariedade de um sistema concebido para torná-lo mais informado tem condições de repudiar a desinformação que lhe oferecem em troca? O "controle social" pode funcionar sobre uma indústria que, como as outras, está montada em torno do pressuposto da lucratividade?
Lira Neto, felizmente, não fez a opção niilista. Buscou em Sísifo o seu quinhão de perseverança, resistência. E não o do desespero e capitulação. A prova é a sua disposição em retornar ao combate rememorando-o.
Nestas páginas, em que estão reunidas as melhores colunas assinadas por Lira Neto, durante o tempo em que exerceu o mandato de ombudsman do jornal O Povo, está registrada a façanha de pretender implantar no Ceará um jornalismo de qualidade, responsável e ético. Não foi em vão, deixou frutos. Está evidente que Lira Neto, diante da herança de Sísifo, optou pela missão interminável. E duradoura.
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Lira Neto
(*) Título do OI para a introdução de A herança de Sísifo
Sem sombra de dúvidas, em termos profissionais, o convite parecia tentador além da conta. Mas, ao mesmo tempo, no plano pessoal, desconfiava que a experiência poderia se revelar terrivelmente assustadora. Após oito anos ininterruptos de batente na redação do O Povo, com passagens por várias editorias e pelos mais diversos cargos, fui surpreendido pela presidência do jornal, na pessoa de Demócrito Dummar, que apontara meu nome para ocupar o lugar de ombudsman, em substituição à veteraníssima Adísia Sá. Um tanto quanto atônito, pedi um tempo para avaliar a inesperada proposta. Além da imensa responsabilidade que tal decisão certamente envolvia, confesso que me sentia desprovido da necessária experiência para encarar tamanho desafio.
Com 34 anos, tinha pelo menos uma certeza: não me encaixava no perfil que ficou mundialmente consagrado pelos que, antes de mim, haviam exercido o papel de "ouvidor" na imprensa. Faltavam-me entre outros atributos, por exemplo, os cabelos brancos, sinal universal de sabedoria e de experiência, marca registrada que só o tempo nos sabe dar. De fato, na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, lugares em que a figura do representante dos leitores encontra-se devidamente consolidada, o ombudsman costuma ser um circunspecto senhor de alvas e ralas madeixas, sempre recrutado entre seleto grupo de jornalistas em final de carreira. Coroamento de longa e bem-sucedida trajetória profissional.
O fato de vir a substituir Adísia Sá – jornalista de cabeleira respeitavelmente branca, fundadora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, profissional de imprensa com extensa folha de serviços prestados à categoria – era outro agravante. Pouco depois vim a saber que a sugestão de meu nome para o cargo partira de ninguém menos do que da própria Adísia, a quem os jornalistas cearenses, sempre em sinal de justa e gentil deferência, costumam chamar de "professora" – tendo ou não eles a chance de ter sido um dia seus alunos.
O jornalista Alberto Dines, outra cabeça impecavelmente branca e uma das maiores competências éticas da imprensa brasileira, lenda viva do jornalismo nacional, foi um dos que me convenceram a assumir os riscos de tomar na unha o inesperado convite. Pelo telefone, Dines dedicou-me carinhosas palavras de confiança e incentivo. Mas, desde já, recomendava-me cautela e ponderação. Do alto de sua experiência, o mais importante e mais influente crítico da mídia do país já antevia: o desafio que eu teria pela frente não seria nada pequeno.
Desde os primeiros dias no cargo, percebi que minha vida acabara de dar uma guinada, profissional e pessoal. Não demorou constatar que a rotina de um ombudsman é, antes de mais nada, beneditina. Até então assumido e inveterado discípulo de Morfeu, condicionei-me a acordar, a partir dali, todos os dias, às cinco da manhã. Hora em que, ainda mal saído da cama, entregava-me à tarefa de começar a ler a edição do O Povo de ponta a ponta, analisando cada matéria, cada notícia, cada reportagem, comparando-as em seguida com o que havia sido publicado nas páginas de nosso principal concorrente.
Compreendi que só assim, madrugando, seria possível enviar religiosamente, dentro do horário previsto, um comentário interno de razoável consistência, que deveria ser lido até o final da manhã pela redação e por toda a diretoria do jornal. Em tais comentários, privilegiava a análise de conteúdo, pondo o foco de minhas considerações principalmente sobre a angulação, a precisão e a ética dos textos publicados naquele dia. Erros de ortografia e pequenos deslizes gramaticais eram apontados apenas de relance, pois, se comparados aos escorregões éticos que as empresas de comunicação e nós, jornalistas, insistimos diariamente em cometer, têm secundária importância.
A tarde era para a leitura detalhada de revistas semanais e de jornais de outros estados. Era preciso comparar minuciosamente as coberturas, traçar paralelos, estabelecer relações, detectar possíveis lacunas e equívocos nas páginas do O Povo. Essa overdose de notícias provocou-me momentos de extremo estresse informativo. Ressalte-se que, à época em que exerci o mandato de ombudsman, possuí a falsa prerrogativa de trabalhar, durante o ano inteiro, sem sair de casa. Esta "clausura" era uma forma – pensava o jornal – de evitar que o "representante dos leitores" sofresse o constrangimento de cruzar todos os dias, nos corredores da empresa, com colegas que seriam o alvo prioritário de suas críticas. O que, entretanto, parecia providencial malha de proteção a favor do ombudsman acabaria revelando-se dolorosa armadilha.
À minha disposição, é verdade, fora colocada toda uma parafernália eletrônica para o desempenho da função. Fax, linha telefônica adicional, computador, Internet, e-mail, secretária eletrônica. Além de assinaturas dos principais jornais e revistas da imprensa brasileira. Minha casa transformara-se, da noite para o dia, em um bem-equipado observatório mediático. Foi tarde demais que percebi estarem, assim, sendo apagadas as necessárias fronteiras entre os territórios do trabalho e da vida privada. O resultado é que, obcecado, passei a ser ombudsman 24 horas por dia, sem direito a fins-de-semana, feriados e maiores intervalos para o lazer. Respirava jornal 24 horas por dia, sete dias por semana. Afinal, os leitores não escolhiam hora nem dia para ligar, fazer reclamações, registrar o protesto contra erros e imprecisões do jornal. A secretária eletrônica funcionava como escudo estratégico; mas a tentação de ouvir imediatamente o que os leitores tinham a dizer muitas vezes chegava a tirar-me da cama nos horários mais impróprios.
Era, todavia, exatamente esse o ponto em que o trabalho de ombudsman se revelava mais gratificante. Aprendi que o contato direto com o leitor é a experiência mais reveladora que possa existir para qualquer jornalista. Nesse exercício de alteridade, o leitor deixa de ser para nós mera e silenciosa abstração. Nas mensagens ao ombudsman, ele demonstra toda a sua capacidade de ler nas entrelinhas, toda a sua sensibilidade para desnudar intenções mal-disfarçadas, enfim, extraordinária competência para ler o jornal com olhos livres.
Mas o corporativismo e a impermeabilidade à autocrítica, características típicas dos jornalistas, não esperariam muito para se manifestar. Infelizmente, ser ombudsman é também colecionar arestas e desafetos entre seus pares. Desse modo, muitos de meus comentários motivaram afetadas respostas de colegas, que se mostravam indignados com o fato de terem seu trabalho avaliado publicamente no jornal, dissecado na coluna semanal das segundas-feiras – dia em que O Povo publica as análises do ombudsman. Invariavelmente, a coluna era escrita a partir de um assunto polêmico, pinçado entre aqueles que, durante a semana anterior, haviam sido privilegiados pelos comentários internos. Ou seja: entre aqueles assuntos que a redação já havia tido chances de contra-argumentar, ponderar, revidar, expor seus pontos de vista.
Por entender que a função do ombudsman tem natureza essencialmente pedagógica – tanto para os jornalistas quanto para os leitores – sempre tomava o cuidado de, a partir de um caso específico, desenvolver como pano de fundo discussão mais ampla, buscando ser o menos reducionista possível. O eixo central dos comentários girava em torno de questões fundamentais, tais como o papel da imprensa para a construção da cidadania e a responsabilidade social da informação. Com isso, procurava ir além da mera discussão pontual sobre os erros cometidos pelo jornal.
Em vez de simplesmente apontar os erros, sentia-me na obrigação de contextualizá-los, analisá-los sob o prisma da ética profissional e do compromisso do jornalista com a sociedade. Inclusive é isso que, penso eu, mantém a vitalidade dos textos reunidos neste livro. Por mais que alguns deles possam parecer à primeira vista datados demais, episódicos demais, a reflexão em torno dos fatos que os motivaram sempre permanecerá, a meu ver, atualíssima.
Vale dizer que o título do livro contém uma provocação que me foi sugerida, à época, pelo leitor Jorge Pieiro, um de meus mais assíduos e pertinentes colaboradores durante o tempo em que permaneci no cargo. Refere-se ele ao mito de Sísifo – aquele que fora condenado pelos deuses a rolar enorme pedra montanha acima, vê-la em seguida despencar e tornar a carregá-la, eternamente, numa tarefa sem fim. A imagem me pareceu por demais apropriada. Com efeito, uma das maiores angústias do ombudsman é perceber que os erros e pecados da imprensa são sempre os mesmos e se repetem com desconcertante freqüência: acusar sem provas, julgar e condenar, não ouvir o outro lado, distorcer falas, maquiar a realidade, expor misérias intimas com voraz e ensandecido apetite.
Às vezes, nos comentários internos e colunas, o ombudsman parece estar falando sempre a mesma coisa, pregando no deserto, batendo na mesmíssima e enfadonha tecla. Diagnosticados os problemas, nem sempre havia interesse ou disposição suficientes, da parte do jornal, para debelá-los de uma vez por todas. Muitas das questões levantadas publicamente – é duro reconhecer – ficaram sem definição. O que não significa dizer ter todo o esforço sido em vão. Muito pelo contrário. Acredito firmemente que a intervenção do ombudsman foi decisiva para que velhos problemas tenham chegado – ou ainda estejam chegando – a bom termo. A perversa contradição entre a crítica em editorial ao trabalho infantil e a utilização de pequenos gazeteiros como mão-de-obra na venda do jornal, por exemplo, é um deles. Um problema ainda não de todo resolvido, é bem verdade. Mas já nota-se louvável esforço de enfrentá-lo efetivamente, de não varrê-lo para debaixo do tapete, como historicamente vinha sendo feito.
Isso significa que, se por um lado, a tarefa do ombudsman é inacabada – tal qual a de Sísifo –; por outro, produz efeitos que se vão constituindo lentamente, ao longo do processo. Como toda ação pedagógica, ela demanda tempo para maturar, exibir resultados, mostrar sua real eficácia. É forçoso reconhecer que, muitas vezes, não temos os olhos treinados ou a paciência histórica para percebê-lo. Mas a pedra que é levada ao alto da montanha nunca mais será a mesma que rolou ladeira abaixo. Nessas idas e vindas, fica um pouco de sua essência de pedra pelos caminhos, seja nas marcas profundas deixadas por ela na areia, seja nas mãos calejadas de quem a conduz.
A arte de carregar pedras como ombudsman na imprensa pressupõe a administração de conflitos. E entre os momentos de tensão máxima na relação entre ombudsman e redação – muitos deles revividos nas páginas que se seguem – bastaria citar aqui dois deles. O primeiro é a manifestação explícita de corporativismo por parte de meus colegas de ofício. Ao criticar o sensacionalismo de determinada matéria sobre um drama humano estampado impiedosamente na primeira página do jornal, recebi um abaixo-assinado, enviado por 34 colegas, redigido em linguagem agressiva, descortês, beirando o impublicável. Entre os nomes que encabeçavam as assinaturas, estavam os de alguns amigos bem próximos, gente de minha mais sincera convivência afetiva, repórteres e editores que sempre tive na conta de profissionais de inegável competência e de comprovada sensibilidade jornalística. Foi um choque e tanto.
Em outro momento, ao criticar o conflito de interesses vivido por alguns jornalistas que fazem, simultaneamente, o duplo papel de repórter e assessor de imprensa de empresas ou políticos, fui acusado por colegas de ter "rabo preso" e de também "servir a dois senhores", pois, além de ombudsman, era, à época, professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará. A comparação, é claro, era totalmente descabida, absolutamente fora de propósito. Em vez de se conflitarem, as funções de ombudsman e professor de jornalismo são, na verdade, complementares. No entanto, apesar de meus argumentos nesse sentido, fui levado a renunciar à vaga de professor universitário, conquistada por concurso público junto à UFC. O sonho de uma carreira acadêmica ficava por ora suspenso, de modo melancólico.
Também não foram poucos os momentos em que o alvo das críticas do ombudsman passou a ser não só os jornalistas, mas a própria empresa para a qual trabalhava. Ao revelar e discutir as contradições inerentes aos negócios e interesses de toda e qualquer empresa de comunicação, sabia estar trilhando delicado e perigoso terreno, solo movediço, verdadeiro campo minado. Mas tenho que reconhecer o fato de, mesmo nos instantes mais tensos dos confrontos daí decorrentes, ter sempre estado seguro de que a presidência do jornal compreendia a importância da existência do ombudsman. Nunca tive uma única vírgula de minhas colunas alteradas por quem quer que seja. Afinal de contas, eu não estava fazendo mais do que cumprir à risca o trabalho para o qual havia sido contratado. Em essência, todos nós sabíamos que ter um ombudsman sério e renitente agrega credibilidade ao jornal. E é justamente disso, credibilidade, que os jornais vivem.
Sei que, no corre-corre diário das redações, nem sempre os jornalistas encontram tempo para parar e refletir sobre o que estão fazendo. Existem os prazos perversos de fechamento a cumprir, o estresse característico à profissão, a pressão pelo furo, a briga pela melhor manchete. O tempo não pára. Não há chances para elucubrações mais demoradas. Liga-se simplesmente o piloto automático e deixa-se levar pela adrenalina e pelo instinto. Penso que é nisto, no papel de ser a consciência incômoda de um produto construído numa velocidade quase incompatível com a serenidade da reflexão, que reside a verdadeira importância do ombudsman.
Espero assim que Herança de Sísifo venha a dar uma modesta contribuição nesse sentido. Ao abrir velhas feridas, muitas delas ainda em fase de cicatrização, corro o risco de acirrar ânimos aparentemente adormecidos. Não poderia, entretanto, deixar para trás esse testemunho que julgo inadiável. Compartilhar com colegas e, principalmente, com estudantes de jornalismo, a experiência que modificou substancialmente minha relação com a profissão que um dia abracei.
A verdade é que, ao longo de um ano no mandato de ombudsman, pude sentir que muitas das minhas posturas e certezas sobre o jornalismo foram sendo revistas, redimensionadas ou, quando menos, postas em xeque. O exercício da reflexão diária sobre a profissão, os embates com os colegas, o contato com os leitores, tudo se revelou extremamente enriquecedor. Minha principal certeza é de ser essa uma experiência da qual ninguém jamais poderá sair da mesma forma como entrou. Espécie de divisor de águas na carreira de qualquer jornalista. E, também, uma forma rápida e definitiva de ganhar, em um ano, os primeiros e sintomáticos cabelos brancos, como os que hoje exibo.
Justamente – ora vejam – aqueles mesmos cabelos brancos que um dia julguei me faltarem para encarnar a herança de Sísifo.
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