DOMINGO ILEGAL
Muniz Sodré (*)
Três eventos significativos:
1. Há pouco mais de
um mês, todas as circunstâncias da filmagem da cena
de uma personagem sendo morta por bala perdida numa rua da Zona
Sul do Rio de Janeiro (“Fernanda”, da telenovela Mulheres Apaixonadas,
da Rede Globo de Televisão) foram tratadas pela imprensa
como se fosse um fato do real-histórico.
2. Semanas depois de a cena ter sido transmitida ao grande público, uma passeata em favor do desarmamento, também na Zona Sul do Rio, contou, além dos populares de sempre, com a presença de atores dessa mesma novela, dentre os quais Tony Ramos numa cadeira de rodas, para simular o personagem que, na ficção eletrônica, ficara gravemente ferido em conseqüência do citado episódio da bala perdida.
3. Agora, em setembro, o programa Domingo Legal (Gugu Liberato, SBT) transmite uma entrevista, de aparência jornalística, em que dois supostos criminosos encapuzados fazem ameaças a autoridades e jornalistas de um outro canal de tevê. Diante da reação dos atingidos e das perspectivas de punição por parte dos órgãos competentes, o apresentador Gugu Liberato desculpa-se publicamente sem, entretanto, conseguir pôr um fim às mais variadas manifestações de indignação, uma das quais se traduziu no cancelamento de um patrocínio.
Há um ponto em comum entre os três eventos: a ficcionalização do real. Aos dois primeiros, o público já está há muito tempo acostumado. Duas décadas atrás, a propósito da forma expressiva da televisão, já observamos que “do ponto de vista físico ou topográfico, o espaço da tevê compreende duas pequenas cenas: a primeira, o lugar varrido pelo feixe eletrônico das câmaras; a segunda, a família. Do ponto de vista topológico ? isto é, das configurações ou das posições formais das partes no discurso ?, o espaço televisivo abrange o da família, na medida em que o redefine como uma espécie de geratriz semântica para as suas mensagens” (O Monopólio da Fala, Editora Vozes). Em termos práticos, a televisão incorpora à sua produção de imaginário uma matriz “familiarizada” da realidade, ampliando o alcance espacial de seu espetáculo.
Nada disto é radicalmente estranho aos historiadores da estética, que bem sabem o quanto a atual “sociedade do espetáculo” foi antecipada pelo estilo barroco. O teatro barroco, em especial, buscou realizar o que se chamou de “espetáculo total”, por meio da combinação da dramaturgia com os mais variados recursos cênicos, com o objetivo de produzir ilusão e assombro. Claro, porém, que ficava evidente a distância entre a realidade histórica e uma cena teatral que apenas estimulava o fantástico por meio de mecanismos técnicos.
É tal evidência que tende a desaparecer na espetacularização promovida pela mídia. O “total” de hoje é certamente propiciado pelas tecnologias da comunicação conjugadas ao mercado, mas excede o aspecto puramente técnico, já que incorpora a realidade cotidiana efetivamente vivida. O cinema realiza (materializa) uma ficção, enquanto a tevê ficcionaliza ou imaginariza o real.
Tudo como dantes
Os programas da mídia eletrônica vivem operando o tempo inteiro este curto-circuito entre imaginário e real, de tal maneira e em tal magnitude que se debilita a capacidade do senso comum de fazer a distinção entre o verdadeiro e o verossímil, isto é, entre o que efetivamente acontece e as simulações do acontecimento. A telenovela é um gênero que se presta mais facilmente à confusão, mas o fenômeno ocorre por toda parte no que diz respeito ao império imagístico da mídia. Quem votou no “caçador de marajás”, jovem e partidariamente descompromissado, estava de fato votando nos simplórios protagonistas de novelas como O Salvador da Pátria ou Que Rei sou Eu?.
Por que então a celeuma em torno da farsa no Domingo Legal? É que ainda há simulações legal e moralmente proibidas, por motivos de segurança pública. De ordem legal: o artigo 53 do Código Brasileiro de Telecomunicações veta expressamente o tipo de armação, com ameaças a pessoas reais, montada pelo programa do Gugu Liberato. De ordem moral: no limite, para se impedir que o princípio de credibilidade do jornalismo desça pelo ralo. Por isto, foram escandalosas as falsas entrevistas publicadas pelo repórter Jayson Blair no New York Times, assim como as cinematográficas falsas façanhas da combatente americana no Iraque.
Mas tudo isso se torna cada vez mais freqüente, num claro sintoma histórico de resvalamento do real para o imaginário, vigiado apenas pela imprensa. Há quem sustente que o público americano, por exemplo, não “está nem aí” para a confusão entre o verdadeiro e o verossímil.
A verdade mesmo é que, na sociedade midiatizada de hoje, a mídia eletrônica pode ser tão alucinatória quanto um estupefaciente qualquer. A própria reação das instituições tradicionais acaba, sem disto se aperceber, entrando no jogo, ao se rearrumarem as coisas dentro da própria linguagem que o sistema televisivo entende e assimila: a da lógica empresarial.
Funcionários serão demitidos, patrocinadores fingirão um certo amuo, Gugu poderá ser punido com a não-obtenção de mais um canalzinho de TV etc. Poderá… Mas tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes: a sociedade de venda nos olhos, a televisão com seu capuz.
(*) Jornalista, professor-titular da UFRJ e escritor