DIRET?RIO ACAD?MICO
PESQUISA
"Gente comum" na programação da TV aberta brasileira
Trabalho apresentado no VIII SIPEC, Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo
Carlos Alberto Ávila Araújo (*), André Luiz de Castro Silva (**) e Morgana Garcia Carvalho (***)
Em outubro de 2000, teve início a pesquisa "Dramas do cotidiano na programação superpopular da TV brasileira", envolvendo uma equipe do curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas de Caratinga, a partir da aprovação de três bolsas de Iniciação Científica. Essa pesquisa faz parte de um projeto maior, a pesquisa integrada "Narrativas do Cotidiano: na mídia, na rua", desenvolvida por um grupo de professores-doutores dos departamentos de Comunicação Social e História da UFMG, reunidos em torno do GRIS, Grupo de Estudo e Pesquisa em Imagem e Sociabilidade.
O projeto integrado tem por objetivo o estudo dos muitos discursos e imagens que constroem e reconstroem, cotidiana e dinamicamente, as múltiplas identidades brasileiras, a partir de diferentes lugares de fala. É dividido em subprojetos que se debruçam, cada um, sobre um "lugar de fala" específico: a recente produção cinematográfica nacional, o jornalismo impresso, a comunicação comunitária, entre outros.
A programação "superpopular" não é entendida, pelo grupo de pesquisa, como um gênero distinto (e novo) da TV aberta, que disputaria lugar no espaço televisivo junto com as novelas, o jornalismo, os filmes, os programas de auditório, os documentários, os shows, os programas de entrevistas e as revistas eletrônicas. Ao longo do trabalho inicial já feito até aqui, o grupo de pesquisa tem percebido que essa programação se trata, mais, de um determinado movimento da TV aberta brasileira, num momento histórico específico, que trabalha um certo conjunto de características (em termos tanto de conteúdo quanto de forma) ? conjunto esse que se espalha, em maior ou menor escala, nos diferentes gêneros televisivos.
Entre essas características comuns à programação "superpopular" destacam-se: a) o fato de exibirem fatos reais, dentro de um movimento mundial de exibição dos assim chamados reality shows; b) apresentação de aspectos da vida íntima das pessoas; c) utilização de pessoas comuns como protagonistas; d) exploração de um determinado conjunto de fatos, tais como tragédias, deformidades físicas, brigas conjugais, assassinatos, episódios envolvendo sexualidade; e) criação de jogos, torneios, gincanas, marcadas pela disputa e pela busca de prêmios; f) adoção de um papel junto ao público, seja balcão de denúncia, caçadores de bandidos, divã de psicanalista ou "máquina" realizadora de desejos; g) programas feitos com baixo custo, marcados pela espontaneidade e a improvisação.
É bom lembrar que essas características não são inéditas no espaço da TV brasileira. O que é inédito é a atual conjugação destas características num amplo movimento que tem envolvido todas as emissoras de forma auto-referenciada.
Para a produção deste artigo, a ser apresentado no VIII SIPEC, o grupo de pesquisa escolheu apenas uma das características levantadas, de forma a promover um diálogo maior com o tema do encontro, "A sociedade da informação e as novas mídias: participação ou exclusão?". Diante desse tema, optamos por trabalhar apenas com a questão da presença de "pessoas comuns" na TV brasileira [por "pessoas comuns" entendemos aquelas pessoas que não são funcionárias da emissora de TV nem estão representando um outro papel, isto é, estão ali assumindo a identidade que possuem na vida real; a questão não pode ser devidamente problematizada neste artigo], realizando uma discussão que procura caracterizar como se dá a participação desse "popular" no espaço televisivo (onde e em que tipo de situações, e de tratamento, o "povo" aparece na TV) para em seguida discutir se o aumento da participação popular na TV representa uma conquista, uma ocupação ativa, um momento de democratização, ou se esse aumento traduz mais uma estratégia da indústria cultural, que utiliza os "dramas cotidianos" de pessoas simples como matéria-prima na acirrada disputa por maiores índices de audiência. [A pesquisa foi iniciada em outubro de 2000. Até o momento, o grupo se dedicou a duas tarefas. A primeira, uma pesquisa exploratória (com gravação e análise) dos programas Território Livre, Cidade Alerta, Silvia Poppovic, Programa do Ratinho, entre outros. A segunda, uma pesquisa bibliográfica e documental sobre a evolução da programação das emissoras Globo, SBT, Bandeirantes e Record, com descrição e caracterização de programação "popular" e "superpopular". Deste trabalho, ainda não concluído, surgiram algumas conclusões preliminares, entre as quais o levantamento das características da programação superpopular e as idéias expostas nesse artigo].
Antecedentes e precursores
Nos limites deste artigo, não cabe perfazer toda a história da programação da TV brasileira, nem mesmo da presença de "pessoas comuns" como destaque da programação. Vale ressaltar, contudo, alguns antecedentes que lançaram, inclusive, alguns dos modelos do que hoje são os programas superpopulares.
A primeira referência, em termos de TV brasileira, da presença de pessoas comuns, gente que não fazia parte do métier, mas que por alguns minutos ocupava o "espaço da fama" são os programas de auditório. Abelardo Barbosa, o Chacrinha, e depois Silvio Santos, entre muitos outros, comandavam programas com atrações diversas, como apresentações de grupos musicais do momento, atrações circences, entrevistas com ídolos do esporte. Entre essas apresentações, destacam-se os "shows de calouros", em que pessoas "comuns" tinham a oportunidade de mostrar seus "talentos". O número de inscritos era tão grande que era necessário fazer uma seleção ? apenas os melhores tinham direito a ter seus "quinze minutos de fama". Além disso, "pessoas comuns" eram parte essencial desse tipo de programa no auditório, gritando, cantando em coro, respondendo aos apelos dos animadores, participando das gincanas, votando nas atrações ? e, principalmente, comparecendo em massa e repetidas vezes, muitas vezes organizados em caravanas.
Outra referência é o telejornalismo. Desde a época da ditadura, o telejornalismo brasileiro viu crescer a supremacia da Globo no setor. O Jornal Nacional, primeiro jornal veiculado em cadeia nacional de TV, consolidou um perfil de jornal que se dedica mais a notícias ligadas a centros de poder (política e economia, em fatos envolvendo pessoas públicas), cultura e comportamento (astros da TV, ídolos do esporte, milionários, enfim, pessoas famosas, "estrelas"), direcionado principalmente ao público A e B. As pessoas comuns (o povo, a favela, o morro) aparecia sempre distante, "olhado da janela de uma limusine", em matérias de destaque menor e com tratamento pouco aprofundado. Na esteira de um modelo que dava certo, os telejornais das demais emissoras repetiam o padrão, tratando "gente comum" como matéria-prima apenas de noticiário de polícia em matérias que não mereciam tanta aproximação.
Por fim, é importante destacar as telenovelas. Por terem como protagonista atores, isto é, profissionais da TV, e se tratarem de ficção (com personagens e tramas "inventadas"), parece natural que esse espaço não seja ocupado por "gente comum". Ainda assim, é importante, dentro do quadro que estamos compondo, analisar o espaço telenovelístico. A telenovela, mesmo sendo ficção, sempre procura estar ancorada no real, sempre procura pela máxima verossimilhança. Apesar disso, na imensa maioria do que foi produzido na história do gênero no país, é possível perceber que os personagens são muito mais inspirados em pessoas "especiais" (milionários, ídolos, pessoas públicas) do que em "pessoas comuns", num movimento semelhante, em certos aspectos, ao do jornalismo. Com exceções, porém, é importante destacar. Mas, no conjunto da produção nacional, o popular, a pessoa comum, tem papel sempre periférico, coadjuvante. O popular está contemplado lá, até porque se não estivesse não se conseguiria a verossimilhança. Mas está em posição inferior, sem destaque.
Entre 1989 e 1991 pode-se notar um processo de transição entre o quadro descrito até aqui e um novo, que vai se consolidar ao longo da década de 90. O SBT, conseguindo enfim equilibrar suas contas, partiu para uma estratégia dupla, que buscava "aumentar a qualidade da programação" em determinados horários, mas também ganhar "popularidade" em outros. Foram contratados Jô Soares, Carlos Alberto de Nóbrega e Bóris Casoy. A emissora desenvolveu uma programação para as classes altas nos fins de noite, como Jô onze e meia e Hebe Camargo, e no horário nobre para as classes mais baixas, como as novelas mexicanas e o Aqui Agora, precursor de uma nova forma de se fazer telejornalismo. Inspirado em antecessores como o Povo na TV e o Homem do Sapato Branco, o jornal rompia com o modelo global que as outras emissoras tentavam, com poucos méritos, perseguir. O Aqui Agora apostava num estilo mais realista, apresentando matérias sem cortes, sem edição, em que o repórter acompanhava "em tempo real", com a imagem tremendo, o desenrolar dos fatos. Diariamente, o programa trazia roubos, assassinatos, estupros, brigas entre vizinhos, problemas do consumidor, ganhando rapidamente a credibilidade da população mais pobre por conseguir uma imagem de "jornal do injustiçado", jornal que mostra o Brasil como o Brasil realmente é ? e que faz justiça num país cujas instituições judiciárias são praticamente falidas.
Numa linha diferente, em 1991 a Bandeirantes estreou o Programa Silvia Poppovic. Apresentado pela jornalista e ex-apresentadora do Jornal da Record Silvia Poppovic, em tom intimista e espontâneo, o programa debatia temas ligados à história de vida de pessoas comuns, assuntos cotidianos e ligados ao comportamento das pessoas, explorando os testemunhos pessoais dos convidados aliados à opinião de especialistas e personalidades.
A Record, que passou a década de 80 no ostracismo, é comprada em 91 pela Igreja Universal do Reino de Deus. Um processo lento começa a acontecer, com a transformação da emissora em rede, a compra de filmes e séries americanas mais populares e a contratação, em 93, de Ana Maria Braga, para o programa Note e Anote. A extinta TV Manchete, em 1990, veicula a novela Pantanal. Campeã de audiência, a novela apostava num estilo diferente do modelo consolidado pela Globo: tema realista, atores pouco conhecidos, personagens mais "simples", mais próximos da "gente comum" que é o público de telenovela. A partir daí, abre-se toda uma discussão sobre as possibilidades de se fazer telenovela no país ? discussão que envolve iniciativas, por várias vezes, de SBT, Bandeirantes e Record, de produzir telenovelas com estilos alternativos.
Até a Globo muda nesta época. Em 30 de março de 1989 estreava o Domingão do Faustão, numa tentativa de aumentar o nível de popularização da TV de Roberto Marinho. O programa de auditório mesclou um humor irreverente, artistas globais, jogos e músicos famosos com a possibilidade de apresentar "pessoas comuns" em quadros como as Olimpíadas do Faustão, as Pegadinhas e as Vídeo-Cassetadas.
Na virada da década, essas iniciativas deixam mais claras as possibilidades de quebra de modelos no âmbito da TV brasileira, na mesma medida em que evidenciam a luta por índices de audiência, visível na definição de diferentes estratégias por parte das emissoras. "Gente comum", entre outros elementos, se tornam opções possíveis de serem utilizadas como alternativas para o conteúdo e o formato da programação.
A consolidação do superpopular
A partir de 1994, o vertiginoso crescimento das vendas de aparelhos de TV muda o perfil do público da TV brasileira. Entre 94 e 97, 28 milhões de aparelhos de televisão foram comercializados no mercado. Com isso, 6,3 milhões de lares adquiriram sua primeira TV nesse período ? e lares que pertencem a pessoas das classes D e E. Em 94, 75,7% dos lares brasileiros tinham TV. Em 97, esse número chegou a 92,6%. Esse período coincide, ainda, com a difusão da TV por assinatura no país, sobretudo para pessoas das classes A e B.
Esse mesmo período, marcado por essa "mudança de público", é caracterizado por grandes mudanças na programação das emissoras ? uma mudança bastante marcada pelas experiência do início da década.
Uma das novidades é o programa telejornalístico Cidade Alerta, no final de 95. Seguindo a fórmula do Aqui Agora, o jornal apresenta assassinatos, roubos, assaltos, tragédias, em matérias longas, com pouco tratamento de edição, longos testemunhos de "pessoas comuns" (geralmente como vítimas), tom denunciatório e emotivo.
Em março de 1997, Silvio Santos levou para o SBT Albert Lewitinn, que criou uma cópia dos programas americanos que "lavam roupa suja no vídeo", o Programa Márcia, apresentado por Márcia Goldschimidt. No programa, pessoas com problemas familiares iam ao "consultório" com esperança de resolverem seus problemas ? por exemplo, fazer um teste de DNA. Além disso, pessoas envolvidas em conflitos, como casais que acabaram de se separar, "batiam boca" fervorosamente no programa, com as pessoas do auditório dando palpites sobre suas vidas e especialistas emitindo pareceres sobre as questões. O programa conseguia média de 13 pontos no Ibope (cada ponto equivalendo a cerca de 80 mil telespectadores na Grande São Paulo).
Outro programa que apostava na exposição de problemas íntimos, e que se propunha ser um espaço de resolução de questões, foi o Ratinho Livre, veiculado na TV Record e apresentado por Carlos Massa. Outras atrações do programa eram a exposição de pessoas doentes, deformadas ou com hábitos incomuns. Seu sucesso foi estrondoso: em setembro de 97 ele estreava, com 6 pontos no Ibope. Um ano depois já atingia 17 pontos. Com seu estilo irreverente, contraditoriamente marcado por moralismo e palavrões, Ratinho várias vezes alcançou índices do Ibope maiores do que os da Globo ? em 5 de março de 1998, por exemplo, chegou aos 36 pontos, contra 10 da Globo.
O fato motivou uma transação milionária, a partir da qual o apresentador foi contratado pelo SBT para comandar o Programa do Ratinho. Firmado como aquele que "leva o povo para a TV", também construiu uma imagem de alguém que consegue soluções para problemas da população (pequenos casos que a justiça comum não resolvia), tem a coragem de cobrar mais responsabilidade dos políticos e autoridades, e "não deve nada a ninguém". Com os bons índices de audiência, surgiram novos quadros, como Defesa do consumidor (denúncias de pessoas comuns prejudicadas pelo comércio), Fórum de pequenas causas (que resolve casos de pendência entre vizinhos, amigos, parentes que não conseguem ser atendidos pelo juizado de pequenas causas), Os casos médicos (onde Ratinho ajuda as pessoas que não encontram recursos nos hospitais públicos e particulares ou que não tenham dinheiro para pagar algum tratamento). Um dos quadros de ajuda mais procurados é a oferta de exames de DNA para reconhecimento de paternidade.
A guerra dos domingos
Também desde 1997 os domingos, na TV brasileira, têm sido o momento de maior evidência da luta entre as emissoras por índices de audiência, bem como da articulação de diferentes estratégias por parte das duas maiores emissoras do país, Globo e SBT. Desde essa época o Domingão do Faustão" e o Domingo Legal travam uma briga exaustiva pela audiência, com monitoramento instantâneo da audiência, disputa por exclusividade de atrações e planejamento estratégico de novos quadros, num verdadeiro "laboratório" de experimentações, que motiva inclusive a criação de programas novos a serem inseridos na grade semanal.
Os dois programas têm muitas características em comum: bailarinas, artistas e músicos, convidados especiais que participam de quadros e gincanas, um auditório bastante participativo e um animador carismático. Além disso, têm muitos quadros similares, muitas vezes cópias "adaptadas" pelo programa do concorrente. É o caso da Banheira do Gugu, em que moças quase nuas se esfregavam numa banheira, e o quase similar Calor do Faustão, em que também moças quase nuas disputam provas diversas.
Um dia de princesa, do Gugu, e Um dia de sonho, do Faustão, correspondem a outro tipo de quadro presente nos dois programas. Ambos exploram os desejos, os maiores sonhos de "pessoas comuns". No primeiro, cantores e atores, a bordo de limusines, realizam o sonho de uma fã de passar um dia todo a seu lado, passeando num shopping center, ganhando inúmeros presentes e resolvendo pequenos problemas, como uma cirurgia no olho ou um reencontro com o pai. Um dia de sonho tem a mesma proposta: uma fã é levada para conhecer seu "ídolo global". A fã passa o dia todo com o ídolo e participa das filmagens do programa que ele estiver gravando. No mesmo programa, Faustão entra também com o quadro Presentão do Faustão, que realiza os pedidos mais diversos de um espectador qualquer.
A programação recente
Se o Domingão do Faustão já vem, há muito tempo, mudando sua programação a partir da observação do crescimento do rival, a Globo como um todo demorou mais tempo para "se mexer". No que diz respeito à questão do "superpopular", só em 1999 há uma mudança significativa no conteúdo da programação da emissora.
Em junho nasceu o Linha Direta, versão "clean" do jornalismo sensacionalista de Aqui Agora e Cidade Alerta. O programa, semanal, mescla elementos da fórmula consagrada do Globo Repórter com aspectos dos americanos 48 hours e 60 minutes. Linha Direta dramatiza histórias reais de assassinatos, corrupção, traição e seqüestros, utilizando reconstituições, depoimentos de vítimas e familiares, pareceres de especialistas (advogados, delegados, psicólogos), além da narração do apresentador, mantendo um clima de suspense. Com esses ingredientes, alcançou, em seu primeiro ano, uma média de 32 pontos no Ibope.
Ao longo do ano 2000, o Fantástico, revista eletrônica que comanda a noite na Globo, inaugurou vários quadros, procurando repetir o êxito de atrações como o Mr.M. Entre esses quadros, o de maior sucesso foi o Retrato Falado, iniciado em maio. Nele são interpretadas histórias reais e engraçadas vividas por pessoas comuns de todo o país, que escrevem para a emissora. Interpretado por Denise Fraga, o quadro atingiu média de 34 pontos no Ibope nos primeiros meses.
Em julho de 2000, a Globo estreou o programa No Limite, apresentado pelo jornalista Zeca Camargo. Aos moldes dos reality shows americanos que mostram pessoas comuns em diversas situações desafiadoras, o programa é uma cópia do americano Survivor. Trata-se de uma gincana na qual os participantes (em número de 12, divididos em duas equipes) ficam isolados em um local deserto cumprindo determinadas tarefas e passando por provações físicas, além de expostos a dificuldades de relacionamento, sendo vigiados por câmeras 24 horas por dia. Em sua primeira edição, a gincana envolveu provas como uma refeição de olhos de cabra, e se tornou um dos líderes de audiência, com média de 45 pontos do Ibope. Em fevereiro de 2001, a Globo estreou a segunda versão do programa, com novos competidores e novas provas.
Na mesma linha (isto é, uma gincana entre "pessoas comuns" com tarefas desafiadoras, espírito de competição e exploração das dificuldades de relacionamento), a Bandeirantes estreou, em outubro de 2000, o programa Território Livre, apresentado por Sabrina Parlatore. O programa reúne situações da vida real, interatividade e relações humanas. O programa é feito ao vivo de um loft com vários ambientes: a sala de convivência, a sala de jogos, sala família, o Parlatório e o mezanino da verdade. Fazem parte da disputa oito participantes, ganha quem tiver maior número de pontos e for escolhido pelo telespectador.
Também em 2000 a Bandeirantes promoveu uma reformulação do Programa Silvia Poppovic. O programa tornou-se mais dinâmico com a estréia do quadro Aprendendo com a vida, que mostra histórias reais acontecidas com pessoas famosas ou não.
Se a Globo, em 2000, seguindo uma tendência mundial, copiou o Survivor da CBS americana, o SBT já havia feito o mesmo em relação a uma outra rede americana, a ABC, pouco antes. A emissora de Silvio Santos, importando a idéia do programa Who wants to be a millionaire? estreou, em novembro de 1999, Show do Milhão. Trata-se de uma série de perguntas que são feitas a uma pessoa sorteada pela produção. A cada resposta certa, o candidato avança na competição, em direção ao prêmio máximo, de R$ 1 milhão. Na primeira semana, atingiu 23 pontos no Ibope.
A "gente comum" na TV brasileira
O pequeno histórico desenvolvido neste artigo deixa de fora uma série de outros programas importantes, bem como faz apenas descrições rápidas do conteúdo de cada programa. É, contudo, suficiente, para a discussão que se quer empreender aqui. Se, de fato, podemos perceber um crescimento da presença de "pessoas comuns" no âmbito da TV aberta brasileira, cumpre saber de que natureza se reveste esse aumento: trata-se de uma ocupação ativa, uma participação que reflete uma maior democratização dos meios de comunicação de massa? Ou essa maior presença apenas reforça a exclusão, na medida em que as "pessoas comuns" têm sido utilizadas como matéria-prima barata (mas sobretudo eficiente) na acirrada disputa por índices de audiência entre as emissoras?
A discussão precedente nos permitiu um "mapa" da presença de "gente comum" na TV brasileira. A partir desse mapa é possível perceber que, atualmente, a presença de pessoas comuns se dá sobretudo em cinco tipos de situações-modelo:
** O modelo do "circo". Pessoas comuns vão sobretudo a programas de auditório (Domingão do Faustão, Domingo Legal, Silvio Santos), mas também a programas como o Ratinho Livre e o Retrato Falado apenas para se divertir, seja na condição de espectadores ou protagonizando cenas prodigiosas ou engraçadas ? conseguindo, em qualquer dos casos, alguns minutos de fama, exibindo-se no espaço da TV.
** O modelo do "tribunal/divã". Pessoas comuns vão aos programas de TV resolver seus problemas, encontrar solução para alguma dificuldade, ouvir orientações e conselhos ? ainda que isso custe (ou justamente por isso) a exposição, em nível nacional, de suas vidas privadas. O extinto Programa Márcia foi um dos precursores. Atualmente, o Programa do Ratinho e o Programa Silvia Poppovic fazem isso, o primeiro de forma mais agressiva e moralista, o segundo em clima de otimismo e tom ameno.
** O modelo da "máquina de sonhos". Pessoas comuns vêem na TV a atualização da história de Cinderela, com a realização de um sonho mágico. Esse tipo de programa, hoje presente no Faustão e no Gugu, tem no Porta da Esperança, do programa de Sílvio Santos, um antecedente.
** O modelo dos "games". Pessoas comuns participam de torneios, gincanas, disputas das mais variadas naturezas, com o objetivo de conseguir o prêmio oferecido ao vencedor. O Topa tudo por dinheiro, do SBT, é o mais antigo do gênero. Nele, Sílvio Santos quebra ovos na cabeça das pessoas do auditório, realiza provas de touro mecânico no palco, utiliza-se de câmeras escondidas para flagrar reações imprevistas das pessoas e ainda joga "aviõezinhos" de dinheiro para a platéia. As Olimpíadas do Faustão se desenvolviam a partir de diferentes provas, tais como A ponte do rio que cai, a Porta dos desesperados, Os caçadores do tombo perdido. Hoje, No Limite, Território Livre e Show do Milhão, cada um a seu modo, são alguns dos programas do estilo.
** O modelo das "vítimas". Pessoas comuns expressam seu sofrimento ou revolta em relação a casos de assassinatos, estupros, seqüestros e outros atos praticados por criminosos, em depoimentos longos que podem se mesclar a gritos de fúria de apresentadores como Ratinho e Datena. É o tipo de conteúdo de programas como o Programa do Ratinho, Cidade Alerta e Linha Direta, e também de programas que trazem quase exclusivamente vídeos estrangeiros, como Isto é real (SBT) e Os vídeos mais incríveis do mundo (Bandeirantes).
Esses cinco modelos evidenciam que tipo de aparição as pessoas comuns têm no espaço televisivo: situações ridículas, engraçadas, embaraçosas, sofridas. São medos, dúvidas, escorregões, lágrimas, desesperos, que são expostas para todo um país, que alimentam uma indústria que se utiliza estrategicamente desse conteúdo numa guerra auto-referenciada em direção às "ondas" do momento. Em troca, essas pessoas comuns recebem alguns minutos ao lado de seus ídolos, ou momentos expostos na tela, ou a realização de algum exame, ou, no limite, alguns trocados. É, verdadeiramente, uma troca, na qual essas "pessoas comuns" são utilizadas como matéria-prima barata (na medida em que os astros famosos são "caros") e descartados a seguir, para que novos "comuns" ocupem seus 15 minutos.
É possível compreender a questão com o aporte teórico de diferentes correntes da Teoria da Comunicação. Um olhar ancorado na Escola Funcionalista americana (tomando principalmente as idéias de Lasswell) procuraria perceber como esses programas "superpopulares" atuam no sentido de "atribuição de status" a essas pessoas, bem como perceberiam a mídia exercendo a função de outros "órgãos" sociais ? a polícia, a assistência social, o sistema jurídico. Um olhar dirigido a partir dos estudos sobre os Efeitos (que tem estado muito presente nas discussões sobre o controle de qualidade da TV brasileira) ficaria particularmente preocupado com a "imbecilização" da sociedade brasileira, promovida pelos meios de comunicação, com a parceria dessa mesma sociedade brasileira.
Já uma análise frankfurtiana procuraria levantar a questão de como esses programas, a despeito de mostrarem "o povo", continuam promovendo a alienação deste mesmo povo em relação às suas reais condições sócio-históricas ? e o tipo de fato em que essa "gente comum" está envolvida quando aparece na TV, joguinhos, dramalhões, circos, apenas reforça esse papel alienante.
Na perspectiva dos estudos estruturalistas franceses, a constatação de uma contradição pode ser um ponto de partida interessante. Um dos aspectos "estruturais" da cultura de massa, resultado da conjugação da dialética produção/consumo (a exigência capitalista de padronização versus a exigência do consumo cultural que quer sempre o novo), encontrou solução na utilização dos "olimpianos", estrelas midiáticas cuja presença na programação televisiva garante o sucesso antecipado de determinados conteúdos. Nessa linha, o movimento da TV aberta brasileira indicaria uma contramão, ou uma alteração na estrutura da cultura de massa?
Dentro dos debates que animam os estudos latino-americanos sobre a democratização dos meios de comunicação (originária da época da Teoria do Imperialismo Cultural), cabe a questão de avaliar o tipo de participação (passiva, quase mendicante) dos segmentos populares no espaço televisivo, e propor outras possibilidades de aproveitamento desse (não tão) súbito interesse da população brasileira por si própria.
Enfim, muitas são as entradas teóricas possíveis para um trabalho de pesquisa que está apenas começando. Cada teoria "nomeia" um determinado conjunto de questões relevantes, cada corrente problematiza o assunto a partir de um ângulo. Esse não é o momento de fechar o foco, mas de abrir para as múltiplas possibilidades, no contato com um novo objeto de estudo ainda não apreendido. Cada recurso teórico suscita a discussão para um rumo, provoca novas buscas no próprio objeto, convida a um conflito do olhar.
Certo, contudo, é que, dada a expressiva dimensão cultural que a programação "superpopular" alcançou em nossa sociedade contemporânea, e a multiplicidade e a riqueza dos diferentes fenômenos comunicativos detonados a partir dessa expressão, Ratinho, No Limite e todos os outros se mostram como um objeto de estudo ainda ávido por apreensões teóricas que dêem conta de explicar seus vários aspectos. O que significa dizer, de qualquer forma, que evidenciam uma sociedade e uma cultura ainda ricas de possibilidades de compreensão e abertas para as possibilidades de discussão. Um único olhar nunca esgota um objeto. O que dizer de um objeto tão plural, complexo, multifacetado e enraizado em diferentes outros objetos e processos?
(*) Mestre em Comunicação Social pela UFMG, professor do curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas de Caratinga, MG);
(**) Aluno do curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas de Caratinga, bolsista de Iniciação Científica
(***) Aluna do curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas de Caratinga, bolsista de Iniciação Científica
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