TELEJORNALISMO
Antônio Brasil (*)
A tecnologia, para muitos, assusta e, para outros, é uma verdadeira religião. Quando venerada cegamente, é perigosa e quase sempre nos surpreende, tanto para o bem, como para o mal. É o mesmo com o poder das imagens. Podem informar, ilustrar ou seduzir. A imagem é um subproduto poderoso e específico da tecnologia televisiva mas assim como a tecnologia, ambas se tornaram culpadas por quase tudo que existe de errado num mundo pós-moderno. No telejornalismo então, nem se fala. Como seria bom fazer uma TV mais séria, sem sensacionalismo e, onde a imagem fosse somente acessório às preciosas palavras. Imagens, ao contrário, são sempre sensoriais, distorcem os nosso sentidos. As palavras, segundo muitos críticos insatisfeitos com a TV, possuem o poder de nos levar ao plano da razão e do saber. Exigem abstração e compreensão mais apuradas. Seguindo esse pensamento, uma televisão que privilegiasse a palavra em detrimento da ilusão das imagens, se tornaria quase tão respeitável como os meios de comunicação tradicionais, como os grandes jornais ou mesmo como o venerado rádio. Dessa forma, se a televisão não se submetesse tanto à tecnologia e às imagens, talvez passassemos a acreditar ou a respeitar o conteúdo do meio televisivo.
Pensadores midiáticos importantes como Pierre Bourdieu, Jean Baudrillard e Paul Virilio têm feito carreiras de sucesso, inclusive na TV, condenando as novas tecnologias e o imperialismo das imagens. A hegemonia de uma cultura pós-moderna iconográfica seria responsável pelo simulacro de realidade em que vivemos. Grandes interesses econômicos aliados aos poderosos veículos de comunicação como a televisão conspiram para destruir os melhores e mais tradicionais valores da civilização ocidental. O alvo principal dessa conspiração seria a cultura mais densa e profunda, sedimentada em centenas de anos que se utiliza somente das palavras para a divulgação do saber ou das informações jornalísticas. Imagem só a título de ilustração. Em relação às imagens chamadas de síntese, digitalizadas, essa condenação é ainda mais implacável e veemente. Aquilo tudo que sempre consideramos real passou a ser manipulável e irreconhecível. Ingênuos e indefesos, passamos a ser presas fáceis de interesses escusos. Aos perdermos as nossa referências, teríamos não só perdido a inocência mas também renunciado a capacidade de decidir. Estamos, cada vez mais, sujeitos a manipulações maliciosas.
Pela descrição desse cenário, não nos surpreenderia constatar que um telejornal se torne cada vez mais parecido com a ficção, um verdadeiro "clone" da realidade. Se as notícias mais sérias incomodam, passamos a oferecer um mundo mais aceitável mesmo que menos "real" e mais próximo da ficção. O risco é que passa a ser melhor assistir à própria ficção, ou seja, à novela de verdade que, ao contrário dos noticiários de TV, tende a se parecer com a realidade. Quando novela se confunde com o noticiário mas lidera audiência, a vida também imita a arte e o telejornal, em resposta, tende a se parecer com um mundo irreal, vira quase novela, procura os instrumentos da ficção para narrar o real. E aí é que mora o perigo.
Para o telejornalismo de nossos dias, em meio a tantas crises, vale tudo para se alcançar os índices de audiência há tanto perdidos e em franco declínio. Depois é só culpar o público, a tecnologia e as imagens como os principais causadores da tão decantada decadência e descontrução de valores dos tempos pós-modernos. Muitos desses críticos são verdadeiros neo-luditas, sempre contra todas as formas de tecnologias novas e desconhecidas. Seus antecessores, os Luditas, também se insurgiram violentamente contra todas as máquinas, numa luta sem tréguas contra uma revolução industrial com muitas promessas mas repleta de injustiças e excessos. Para muitos, também deveríamos renunciar ao perigo das novas tecnologias e da sedução imagética. Segundo esses críticos, as novas tecnologias e as imagem nos ameaçam, mentem e distorcem tudo. O telespectador tem ser protegido e cabe a nós, jornalistas mais conscientes, decidir sempre sobre o que é melhor para o público. É bom dizer que não se trata de "censura", palavra fora de moda e proibida em tempos de neo-democracia. Hoje, é mais uma questão de bom senso, de bom gosto ou, simplesmente, interesse de mercado.
Implicações éticas
No telejornalismo, segmento mais sensível e vulnerável do meio televisivo, principal responsável pelas informações da maior parte da população do planeta, tanto a tecnologia como as imagens também são, quase sempre, encaradas com grandes suspeitas. A maior parte dos editores responsáveis pelos nossos noticiários de TV são jornalistas oriundos do meio impresso ou até mesmo do meio radiofônico. Os telejornais sempre sofreram muito com os efeitos recorrentes de um certo complexo de inferioridade em relação aos meios tradicionais. Muitos ainda pensam que televisão é só para diversão ou manipulação. Alguns do nossos jornalistas de TV ainda se guiam pela máxima: "é inegável o poder comunicacional da TV, mas eu gostaria mesmo é de estar trabalhando num veículo sério, num grande jornal, por exemplo. Gostaria de estar longe, muito longe de toda essa tecnologia incompreensível e ainda mais distante de tantas imagens". Absurdo, mas verdadeiro. O problema é que grande parte do jornais considerados sérios e tradicionais insistem em permanecer em crise, pagam mal, quando pagam.
Queiram ou não, a televisão tem um poder e uma diferença fundamentais em relação aos outros meios de comunicação de massa: tem imagem. Essa imagem pode ser ainda mais poderosa quando for transmitida em tempo real, ao vivo. Para isso ela depende de uma tecnologia sofisticada, em constante evolução e que produz, essencialmente, a "imagem", não as palavras. Qualquer outra coisa, é rádio… com imagens!
O problema é como lidar com essa forma de comunicação tão influente mas ao mesmo tempo ainda tão desconhecida e temida? Desde cedo, não somos preparados para nos comunicarmos com imagens. Durante nossa longa formação acadêmico-profissional, pouco aprendemos sobre as verdadeiras características da imagem e ainda menos sobre a sua produção e difusão. Todos nós, jornalistas, sabemos escrever, ou, pelo menos, pensamos que sabemos. Mas quantos de nós sabem escrever com imagens ou avaliá-las sem preconceitos. Cabe somente aos profissionais considerados "especializados" e técnicos, como os fotógrafos, cinegrafistas e editores de imagem, o poder de criar ou manipular essa linguagem comunicacional própria da TV. Aos editores, aos profissionais da palavra, cabe, no entanto, o poder de avaliar o potencial informacional das imagens e decidir sobre a sua utilização ou não no meio televisivo. A orientação sobre a produção de imagens fica sempre restrita às recomendações da chefia de reportagem ou de uma parceria delicada com os repórteres. A avaliação final e a construção de uma narrativa informacional fica sempre por conta dos editores responsáveis pelo telejornal. A busca da verdade norteia sempre a técnica.
Em telejornalismo, sempre foi assim, pelo menos até agora, e as novas tecnologias eram, simplesmente, inseridas nesse processo de produção de notícias. As câmeras sempre mostram a verdade e os jornalistas buscam descrever as imagens com palavras simples e coloquiais mas sempre de forma objetiva e imparcial. Até mesmo, a inserção de novas e polêmicas tecnologias, como as câmeras ocultas, estão todas baseadas na crença de que as imagens não mentem e não podem ou, pelo menos, não devem jamais serem manipuladas. É nesse preceito técnico e ético do jornalismo de TV que está construído o mais poderoso sistema de comunicação jamais produzido pelo homem até hoje. Ao vermos o homem pousando na Lua, ao vivo, acreditamos, ao contrário dos chineses, é claro, estarmos testemunhando um fato jornalístico, ou seja, a mais pura verdade. As imagens não mentem. Ao assistirmos pela televisão, ao vivo, enormes aviões derrubando e destruindo o maiores símbolos de um grande império, também acreditamos no poder das imagens. Ao vermos, igualmente ao vivo, um repórter diretamente de Kabul, no Afeganistão, nos relatando as últimas notícias de mais uma guerra, acreditamos… em quase tudo. Mas ao assistirmos a um apresentador ou âncora de telejornal falando ao vivo na TV, podemos até não acreditar na "verdade" das suas palavras, mas não duvidamos de que ele está ali na telinha falando "de verdade". Não nos ocorre que podemos estar diante de algo manipulável ou irreal. As imagens e os jornalista não mentem jamais. Mas será mesmo?
O que vocês achariam de uma nova tecnologia de digitalização de imagens que tem o poder de mostrar um apresentador de TV como o William Bonner do Jornal Nacional ou qualquer outro repórter de TV, ao vivo e a cores, falando o que jamais disseram. Explico. Os novos feiticeiros da tecnologia computacional do MIT, nos Estados Unidos (sempre os americanos), acabam de lançar um novo programa, uma espécie de tecla SAP ainda mais sofisticada, que permite a um âncora de TV aparecer ao vivo falando em qualquer língua de forma totalmente imperceptível para o telespectador. Você escolhe. Pode assistir o jornalista de TV falando em inglês ou espanhol, tanto faz, e sempre ao vivo e em tempo real. Não é uma simples tradução ou dublagem. É a imagem e o som do apresentador digitalizadas para você ter a impressão de que ele está falando uma outra língua. Tanto a voz como a imagem são, dessa forma, manipuladas para garantir o interesse crescente de públicos que se recusam ou não conseguem aprender o inglês. E tudo isso de tal forma que o telespectador jamais perceba a diferença entre a língua original e a tradução, entre o real e o simulacro. Para aqueles que acreditam no poder jornalístico das câmeras ocultas com intenções idem, já imaginaram o potencial dessa nova arma? E a ética jornalística? Como sobrevive a mais essa tentação?
Para aqueles que acham que isso é coisa para um futuro ainda muito longínquo, é bom avisar que essa nova tecnologia já está em fase de teste. Também não surpreende que esteja sendo testada num dos mais prestigiosos e vulneráveis programas de jornalismo da TV americana, Nightline, com Ted Koppel. É, o mesmo Ted Koppel e o mesmo programa que há alguns meses atrás estiveram nos noticiários ao serem ameaçados pelas gracinhas inocentes de mais um programa de entretenimento, o Late Show com David Letterman. Lembram? Toda a imprensa americana denunciou a rede americana ABC por estar sucumbindo à barbárie dos índices de audiência e apressando o fim de um dos telejornais mais tradicionais e sérios dos Estados Unidos. As negociações avançaram, ameaçaram mas não concluíram. Ponto para o jornalismo. Guardadas as proporções, seria como a Globo estivesse negociando para colocar o Ratinho ou o Jô Soares no lugar do Jornal Nacional. Ted Koppel e o Nightline, apesar de velhos e arrastados, assim como os telejornais tradicionais, deveriam ser preservados da ganância sem limites dos novos executivos de TV. Os críticos de televisão americanos venceram mas até quando? E o público, o que ele acha? Mas isso é uma outra história. O público, infelizmente, está cada vez mais indiferente e, provavelmente, mais velho. É só ver os anunciantes. Muitos comerciais de funerárias, planos de saúde ou viagens ao Caribe em cruzeiros geriátricos. Tanto o Nightline como o JN prometem sobreviver.
O problema é que as novas tecnologias não desistem. Já pensaram nas implicações éticas de mais essa novidade para os telejornais? Sem dúvida, aumenta-se a audiência, mas será que cresce, proporcionalmente, a credibilidade dos noticiários de TV? Assim como nos acostumamos e, hoje, aceitamos a presença indiscriminada das novas câmeras ocultas, será que também estamos prontos para admitir os novos limites para a produção digital de imagens em nossos telejornais? Bem sabemos que câmera oculta veio com boas intenções e que tanto pode denunciar policiais e políticos corruptos, mas também podem denunciar adolescentes em clínicas de aborto, jornalistas e artistas consumindo drogas ou subversivos planejando revoluções e tudo mais que possa aumentar índices decrescentes audiência.
Donos do poder
Impor limites às pessoas e às novas tecnologia é sempre muito difícil. Tem sempre alguém dizendo que os fins justificam os meios e que damos aquilo que o público quer ver. Tanto faz se for em português ou inglês, verdade ou mentira. O importante é garantir a audiência.
Outro dia, um artista, sempre os artistas, o polêmico Gerald Thomas, em artigo para o Jornal do Brasil, declarou em tom de crítica e cobrança que o nosso jornalismo sofre, hoje, de um mau maior: a preguiça. Talvez ele tenha razão. Sempre considerei que bom jornalismo é difícil, consome tempo e dá muito trabalho. Aprender línguas, assim como apurar notícias demandam grande esforço e pode até ser perigoso. Lembram-se do Daniel Pearl, jornalista do Washington Post, literalmente perdeu a cabeça, ao tentar fazer jornalismo investigativo, em tempos de fama e fortuna fáceis, com flashes ao vivo diretamente da guerra.
Sempre considerei que as tecnologias, assim como o público, nunca são culpados pela nossa decadência. Câmeras ocultas, assim como tantas outras técnicas jornalísticas, são recursos que emocionam o público e a nossa profissão. Podem ser ferramentas preciosas mas também podem ser um ótimo atalho para se evitar um jornalismo trabalhoso e investigativo mas que certamente garantem o tal almejado prêmio Esso. A televisão está repleta de tecnologias. Umas são boas e outras, preguiçosas e enganadoras. Querem outro exemplo? O teleprompter, aquela máquina que também faz o apresentador de telejornal ou repórter parecer que não está lendo. Parece para muitos que ele fala tudo de improviso ou que decorou um texto longo e difícil. Levei muito tempo para explicar para pessoas simples, alunos de jornalismo ou até mesmo para a minha mãe, como funcionava mais essa maravilha da tecnologia. Muitos ainda preferem acreditar que os jornalistas de TV são seres superiores com memória prodigiosa ou uma tremenda capacidade de falar corretamente quase o tempo todo e agora, em várias línguas. Verdadeiros atores numa grande farsa, os repórteres de TV há algum tempo preferiram enganar o público ao falar tudo tão certinho, mas tão irreal. Ao contrário de todos nós, eles não erram nunca.
Mas outro dia, estava no meu carro, ouvindo mais um artista, dessa vez, um velho roqueiro rebelde, o Lobão. Sempre contestando a hipocrisia de um mundo irreal e num de seus melhores momento de grande auto-crítica, ele cantava que o rock errou, errou, errou, o rock errou! Lembram? Assim como o rock, a televisão também errou. Ela já foi um dia um meio jovem, ousado e pleno de promessas. Em algum momento, o segmento do jornalismo de televisão também errou. Se vendeu às regras de mercado, adotou todas e quaisquer tecnologias, passou a produzir e difundir quaisquer imagens, sem maiores critérios ou salvaguardas ético-profissionais. Numa lenta e quase imperceptível mudança de rumo, o telejornalismo perdeu o seu verdadeiro objetivo de "informar" a verdade ao público. Os interesses políticos e econômicos cresceram e se confundiram com os objetivos jornalísticos. Teve que se tornar lucrativo para as empresas e conquistar altos índices de audiência, a qualquer custo.
Hoje, às vésperas de mais uma cobertura milionária e solitária de Copa do Mundo, e o que é ainda pior, às vésperas de mais uma eleição nacional, seria importante pensar novamente no poder das imagens, das novas tecnologias e, principalmente, no poder dos homens que as manipulam. Ainda estamos pagando um alto preço por tantos erros e tanto poder nas mãos de tão poucos. Afinal, com os novos programas de digitalização de imagens pela TV que permitem colocar nas bocas das pessoas palavras não ditas e provavelmente malditas de forma totalmente imperceptível para o público, talvez também estejamos diante da necessidade urgente de criarmos meios independentes de controle de conteúdo dos nossos telejornais. Já imaginaram o poder dessas tecnologias nas mãos de pessoas ou empresas com dívidas impagáveis com os donos do poder e que possuem a capacidade comprovada pelo passado de manipular as edições de debates de candidatos à presidência? Reza o desgastado clichê jornalístico, que uma imagem vale por mil palavras. Mas agora, mais do que nunca, também pode valer por mil mentiras. A tecnologia para isso já existe e está disponível.
(*) Jornalista, coordenador do laboratório de televisão, professor de telejornalismo da UERJ e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ.