DEMISSÕES NA UNIVALI
Elaine Tavares, Gilberto Motta, Raquel Moysés (*)
Educadores onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores há aos milhares. Mas o professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão, é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança. [Rubem Alves]
O ano de 2002 foi um ano cheio. As eleições presidenciais tomaram conta da agenda brasileira e, ao final, Luiz Inácio Lula da Silva chegou à presidência. O Brasil vivia um clima de euforia. A mudança parecia chegar, enfim, encerrando uma era massacrante de pensamento único, de neoliberalismo, de destruição. Mas, na Universidade do Vale do Itajaí ? cotada hoje entre as oito maiores instituições universitárias do país ?, e mais especificamente no curso de Jornalismo, um reduto crítico da instituição, a história começaria a andar para trás. Enquanto nas ruas milhões de vozes gritavam que a esperança vencera o medo, a cúpula do poder univaliano agia nas sombras, espalhando o terror e a opressão, espezinhando a dignidade humana.
O estopim parece ter sido um documento elaborado pelo grupo de professores do Jornalismo, apontando alguns problemas do curso. Como em todo fim do ano, fora realizada uma reunião de avaliação e de projeção de metas, e o resultado encaminhado à diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas (Cehcom), Maria Mersilda Pinheiro. No dia da entrega do documento, um pequeno número de professores foi fazer as vezes de porta-voz do grupo todo. O clima foi de agressividade e ameaça. Após um superficial passar de olhos pelo documento, a diretora começou a esbravejar, dizendo que os professores a estavam ameaçando, o que causou total perplexidade. Não havia ameaças e, sim, constatações claras, a partir de um diagnóstico dos docentes, de que a administração da universidade precisava tomar urgentes providências para melhorar as condições do curso, resolvendo uma situação que poderia se tornar explosiva entre os estudantes no semestre seguinte. O grupo apenas cumpria seu papel de alertar a direção e lutar por um curso melhor, mas a professora chegou a afirmar que se mandasse o documento “para a frente, ao reitor”, todos seriam demitidos.
Dias mais tarde, a coordenadora do curso, a jornalista Vera Sommer, foi arbitrariamente afastada de suas funções e três educadores acabaram demitidos sumariamente, sem qualquer explicação. Coincidentemente nós três, os demitidos ? jornalistas Elaine Tavares, Gilberto Motta e Raquel Moysés, respectivamente há sete, três e nove anos ensinando no curso de Jornalismo ? éramos visivelmente politicamente engajados em todas as áreas da vida do campus. Nos últimos anos, realizávamos projetos de extensão sempre ligados aos excluídos. A primeira, com as comunidades de periferia de Itajaí, outro tentando furar o cerco para atuar em projetos de iniciação científica com alunos e na área da televisão, onde era sistematicamente podado, e a outra trabalhando em jornalismo experimental e extensão com os apenados do Complexo Penitenciário da capital.
Durante o ano de 2002, vários foram os problemas enfrentados. Falta de estrutura e até agressões, supostamente movidas por discriminação racial e de classe, a representantes das comunidades que atuavam num dos projetos, o Barca do Povo. Tudo isso foi discutido com direção do Cehcom e, também, com a comunidade universitária, em palestras e seminários. Por outro lado, os projetos promoveram diversas atividades culturais, agitando a vida da universidade, fazendo cumprir sua função social, trazendo o povo para dentro dela. Isso, como mostram os fatos, não era visto com bons olhos em uma instituição mantida por uma fundação dita filantrópica. Além do mais, mantivéramos sempre uma postura crítica frente a qualquer pretensão meramente mercadológica no campo do ensino, exigindo qualidade e decência. Nesses anos em que ajudamos a construir a história do curso de Jornalismo, que já passa de uma década, o que nos moveu sempre foi a certeza de que o interesse público precisa prevalecer em qualquer instituição, seja ela de natureza pública ou privada.
Cacoete autoritário
Para a demissão também parece ter pesado o fato de termos uma visão crítica e humanista do jornalismo, o que sempre provocara controvérsias. Mas, até então, essas controvérsias e batalhas teóricas eram vistas como a riqueza do curso, que conseguia passar aos estudantes as três principais linhas teóricas do jornalismo: a tecnicista, a crítico/humanista e a dos estudos culturais. Segundo a diretora do Cehcom, Maria Mersilda, fomos demitidos porque não vestíamos “a camisa da Univali”. O novo reitor, José Roberto Provesi, em reunião solicitada pela diretora da AJA, entidade que congrega os estudantes do Jornalismo, alegou que “os professores demitidos ?tinham a cabeça na Federal?. Não serviam, portanto, para a sua empresa, o que configura uma demissão arbitrária, marcadamente política. Estranho esse argumento usado pelo dirigente máximo de uma instituição que ostenta a marca de filantrópica no seu sítio na internet, e que, portanto, teria que estar voltada para o interesse público, e não para o lucro.
Registro de Entidade de Fins Filantrópicos, como consta no sítio <www.univali.br>
Processo n? 212.652/76/CNSS/MEC, deferido em 13/03/80
Utilidade Pública Federal: Decreto n? 86.072 de 04/06/81
Utilidade Pública Estadual: Decreto n? 5.061 de 19/09/74
Utilidade Pública Municipal: Decreto n? 1.141 de 07/12/71
Essa instituição dita sem fins lucrativos, de natureza beneficente, de assistência social e de direito privado, construiu-se e se expandiu também sobre terras públicas doadas pelas prefeituras e com recursos públicos generosamente oferecidos por vários governos neoliberais. O que falar então das altas somas que deixa de recolher em impostos aos cofres públicos, por conta do registro de filantropia que ostenta?
Se a vida universitária fosse marcada por um clima indispensável de respeito ao interesse público e à alteridade, não haveria qualquer motivo que respaldasse a decisão de a Univali mandar embora justamente educadores considerados pelos estudantes entre os mais combativos e exigentes no tocante à qualidade e ao convívio com a população. Paradoxal, portanto, o reitor ter nos acusado, durante encontro com representantes da AJA, que havíamos barrado a implantação de um curso de mestrado em Jornalismo. Nós defendíamos, na verdade, a idéia de que o mestrado só fosse criado quando a graduação estivesse suficientemente estruturada. E essa não era uma posição isolada, mas compartilhada por outros docentes.
A resposta que tivemos ao nosso empenho em buscar envolver os estudantes em projetos ligados ao jornalismo vivo, vibrante, popular foi a demissão sumária. A falta de ética e respeito foi tanta que nos enviaram a carta de demissão pelo correio, às vésperas do Natal, quando os estudantes em sua maioria já haviam viajado. Justamente por saber da nossa profunda empatia entre os estudantes é que a demissão aconteceu quando eles já estavam de férias. Tentaram evitar manifestações, que ainda assim ocorreram por parte de um pequeno grupo que ainda circulava pelo campus.
Quando a nação brasileira sufocada e massacrada pelo projeto neoliberal começa a respirar novos ares, os que se julgam donos do poder agem como nos tempos da ditadura, nos porões… pagando única e tão somente 40% de multa sobre o FGTS, essa armadilha que faculta aos empregadores agirem na clandestinidade, mascarando perseguição política, assédio moral, difamação, ofensa à honra e tudo o mais sob uma capa de legalidade. Sem justa causa…
Como lembra o ex-estudante da Jornalismo da Univali Gustavo Pereira, no artigo “Não podemos permitir”, entra gestão, sai gestão, mudam os discursos, “mas o poder, da forma que é exercido na Univali, é cacoete autoritário, seqüela da ditadura, sinal de despreparo daqueles que só conhecem um modo de administrar: pela força. Ignoram que a Univali é uma instituição complexa, povoada por diferentes pontos de vista, refletindo uma sociedade que, a duras penas, vai amadurecendo politicamente”.
Chama que ninguém apaga
O jornalista lembra que a reitoria infringe claramente o Regimento da Fundação Univali em pelo menos um ponto: ao negar o direito de ampla defesa dos professores demitidos. Aliás, diz: “A pena de demissão é o último recurso cabível no regime de sanções. Já o Regimento Geral da Univali, em seu Cap. III, Art. 4, diz o seguinte: ?A Univali consagra os princípios que asseguram a dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais, proscritas quaisquer discriminações de ordem filosófica, política, religiosa, racial ou de classe (…) lutando pela defesa da liberdade, da investigação, da expressão, da fraternidade e da paz?.”
Essa forma desrespeitosa e truculenta de agir ameaça a todos que ousarem pensar e se manifestar como seres pensantes. E contradiz claramente a missão que a Univali apregoa e publica em seus calendários acadêmicos e no sítio da internet, diretamente para o mundo: “Produzir e socializar o conhecimento pelo ensino, pesquisa e extensão, estabelecendo parcerias solidárias com a comunidade, em busca de soluções coletivas para problemas locais e globais, visando a formação do cidadão crítico e ético”. Contrasta também frontalmente com valores que publicamente afirma seguir: “Respeito ao pluralismo de idéias, ética no relacionamento e formação e profissionalização de vanguarda…”
Tudo o que opressores, censores, ditadores, exploradores esperam de gente como nós é que abandonemos a luta por um mundo decente e uma educação livre e emancipadora para poderem agir mais livremente nos seus domínios do terror. Como nos tempos dos porões da ditadura: “O que, essa gente existiu um dia? É mentira”, diziam os torturadores…
Agindo assim, esse tipo de instituição vai dando passos para trás, na contramão da história, fazendo prevalecer o preconceito, a arbitrariedade, o conservadorismo, a mediocridade, o rancor. Coisa típica de dirigentes arrivistas, dispostos a tudo pelo poder. A nós, cabe a perplexidade de ver que, nesse tempo de mudanças em todo o país, ainda há lugares, e pior, universidades, onde não é permitida qualquer visão crítica, como se o olhar criterioso fosse uma coisa ruim, passível de punição.
O dirigente que prefere ao seu lado bajuladores é como o rei estúpido que comprou a roupa dita invisível de um mercador vigarista. Infelizmente para ele, não adianta cortar essa ou aquela cabeça, pois sempre haverá um olhar de menino a gritar: o rei está nu!!! O rei está nu!!! O que vai denunciar toda a sua estupidez. Isso é inexorável, senhores que se julgam onipotentes… Mil vezes a crítica honesta e transformadora dos que resistem movidos pelo imperativo ético e jamais vão deixar a luta para cair no abismo da inércia. Nós que somos eternos repórteres e educadores jamais vamos nos render. Vamos continuar nesse mundo gritando a nossa palavra, lutando pela libertação da palavra, pela vida digna, pela educação libertadora. Ninguém apaga essa chama assim. Não vamos ficar no escuro.
(*) Professores