EDUCAÇÃO & SOCIEDADE
Ulisses Capozzoli
O ministro da Educacão, Cristovam Buarque, provocou um pequeno sismo outro dia, quando disse que no caso de uma intervenção militar na vida político-institucional do Brasil, como aconteceu em 1964, não haveria resistência nas universidades.
Não conheço pessoalmente o ministro e já ouvi mais de uma versão sobre suas posições. Mas devo dizer que aprecio suas idéias, certamente as mais provocativas neste governo do PT. O ministro Buarque é um provocador e provocadores, de modo geral, nunca foram bem aceitos pelos sistemas de poder.
No Brasil, temos uma acepção historicamente condicionada para a palavra provocador. Invariavelmente associada a agentes oficiais infiltrados em movimentos políticos com a clara intenção de produzir desestruturações e perda de energia vital.
Na origem latina provocare, com o sentido de "fazer falar", que está na etimologia desta palavra, no entanto, o discurso é outro. Provocar pode ser entendido literalmente como "fazer falar", equivalente a "fazer pensar".
Ninguém fala criativamente sem pensar.
Aposentadorias precoces
Falar e pensar são ações indissociáveis ? tanto quanto o tempo, no universo einsteniano, não pode ser destacado do espaço. Falar-pensar e universo-tempo são, por isso, contínuos inseparáveis.
Por que não haveria resistência intelectual na universidade neste momento, na provocação feita pelo ministro?
Os motivos consideráveis encheriam livros inteiros, mas na base de tudo certamente está uma questão sugerida pelo ministro Buarque:
A universidade está vazia de criatividade, de idéias capazes de estimular iniciativas dentro da sociedade. Por isso não tem resistência. Na universidade, as idéias são a essência. Na ausência delas a universidade não faz sentido.
Por que essa apatia se espalhou pela universidade?
Aqui também as razões históricas são abrangentes e antigas. Mas novamente podem ser resumidas numa condição básica: a universidade, neste momento, é uma enorme estrutura corporativa.
Por que a universidade se transformou numa estrutura corporativa? Talvez porque esteja dominada por grupos de poder.
O fato de isso estar ocorrendo, evidente não torna toda a estrutura universitária condenável aos olhos de uma análise crítica. Existem pessoas e grupos, no interior da universidade, interessados e comprometidos com sua recriação intelectual. Esse movimento deve receber o apoio da sociedade e este, certamente, é um resultado mais produtivo da provocação do ministro.
Para se discutir a situação da universidade, neste caso a universidade pública no Brasil, certamente é inevitável uma distinção entre o legal e o moral. Nem sempre o que é legal, do ponto de vista de um certo estado de codificação das leis, é moralmente procedente.
As leis, diriam Rousseau e toda uma legião de filósofos que analisaram essas relações, sempre codificam em benefício de um sistema de poder.
No interior de universidades, neste momento, fundações com clientela externa faturam alto em benefício de poucos. Esse é um exemplo de grupos de poder que se apoderaram do bem comum para produzir resultados de interesses privados.
Mas mesmo a estrutura de aposentadorias na universidade pública deve ser de alguma forma radicalmente transformada. Não é possível aceitar que professores com menos de 50 anos, como tem acontecido, gozem desse benefício tão precocemente.
Certamente as aposentadorias precoces podem ser consideradas como algo perfeitamente legal. Mas não são nada justificáveis de um ponto de vista moral.
Conta futura
Os trabalhadores intelectuais ? e os professores e pesquisadores universitários são parte deles ? já desfrutam de um benefício negado a uma parcela significativa da população. Têm acesso às idéias, à ciência, à literatura. Têm acesso à cultura, no sentido de valores processados intelectualmente por um conhecimento histórico que vai além dos limites do espetaculoso e do sobrenatural.
Na condição de favorecidos intelectualmente devem estar comprometidos com a idéia de partilhar esse potencial estendendo suas permanências na universidade. Essa é uma obrigação moral que pode ser refutada com argumentos legais, mas nem por isso deixará de ser procedente.
O que é um país subdesenvolvido como o Brasil, levando-se em conta um conjunto de valores relacionados ao desenvolvimento social? Um país subdesenvolvido é uma nação que, mesmo com sua riqueza natural, não foi capaz de superar certas restrições ligadas a valores culturais capazes de permitir um bem-estar desejável. Entre eles o acesso a um sistema de valores que ampare a condição humana. Desse sistema de valores fazem parte tanto bens materiais como intelectuais.
O ministro da Casa Civil, José Dirceu, disse na quinta-feira (4/12) que "o pau vai comer", nos debates sobre a modernização da universidade e com isso gerou um tremor secundário, na continuação do sismo principal provocado pelo ministro.
Zé Dirceu, como costuma ser chamado, tem defendido outras posições menos aceitáveis. Entre elas a idéia de que o reajuste na tabela do imposto de renda não leve em conta a inflação do período a que se refere. Certamente algo que pode ter amparo legal. Mas moralmente é condenável. Não deveríamos perder tempo e energia social com discussões dispensáveis como esta.
Em relação à reforma universitária, no entanto, o ministro da Casa Civil está, como se costuma dizer, "coberto de razão".
Se de fato quisermos a universidade pública gratuita que, no Brasil, responde pela quase totalidade de pesquisa científica, então "precisamos mudá-la", como defende Dirceu. Até porque dados liberados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e publicados pela mídia no início de dezembro mostram um significativo avanço na expectativa de vida no Brasil.
Desde 1980 o ganho foi de 8,5 anos e isso fez com que, pela primeira vez, a tábua da vida, na terminologia dos demógrafos, ultrapasse os 70 anos.
Os bebês que nasceram no ano passado têm expectativa de vida de 71 anos ? três meses a mais que os nascidos em 2001.
Pode-se dizer que esta é uma conta para o futuro. Mas pode-se argumentar que ela considera a média da população, e os trabalhadores intelectuais ? como professores e pesquisadores universitários ? estão bem acima dessa média e já desfrutam de um nível de bem-estar social desconhecidos pela maioria da população.
Espaço de formação
A mídia como um todo repercute esse debate como uma câmara de eco. Não são nada freqüentes as reportagens capazes de apontar tendências em áreas tão estratégicas para o desenvolvimento social quanto à produção nas universidades.
E os repórteres não fazem isso por falta de talento ou desinteresse. A reportagem está morta. As empresas jornalísticas não querem gastar dinheiro no que consideram dispensável. Cobre-se o cotidiano com a esquizofrenia dos fatos desconjuntados e dá-se o trabalho por concluído. O que significa que, como a universidade, também a mídia se ressente de uma profunda reforma quanto à mentalidade dominante.
Por isso há enorme frustração no interior das redações. A realidade está inacessível à boa reportagem. Trabalha-se por telefone, precariamente, com a ameaça de se perder o emprego mais presente que nunca.
Reforma da universidade certamente é uma mudança que deve ocorrer no conjunto de um sistema de transformações. Como a reforma da estrutura fundiária, a política de saúde e a determinação, a despeito de toda crítica sarcástica e do erro puro e simples, de se eliminar a fome.
Temos uma tradição de bons educadores na história do Brasil. Anísio Teixeira, Paulo Freire, Fernando de Azevedo e Darcy Ribeiro são alguns dos intelectuais brasileiros que se envolveram profundamente com as perspectivas da educação.
Mas todos eles se depararam com o que Antonio Cândido, na introdução de uma reedição de As ciências no Brasil, obra organizada por Fernando de Azevedo, chamou de um legado ibérico nada recomendável. A Península Ibérica legou às colônias "a mesma mentalidade hostil aos progressos de um novo tipo de cultura".
Daí o destaque que a mídia dá ao provocativo ministro Buarque quando ele rejeita idéias como a redução da maioridade penal como solução para a violência de jovens delinqüentes. Ao acenar com a perspectiva da escola, mais ampla e duradoura, o ministro faz uma provocação que irrita o pensamento sumário.
Que os pais das vítimas, como os do casal de namorados mortos recentemente na periferia de São Paulo, defendam medidas drásticas é inteiramente compreensível. Estão tomados pela dor e não desejam que a experiência que viveram se repita.
Tirar os jovens da violência, no entanto, passa por uma profunda reforma da universidade.
Não só pela oferta de alternativas, algo que a universidade é paga socialmente para fazer, mas também como espaço de formação, tarefa a que ela não pode se furtar. Caso contrário, as decisões em seu interior podem até ser legais. Mas são, de um ponto de vista ético, profundamente condenáveis.