Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A voz do dono e o dono da imagem

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Já preparei o lombo para as pauladas, mas ouso afirmar que boa parte, talvez a maioria, dos problemas da comunicação eletrônica no Brasil é conseqüência da concentração dos meios em poder de grupos historicamente controladores do setor. Assim como as mulheres afegãs que não reivindicam direitos mínimos de cidadania porque nunca usufruíram de seus benefícios, a população brasileira passivamente aceita a situação porque nos últimos 40 anos ? uma geração ? praticamente não conviveu sem a onipresença do monopólio da mídia eletrônica. Não sabe como é a vida sem ele, até porque o tema é de discussão restrita aos meios empresariais, acadêmicos e da imprensa escrita, e não convém que chegue à telinha. Feito greve de jornalista…

A Rede Globo, por exemplo, detém metade da audiência, controla 75% da verba publicitária na tevê aberta e conta com 63% dos assinantes da tevê por assinatura. A família Marinho é dona de 32 emissoras de televisão, 11 em São Paulo, 8 no Paraná, 7 em Minas, 4 no Rio, uma em Brasília e uma em Recife. É um enorme monopólio, inédito no mundo. Basta ver que, na Itália, uma das três emissoras do Fininvest, grupo pertencente ao primeiro-ministro Silvio Berlusconi, foi obrigada a transmitir exclusivamente por satélite porque o faturamento publicitário do grupo ultrapassou os 25% permitidos pela lei.

Para entender um pouco do que significa tão alta concentração de meios em poder de um único grupo (e olha que não envolvemos na conta os jornais e as emissoras de rádio ? a chamada propriedade cruzada ? nem falamos de monopólios menores mas igualmente expressivos), é bom lembrar que o capítulo das telecomunicações na atual Constituição foi redigido segundo os interesses diretos desses monopólios que, por sua vez, controlam inteiramente a Abert. Vamos tirar a burka e descobrir um pouquinho da realidade:

1) Sabe por que até hoje não foi implantado o Conselho de Comunicação previsto na Constituição de 88? Porque significaria perda de controle do monopólio sobre os conteúdos, com reflexos na audiência (leia-se faturamento). Os deputados e senadores ? e são muitos ? ligados ao monopólio simplesmente seguram qualquer tentativa de interferência da sociedade organizada nas programações. O resultado é que, hoje, na prática, não existe instância formal de recorrência diante de qualquer delito praticado por um meio eletrônico de comunicação. Nem qualquer controle social dos meios de comunicação. Tudo depende do Estado.

2) Sabe por que uma liminar derrubou a classificação de programas pelo Ministério da Justiça por horário de exibição? Porque os monopólios que dominam a Abert não deixam. Entraram com pedido de liminar, ganharam. Ponto final.

3) Sabe por que o desfile das escolas de samba do ano que vem não vai mais começar às 19, e sim às 21h? Porque a Globo, detentora dos direitos de transmissão até 2004, precisa garantir que o Jornal Nacional entre no horário e garanta seu faturamento. O telespectador que vá dormir mais tarde, ora.

4) Sabe por que tal ou qual jogo da seleção brasileira vai ao ar neste ou naquele horário? Porque contratualmente com a CBF a Globo tem o direito de interferir para adequar os jogos à sua grade de programação. E tem o direito até de entrevistar com exclusividade atletas e membros da comissão técnica após os jogos.

5) Sabe por que muito jogo de futebol não é transmitido por nenhuma emissora? Porque apenas uma delas detém os direitos de transmissão, não tem interesse em fazê-lo e simplesmente não passa para outra. E o telespectador-torcedor tem de se contentar em saber, quando muito, o resultado. E pular de alegria ou chorar de tristeza. Chato, né?

6) Sabe por que a gente perde o Jornal Nacional e não consegue engrenar o papo no botequim? Porque a agenda do imaginário brasileiro é construída a partir de sua avassaladora audiência. Quem não o assiste fica meio fora do mundo, porque o balizamento dos temas em questão é feito por ele. No Brasil, chegou-se ao cúmulo de sermos obrigados a assisti-lo pelo menos para criticá-lo. O JN consegue a proeza de liderar a audiência mesmo quando sai do ar, como aconteceu uma vez em que o sinal da Globo foi interrompido em uma única região do Rio de Janeiro e o ibope apurou que os televisores permaneceram chiando mas esperando a volta do sinal da Globo.

7) Sabe por que as tevês públicas vivem na miséria e mal conseguem se manter no ar, impedidas de impulsionar suas programações com faturamento publicitário? Porque a Abert não deixa, alegando que seria “concorrência desleal” com as redes comerciais.

8) Sabe por que o espaço para a produção regional é tão restrito? Porque não interessa aos monopólios abrir mão do controle da programação produzida a partir de um centro e distribuída nacionalmente. Tal controle, sob o pretexto de evitar a manipulação política da eleição que vem aí, fez inclusive com que a Rede Globo anunciasse que está assumindo diretamente a direção de jornalismo de suas 113 afiliadas em todo o país. Tudo porque a TV Bahia não enviou matéria sobre manifestação contra ACM, seu proprietário. A Globo prefere intervir nas outras 112 afiliadas, em vez de trocar a TV Bahia por outra emissora.

Coisas do monopólio. É só tirar a burka pra ver. Cada item desses daria um artigo. O monopólio é tão nefasto que, mesmo que se fuja dele mudando de canal, a gente dá de cara com ele outra vez, na forma das programações clonadas pelas outras emissoras. Aí, em vez da imitação, muita gente termina ficando com o original. Pelo menos pra ter papo no botequim.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>