MÍDIA & JUDICIÁRIO
Pedro Scuro Neto (*)
Todos viram, mas ninguém comentou o fato de a última (e tremendamente bem-sucedida) novela da Globo ter girado quase exclusivamente em torno de uma escola particular ? cujos donos, levando a vida em ritmo de festa, preocupavam-se somente com aventuras amorosas, ao passo que seus professores e funcionários cuidavam quase exclusivamente de seus dramas pessoais ? adultério, alcoolismo, coisas assim.
A novela terminou, mas durante o mês inteiro (dedicado ao professor) a mídia continuou mostrando o mesmo enredo: de um lado, abnegados professores da rede pública, sobrecarregados de serviço e recebendo uma miséria; e, de outro, felizes professores de escola particular, ganhando muito e trabalhando pouco, com tempo de sobra para problemas pessoais.
Enquanto isso, TV, rádio, revistas, outdoors e jornais andam cheios de propaganda de escolas particulares. Quase todo dia, principalmente aos domingos e no horário nobre, a mídia serve de veículo para os donos dessas escolas anunciarem seus serviços e reclamarem do fato de que até 60% de seus fregueses, isto é, alunos, não pagam direito suas mensalidades.
O que a mídia não vê é que o argumento dos donos das escolas é um embuste. Para mencionar apenas um exemplo, numa dessas escolas, com pouco mais de 2 mil estudantes, menos de 100 alunos não pagam em dia ? o que não impede os proprietários de reclamar que estão com "quase 50% de inadimplência".
"Inadimplência", na verdade, é um artifício desonesto dos empresários para demitir e reduzir os salários dos professores e baixar ainda mais a qualidade do ensino em suas escolas, enquanto edificam prédios suntuosos na maioria das capitais do país. Afinal, alunos gostam de dizer que "sua" escola parece um shopping center, mesmo se no Provão a classificação dos cursos é D ou E.
O raciocínio dos magistrados
E a mídia ? departamento de marketing ou de jornalismo, não importa ? a tudo aceitando. Pode ser que não queira prejudicar alguns de seus melhores anunciantes, mas de um modo geral a raiz do problema parece residir na definição do direito de informar, ou mais precisamente na falta de uma definição adequada desse direito.
Com efeito. Não faz muito uma poderosa igreja moveu ação por danos morais contra uma revista de circulação nacional, que havia divulgado a relação dos bens de alguns de seus integrantes, questionando inclusive o papel da própria instituição.
A igreja alegou que os bens não eram seus, mas propriedade de indivíduos, razão pela qual queria responder às insinuações ? por exemplo, "quanto dinheiro circula nos templos e o que exatamente é feito com ele". Queria, para isso, usar o espaço da própria revista que, a seu ver, manipulara informações para causar danos à imagem da igreja.
Os juízes, no entanto, negaram o direito de resposta. Entenderam que "sob o ponto de vista contratual ou legal não se pode confundir a entidade religiosa com a pessoa de seu dirigente", mas o enfoque fora completamente transferido para o campo jornalístico. Com isso, apesar de o "tom da reportagem [ter sido] efetivamente desfavorável à imagem da igreja e de seus dirigentes", não se justificaria um "desvirtuamento do direito de informar" (Consultor Jurídico, 18/12/2001).
Qual foi o raciocínio dos magistrados para chegar a essa surpreendente conclusão? "Pouco importa que a instituição religiosa e a pessoa de seu dirigente sejam distintos, se na observação dos fatos [feita a partir do enfoque jornalístico] as duas figuras aparentemente se confundem".
Informação precisa
Ou seja, do ponto de vista da mídia o que interessa é "o aspecto prático, apreendido pelo público", razão pela qual, mesmo se utilizado para desacreditar pessoas ou uma instituição, o "direito de informar exime um órgão de imprensa da obrigação de reunir material de pesquisa, sob pena de elaborar matéria estéril, inodora ou insípida" ? tal matéria, sempre "conterá uma opinião jornalística". Por isso, segundo os juízes, não vale a pena exercer controle, que deve ser feito apenas quando há "distorções ou excessos".
Na verdade, se o direito de informar tem algum significado prático deve ser encarado de acordo com os objetivos últimos da atividade jornalística, cujo critério é o entendimento, ou seja, capacitar a audiência a compor uma verdadeira imagem dos eventos descritos.
Como essa atividade nem sempre é facilitada com rigor e clareza pelos regimes jurídicos, deve estar sujeita ao autocontrole responsável dos próprios agentes da mídia, segundo princípios derivados do próprio conceito de informação (veja abaixo), oferecendo ao público a maior quantidade possível de informação precisa acerca da realidade, preservando o máximo possível de independência em relação a todo e qualquer grupo de pressão e interesse, incluindo o Estado.
Critérios de relevância da informação
** Externalidade: a relevância do que é noticiado deve ser determinada, acima de tudo, pela medida em que o evento descrito afeta, direta ou indiretamente, a vida de quem é informado, estando a audiência consciente ou não dos efeitos.
** Generalidade: o que é noticiado deve ter significação geral, dizer respeito ao maior número possível de pessoas (a não ser em casos expressos de transmissão dirigida a públicos restritos).
** Idoneidade: o que é veiculado deve ser checado, confrontado, conferido sempre que possível, principalmente quando os meios de verificá-la estão disponíveis (a margem de incerteza deve ser devidamente esclarecida).
** Equilíbrio (neutralidade, imparcialidade): os diferentes pontos de vista devem ser levados em consideração.
** Agilidade: essencial, mas não uma desculpa para reportagens imprecisas, falaciosas, levianas, superficiais ou equivocadas.
(*) Professor de Ciência Política e Sociologia, autor de Sociologia ativa e didática ? Um convite ao estudo da ciência do mundo moderno, Saraiva, São Paulo