CIRCO DA RENÚNCIA
Mídia e o ex-senador mantêm velha promiscuidade
Quais os maiores vexames da imprensa brasileira?
Em 1954, foi o cerco a Getúlio Vargas que o levou ao suicídio.
No período 1968-1985, foi a vergonhosa autocensura à qual submeteram-se ? com variações de grau e duração ? todos os veículos jornalísticos, excetuados os alternativos.
O vexame, agora, é mais grave, campeão absoluto: gestou-se no processo de distensão política, foi encorpando justamente ao longo da redemocratização e chega ao auge quando a imprensa está livre de qualquer controle ou constrangimento.
O nome do vexame é ACM. Durante dez dias o balofo dono do galinheiro distribuiu milho às frangas esfomeadas de escândalos e com elas armou o pífio Circo da Renúncia [veja Próximo Texto, nesta rubrica].
Pauteiro e controlador da mídia brasileira há 30 anos, o ex-senador aprendeu os segredos do ofício com o general Golbery do Couto e Silva (criador do SNI, patriarca da arapongagem), que comandou o transição da ditadura para a distensão e desta para a semidemocracia.
A diferença entre mestre e aluno está no uso do poder: enquanto Golbery preferia agir nas sombras porque não alimentava projetos pessoais, ACM sempre recorreu à exibição da sua força. E não apenas por paranóia ou narcisismo. Como caudilho, precisa exibir o seu poder para melhor exercitá-lo. Este é um processo de auto-alimentação, infindável. Só se interrompe com traumas. Ou a intervenção da Parca.
Se no caso do Golbery a mídia desculpava-se pela subserviência alegando a luta contra a linha-dura militar, pela abertura política etc., este servilismo às jogadas de ACM não tem justificativa alguma. É malandragem em estado natural. Tibieza somada à imoralidade e servidas no bandejão da irresponsabilidade.
O que a mídia fez e continua fazendo sob a batuta de ACM é uma jogada para assumir-se como protagonista, tentativa de converter-se em poder efetivo. Acontece que a imprensa não é poder nem protagonista ? é apenas a intermediária entre poderes constituídos e protagonistas formais.
Quando a mídia é pluralista, diversificada e contraditória funciona como interlocutora a serviço da sociedade. Quando, como agora, articula-se num pool para orquestrar determinado clima ou predisposição, entra no jogo de poder. É parte, portanto, suspeita. Ainda mais quando manipulada por um tiranete com a folha corrida de ACM.
O aspecto mais sórdido do episódio foi a continuada violação do painel eletrônico através da mídia. Todos os jornalões veicularam os venenos e calúnias fabricados por ACM a respeito da votação que cassou o mandato de Luiz Estêvão (exceto o Estado de S.Paulo). Uma aberração jornalística montada em cima da absoluta insensibilidade moral. Nenhum igualou-se ao Jornal do Brasil, que, assim, compromete sua espetacular recuperação com a fórmula fácil do escândalo. Teve que engolir sem espernear as reclamações das vítimas.
O velho JB mostrou-se igualmente inexcedível na preparação psicológica para a ridícula despedida de ACM. Aquele alto de página (aliás bem desenhado) de quarta-feira, 30/5, promoveu e magnificou enganosamente uma oração que, horas depois, o país inteiro saberia que foi, no máximo, ordinária. Vulgar.
Como nessas degradantes competições a Folha de S.Paulo não pode ficar atrás de ninguém, ofereceu no dia do discurso sua dedicada contribuição à causa carlista com uma das manchetes mais absurdas da sua inesgotável coleção de manchetes absurdas: "ACM insinua que FHC conhecia a lista".
Um jornal que tenta apresentar-se como a consciência crítica do país pode produzir uma manchete baseada numa insinuação? O que preconiza o Manual da Redação nesses casos? Ou o Livro dos Livros abstém-se de julgar as manchetes produzidas na diretoria? Além disso, logo no primeiro parágrafo, a própria fonte admite sua falta de segurança em torno do fato: "…pode ser que o presidente tenha falado comigo ou com o ex-líder sobre alguns nomes [da lista]…"
Se era para manchetar, o certo seria dizer "ACM admite que levou lista a FHC". Mas como o jornal da família Frias está interessado apenas em prestar serviços ao velho parceiro, esquece seu crime e tenta imputá-lo a terceiros.
A mídia brasileira conseguiu um feito extraordinário ? emascular-se diante do fantasma de uma ditadura que já acabou.
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