MÍDIA E VIOLÊNCIA
Ana Lagôa (*)
Às vezes ? ao ler jornais e revistas ? tenho a sensação de ter acordado no século 12. Juro a mim mesma que não vou me irritar, nem protestar. Invoco Jesus, quando pediu ao Pai que perdoasse seus algozes: eles não sabem o que fazem! Mas, como estou lendo um livro muito interessante sobre o tema crianças que matam, não resisti: tudo se resume à enorme hipocrisia humana. Só isso. É muito mais fácil a mãe culpar a TV ou o RPG ou o coleguinha ou a "juventude", o profissional de imprensa transformar falas transtornadas (e não dados, é bom ressaltar) em informações do que buscar, como o fez a jornalista inglesa Gitta Sereny ? autora do tal livro que estou lendo (Gritos no vazio) ? as possíveis causas (dados que possam ser transformados em informações e daí ajudarem o leitor a fazer a construção do seu conhecimento) que levaram Mary Bell a matar dois pequenos meninos em 1968, na Inglaterra.
Sou levada a pensar que é mais fácil ficar na superfície, patinando no obscurantismo, porque a luz, quando levada a certos recantos, não mostra fadas e anjinhos, mas monstros diabólicos de atitudes indizíveis. E humanos. E eu não estou falando dos monstros da ficção dos contos de fadas, das animações japonesas ou dos games de qualquer tipo. Muito menos dos que moram embaixo da cama do Calvin. Estou falando dos monstros humanos que habitam as casas, que compõem alguma coisa modernamente chamada de família e seu entorno.
Atrás da luz
Não tem por onde fugir. Todo desvio psicossocial nasce no chamado lar. Ninguém sai bonzinho de casa e volta um monstro. Mesmo que repórteres das mais variadas espécies insistam em reproduzir a representação social das famílias como aglomerados harmônicos e felizes, vítimas dos atos de violência que viriam de fora, por meio de uma e outra tecnologia, usando seus pimpolhos como veículos, a realidade escondida ? a quem caberia revelá-la? ? é que mesmo sendo vítima (pais, mães, avós, madrastas, padrastos, irmãos assassinados, sempre) ela ? a família ? é o núcleo formador do caráter e da personalidade. Shakespeare sabia disso. Os gregos da Antiguidade clássica sabiam disso. Freud deu uma grande força para desvendar esse porão.
Vai ver foi porque não tinham TV, nem games… para pôr a culpa.
Exigir que um repórter entenda isso tudo pode ser demais. A propósito ? eles são formados em quê? Será que em alguma aula alguém disse a esses repórteres o tanto que a imprensa responde pela perpetuação da ignorância e do obscurantismo, reforçando atitudes preconceituosas e excludentes, mesmo quando age com a melhor das intenções, como ao entrevistar mães de vítimas e lhes dar status de analista?
Quando éramos jovens repórteres, nos anos 60/70, tínhamos o costume de ouvir especialistas para colher opiniões sobre fatos. Contra, a favor, explicações. Mesmo quando trabalhávamos em veículos sem muita sofisticação. Sobretudo nos casos em que o leitor presumidamente (será mesmo?) não tem acesso a outras formas de saberes que não a ligeireza da notícia baixo-astral.
Será que os jornalistas repórteres de rua ou redatores têm clareza sobre a armadilha semântica e psicossocial em quem estão metidos, embrulhados na sutileza do discurso e seus significados (ou hipertextos, como queiram)?
Sugiro aos estudantes e jovens repórteres a leitura da coleguinha inglesa. E, de quebra, o primeiro capítulo do livro Representação social da psicanálise, de Serge Moscovici. E leiam muitas vezes seus textos antes de dar o enter final.
Enfim, talvez seja século 12 mesmo… mas não custa tentar ir atrás da luz.
(*) Jornalista