DEMISSÃO
Sete anos depois do meu retorno à Casa da condessa Pereira Carneiro, acabo de deixar o Jornal do Brasil, onde vivi os episódios mais intensos da minha carreira jornalística. Uma relação que se iniciou ainda nos anos 70, teve momentos de destaque e não merecia encerrar-se melancolicamente, razão pela qual pedi que me demitissem. Há pouco mais de um ano eu me vi afastada do caderno de cultura por um desses equívocos inexplicáveis, esses acidentes de percurso meio doidos que vão atropelando a gente. Coisas de poder e traição. Quando a então editora do Caderno B e minha amiga Regina Zappa foi derrubada numa manobra interna, eu também me vi atingida. Mas a questão é que, após longas conversas com a direção do atual JB, apesar da deferência e evidente consideração com que me distinguia o Flávio Pinheiro, executivo do jornal e pessoa com a qual dialogo bem, senti que o equívoco ainda se manteria, afetando as minhas atividades nessa área na qual tanto tenho a realizar.
A dificuldade reside no fato de que o saber e a experiência que acumulei ao longo de três décadas não interessam ao JB. Ou não interessam o meu olhar e a minha abordagem, expressão de um efetivo compromisso jamais traído com a cultura brasileira, que nunca tratei como curiosidade ou exotismo, mas como valor de nossa identidade. A minha terra e a minha gente estão no cerne do meu interesse de profissional da cultura e da minha emoção como criadora e como intelectual. Seja a multiplicidade e diversidade da cultura, seja a capacidade que nós brasileiros temos de reinventar o viver, dentro de um cotidiano de desvalia e desvalorização daquilo que nos é fundamental como povo. Meu compromisso é com tudo aquilo que revela e exprime as matrizes da nossa identidade, da nossa verdade e da nossa integridade de brasileiros. Por isso escrevo com tanta paixão sobre o cantador Azulão da Feira de São Cristóvão, sobre Patativa de Assaré, Ariano Suassuna e Antônio Nóbrega. Sobre Gilberto Freyre e Câmara Cascudo. Sobre superStições e lendas do nosso fabulário. Sobre cordel e grial, batucadas e batuques, músicas e sons. Sobre as raízes pré-ibéricas do boi amazônico, os mistérios caboclos dos caruanas, os barros de Adauto e de Tracunhaém, as cerâmicas de Caicó, os torés dos índios, a ancestralidade e a tradição religiosa dos negros ou qualquer outra expressão ou manifestação desse amplo espectro que me explica e nos explica. Enfim, sobre as células do nosso tecido nacional que é também tão universal pelo fato simples de sermos todos humanos e partilharmos os mesmos instintos e sentimentos. Por isso mesmo, e pelo contraditório que se instalou, considerei ser a hora de deixar o jornal com que tenho laços tão vivos de afeto: os donos da verdade nos meios de comunicação não parecem sensibilizados ou mesmo interessados em tão profunda brasilidade.
Bem, mas é com essa brasilidade que eu sigo e é ela que me conduz. Estou livre e pronta para oferecer consultoria, criar, orientar e executar projetos, escrever minhas crônicas e artigos. Tudo sobre Brasil. Afinal, foi a missão que recebi de Deus. Ainda este ano pretendo publicar meu livro sobre jornalismo cultural, atendendo a cobranças e apelos nesse sentido com que sou honrada Brasil a fora.
Mas, francamente, acho um despudor o Jornal do Brasil me negar espaço no segmento cultural porque a minha voz e o meu talento estão a serviço do que o país tem de melhor, que é o seu povo. Eu até poderia ficar no JB ganhando o parco salário que ganhava, quietinha num canto, esperando pela oportunidade de assinar uma crítica de disco ou um comentário sobre isso ou aquilo. Anulada.
Mas…quietinha, eu? Num cantinho. Eu? Anulada, eu?
Nunca! Eu até caio, mas de pé, denunciando a falta de respeito que é a desqualificação da cultura brasileira que eu represento, desde a cor sépia da minha pele, até o saber bebido diretamente nas fontes populares e apurado em muito estudo, muita leitura, muita crítica, muito empenho intelectual. Considerei meu dever informar aos meus amigos e aos meios culturais e jornalísticos o porquê da minha decisão. As minhas relações profissionais com o JB podem até mesmo se restabelecer ? o que parece bastante possível ?, mas em outras bases. Por outro lado, os meios culturais e de comunicação, informados da minha atitude, estão me respondendo com enfática solidariedade e aprovação ao meu gesto, o que me desvanece, anima e conforta.