Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Adeus às ilusões ou e agora, Mister M?

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Desde o mais antigo conjunto de leis conhecido, o código do rei Hamurábi, da Babilônia, escrito 1.800 anos antes de Cristo, até a Declaração Universal dos Direitos do Homem, 2.000 anos depois de Cristo, não consta que exista uma única lei assegurando aos cidadãos do mundo o inalienável direito à ilusão, sempre considerado parte do direito natural, consuetudinário, fixado pelo uso ou por ausência de contestação, assim como o indiscutível direito de respirar ou de sonhar com olhos abertos ou fechados.

Mas já passa do tempo de algum legislador mais ousado propor uma lei que garanta o direito mínimo à ilusão, sem a qual perde o homem sua essência maior: a sua capacidade de sonhar, de criar, de inventar, de ser sensível, racional e imaginativo, de iludir e ser iludido (e só assim roçar, ainda que de leve, a face do divino, eis que Ele próprio, a maior de todas as ilusões, também se iludiu ao oferecer ao homem o lívre-arbítrio e deu no que deu).

Oh, sim (como diria o agridoce Waly Salomão), a ilusão pertence à categoria dos bens imateriais. Mas nem por isso menos dignos de atenção e carinho, pois que se afirma menos pela constatação da sua existência mas, sobretudo, quando corre o risco de desaparecimento ou de ruptura. Dessa forma, a existência da ilusão é quase sempre despercebida, mas provoca rios de lágrimas quando é negada, reduzida, suprimida. É possível ao homem comum viver com quase nenhum feijão, mas é-lhe impossível a sobrevivência sem a canção de amor que toca no rádio, sem a esperança de vitória do time do coração, sem a expectativa de um dia dar um tapa na mega-sena e mandar o chefe à merda, sem o sonho de a qualquer hora ver a Vera Fisher entrar por aquela porta e chamá-lo de meu amor. Assim como, para algumas brasileiras, seria impossível permanecer vivas sem a ilusão de um dia receberem um convite do Gianechini para um jantar à luz das velas. Ou subirem ao altar pela mão do príncipe encantado. Definhariam feito flor fora d?água se lhes fosse negada a ração diária das ilusões contidas nas novelas de tv, ou proibidas do mexerico que ritualiza a vida comunitária, ou se cortadas da esperança de ver o filho formado médico, engenheiro ou fazendo um gol no Maracanã.

Ilusão: o primeiro sinônimo de utopia. Vivemos dela. Dela dependemos. Dela somos feitos. Por ela trabalhamos (até ganhar o dinheiro suficiente para comprar um aparelho de tv, um vídeocassete ou um DVD para nos entregar ao devaneio dos filmes e das novelas). Pela ilusão matamos ou morremos desde tempos imemoriais, quando nos iludíamos com o barulho do trovão e o atribuíamos a alguma força superior que chamávamos de Tupã. Quando contraíamos sezão e morríamos nas florestas em busca da riqueza das pedras verdes.

Por causa dela fomos lutar nas Cruzadas nos primeiros séculos da era cristã ou, anteontem mesmo, fomos nos imolar por Alá, com um cinturão de bombas amarrado na cintura. Ilusões religiosas, ilusões políticas, ilusões amorosas… Estamos tão cercados de ilusão que já nem nos damos conta de sua existência. Da mesma forma como estamos cercados de ar e nem nos lembramos dele.

Pra que pão?

Portanto, se a todos é necessário garantir essa fatia essencial sem a qual é difícil ou quase impossível viver, é de justiça a punição a este tal de Mister M, por todo o mal que causou e ainda causa aos domínios da ilusão. E aqui nem me refiro aos prejuízos materiais que causou aos mágicos de toda parte. Mas, pelo menos ao que roubou e suprimiu e trucidou e rompeu e negou e surrupiou e sufocou ao mundo do imaginário onde habita a ilusão. A supressão da essência da magia ? o segredo ? é empobrecedora do gênero humano porque o empurra para o atoleiro da realidade, de onde sempre aspirou sair.

O ilusionismo ? esta capacidade que os mágicos têm de produzir ilusão ? é o que os torna fascinantes, é o que os reveste com a aura do extraordinário, é o que os faz encostar no sublime. Revelar seus truques é matar a galinha dos ovos de ouro da fábula (ah, as fábulas, essas fontes inesgotáveis de ilusão). "As crianças perderam a fantasia. Por que não chegam no Natal e dizem que Papai Noel não existe, se querem estragar o que é belo?", pergunta o mágico paulistano Geraldin, comentando a ação predatória do Mister M.

Todo poeta é um ilusionista. O poeta Mário Quintana, num de seus truques, dizia que a chupeta é a primeira ilusão. Leonard Montano, o Mister M, não apenas tirou o pão da mesa dos mágicos, mas roubou a chupeta das crianças. É, portanto um perigoso meliante. Em troca de alguns trocados, nos roubou a ilusão. E sem ela, diabos, pra que pão?

(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>