SALVE JORGE
"Meu amigo Jorge Amado", copyright O Globo, 12/8/01
"Parecia impossível, mas esta semana o Brasil ficou mais burro com a perca de Jorge Amado. A Bahia está de luto, pois Jorge, além de Amado pelas multidões, era o único grande artista baiano que morava em Salvador. Apesar de indolente, o grande Jorge Amado trabalhava muito e nos legou uma vasta obra literária, onde brilham os clássicos ?Cafetões de areia?, ?Tieta Batista cansada de guerra? , ?Itamar Morto? e o meu preferido, ?Cacau?, assunto que muito me interessa enquanto jornalista investigativo e que anda cada vez mais escasso na minha conta bancária.
Conheci Jorge Amado ainda jovem no jornal ?A Noite?, onde trabalhava à tarde. Juntos fazíamos o horóscopo, a coluna de turfe, as receitas culinárias e os editoriais. Às vezes, exaustos, trocávamos as bolas e publicávamos uma receita de empadinha na página de opinião e um candente editorial contra o Getúlio no signo de Virgem. Como todos os jovens idealistas daqueles tempos bicudos, nos filiamos ao PCB, já que o ouro de Moscou era o único jeito de inteirar os nossos salários miseráveis.
Por ser um cara honesto, bom caráter e gente boa, logo percebi que Jorge jamais teria futuro no jornalismo. Então entrei numa papelaria da Rua da Alfândega e comprei um bloco de mais de quinhentas folhas. Entreguei o bloco nas mãos do Jorge e sugeri ao bom baiano:
? Vai, Jorge, escreve um livro bem grosso!
E ele escreveu vários livros grossos cheios de sacanagem, safadeza e mulatas boazudas abrindo as pernas, quer dizer, as portas do mundo fascinante da literatura para milhões de brasileiros que achavam que livro só servia para dar um calço em mesa bamba.
Com a sua vasta e genial obra, Jorge Amado ajudou a combater o racismo no Brasil. Nenhum outro escritor deu emprego a tantos personagens afro-brasileiros em seus romances como Jorge Amado: capoeiristas, quituteiras, mães-de-santo, mulatas sestrosas, percussionistas, malandros, babalaôs. O primeiro emprego do Carlinhos Brown quem arrumou foi o Jorge Amado. O escritor, sempre solidário com os seus conterrâneos, arranjou uma vaga para o genro favorito do Chico Buarque no prefácio de um livro, já que o resto do romance estava lotado.
Jorge nos deixou, talvez para não ter que votar nas próximas eleições. Mas, felizmente, a obra de Jorge Amado é imortal e vai continuar para sempre viva e latejante. Ao contrário do meu bilau."
"Sorry, Amado", copyright no. (www.no.com.br), 7/8/01
"Vou confessar um pecado da adolescência. Quando li Jorge Amado pela primeira vez, não gostei. O primeiro livro dele que me caiu às mãos foi Cacau, o seu segundo. Achei grosseiro, populista. Eu era jovem e algo precoce nas minhas leituras, o que empoava ainda mais minha soberba de adolescente ?intelectual?. O próprio Jorge Amado, diria dele mesmo as razões que me fizeram desgostar dele de início. Ele era ?o antidoutor, o antierudito?, ?folhetinesco?, um intruso nas letras, um estranho no ninho da inteligentzia. E, embora ele mesmo, não sem ironia, se definisse dessa forma, evidentemente não era ?popularesco?, muito menos populista, era popular. Um defensor das causas populares, na vida e na literatura. Um bravo, incansável lutador, até agora, quando foi encantado, nunca vencido.
Já que comecei, confesso tudo. Quem me fez ler Jorge Amado novamente, primeiro com atenção, depois com gosto, foi Albert Camus, então uma referência importante para mim. Continua sendo, embora o que dele hoje me fale mais fundo, não seja o mesmo que me mobilizou na adolescência e juventude. Um dia, um sofisticadíssimo amigo meu me trouxe como lembrança de uma viagem a Paris uma coletânea de textos de Camus para a imprensa. Entre eles, lá estava, para minha surpresa, uma aclamação de Bahia de Todos os Santos, o quarto livro de Jorge Amado.
Li, com espanto, a frase curta de Camus sobre ele: ?um livro magnífico e atordoante?. E lá estava a denúncia firme de minha ignorância. Ao comparar o Bahia de Todos Santos com o romance de Giraudoux, Choix des Elus, celebrado como uma grande obra intelectual, o relato de Jorge Amado saia vitorioso, exatamente porque, segundo Camus, ?poucos livros estariam tão distantes dos jogos gratuitos da inteligência?. Via em Bahia de Todos os Santos, ?o uso comovente dos temas folhetinescos, uma entrega à vida, naquilo que ela tem de excessivo e desmesurado?. Atordoado, fui à biblioteca de meus pais ? os dois eram leitores fiéis dele ? para pegar imediatamente Bahia de Todos os Santos e tentar descobrir lá a ?trajetória apaixonada de um ser natural em busca da revolta autêntica?. A palavra mágica, naquele dia de revelação, foi revolta. Era o culto da revolta que então me ligava a Camus.
Demorou, mas me curei. A mais anos do que gostaria de confessar, ?A Morte e a Morte de Quincas Berro D?Água?, ?velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua? ou ?vagabundo por excelência?, é para mim um marco inexcedível da literatura brasileira. E não pela revolta ? e revolta houve, contra aquele asqueroso espanhol que lhe serviu água por pinga ? mas pelo que tinha de picaresco, por seu tom de folhetim, pelo suspense em torno daquela morte anunciada, pelos cortes quase cinematográficos da narrativa, pelos flashbacks. Um folhetim inigualável.
Nunca mais duvidei das evidentes virtudes de Jorge Amado, que me deixaram atento para o extraordinário exercício intelectual que é escrever um bom folhetim. Uma crônica autêntica do dia a dia, suspensa nos mistérios criados pelo ritmo da pena. Acabei leitor admirado dos dois maiores folhetinescos que tivemos, antípodas políticos, aproximados pelo domínio genial desse gênero enganador, Jorge Amado e Nelson Rodrigues.
Já adulto, estava uma vez em casa de amigos, em uma gelada cidade de upstate New York, conversando sobre literatura e eu falei de minha lista particular de grandes autores brasileiros e suas obras marcantes para mim. Jorge Amado e sua Morte de Quincas Berro D?Água já incluídos. Havia um argentino na roda de discussão e a conversa acabou fluindo naturalmente para a literatura de seu país. Em meio à conversa fiz um elogio de Borges e disse, numa empolgação típica dessas conversas noturnas regadas a vinho, que ele expressava uma parte importante da alma argentina. Estava pensando no seu lado ?tanguero? e em suas narrativas e seus poemas sobre o ?Sur?. São expressões com raízes populares, mas com um lado elitista predominante. O argentino, um esquentado revolucionário, sentiu-se ofendido, me ofendeu diretamente em revide e a coisa quase acaba em pancadaria. Para ele Borges nada tinha de expressão do sentimento argentino, não passava de um porta-voz de uma elite predatória e sanguinária.
Lembrei-me desse episódio porque ele tem algo a ver com minha primeira reação a Jorge Amado. Eu, por elitismo e arrogância intelectual, reagi negativamente a uma manifestação não só de raiz ? retrato da autenticidade popular com a qual Amado se identificava ? mas de extraordinária riqueza literária. Ele, por intolerância ideológica, negava em Borges o inegável, sua autêntica ?argentinidade?. Duas formas de preconceito.
Não me julgue mal o leitor. Em momento algum imaginei, ao escrever essa confissão acima, que ela tenha alguma importância a propósito de Jorge Amado. Foi apenas um abuso de poder sobre esse pequeno território que me foi dado em no. Estou me aproveitando abusadamente dele em proveito pessoal, só para poder dizer publicamente: sorry, Amado. Salve Jorge."