ou, em milhões e milhões de ações individuais, cada trabalhador recorra por conta própria à Justiça.
Se tivéssemos um governo ético, que não teria a menor intenção de apropriar-se indevidamente do patrimônio dos trabalhadores, por certo que a primeira alternativa já estaria sendo providenciada ? mas, aí, a bem da verdade, nem mesmo teria havido a apropriação anterior… E, nesse caso, nem mesmo seria preciso o advento, como querem alguns parlamentares, de uma lei autorizadora, pois não é preciso lei para permitir ao governo devolva o que não é nem nunca foi dele.
Assim, restam as soluções judiciais. Ocorre que, para evitar milhões e milhões de ações individuais, que assoberbariam a Justiça, levariam décadas para serem julgadas, receberiam decisões contraditórias e causariam o desprestígio da Justiça e o abandono do direito ? para evitar tudo isso, a Constituição (art. 129, III) e as leis (n. 7.347/85 e 8.078/90) criaram o sistema de ação civil pública ou coletiva, pela qual alguns legitimados coletivos (Ministério Público, sindicatos, associações civis etc.) podem, num único processo, discutir o direito de toda a categoria lesada.
Pois não é que o governo federal, diante da iminente derrota que sofreria no STF, em junho passado, alterando abusivamente pela enésima vez a Medida Provisória 1.894, dispôs que "não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados"?
Ou seja, o governo diz assim: como a Constituição e as leis instituíram um sistema para defesa coletiva de direitos, e como esse sistema pode ser usado contra mim, então eu impeço o funcionamento do sistema para não ter de devolver aquilo de que me aproprio indevidamente. Sim: o fundamento é esse, pois ninguém tenha ilusão. Se em vez da ação coletiva for usada a ação individual, cada lesado terá de contratar individualmente um advogado para lutar em juízo. Isso será muito bom, sim, mas só para o causador do dano, pois, na prática, a grande maioria dos lesados não busca acesso individual à jurisdição, diante das dificuldades práticas (honorários de advogados, despesas processuais, demora, pequeno valor do dano individual, decisões contraditórias etc.).
Basta ver o que tem acontecido tantas vezes: quem, individualmente, recorreu ao Judiciário contra o inconstitucional bloqueio dos ativos financeiros (Plano Collor – 1990)? Ou ajuizou ação contra a inconstitucional cobrança progressiva do imposto de transmissão de bens imobiliários ? ITBI (São Paulo, desde 1991)? Ou bateu às portas da Justiça pedindo devolução de empréstimos compulsórios sobre o combustível, ou pedindo correção nas tabelas do imposto de renda, ou combatendo a indústria das multas de trânsito, os aumentos abusivos de pedágios e tantas outras ilegalidades e abusos?
E é exatamente com isso que conta o governo: como nem todos vão à Justiça, ele se apropria indevidamente do patrimônio dos trabalhadores, certo de que, no geral, isso é um bom negócio, ao menos sob o aspecto estatístico.
Mas, temeroso de que hipoteticamente os tribunais possam reagir ? apesar de não terem eles tradição de o fazerem ao menos com a brevidade e eficiência necessárias (basta ver que agora é que saiu a decisão final, mas não a execução, referente à correção monetária de planos econômicos lesivos de mais de uma década…), ainda assim o governo age preventivamente e busca impedir o acesso coletivo ao Judiciário. E o faz com o uso, ou melhor, com o abuso das medidas provisórias ? ao qual o STF ainda não pôs cobro!
Ora, considerando que o acesso coletivo à jurisdição (ação civil pública ou coletiva) é o único meio eficiente previsto em nosso Direito para garantir o efetivo acesso de todos os lesados ao Judiciário (pois, pelo sistema da legitimação individual, está provado que a maioria dos lesados fica sem efetivo acesso à tutela jurisdicional), qualquer lei que impeça esse acesso é inconstitucional.
Resta esperar que o STF, à altura de sua posição constitucional, coíba essas práticas governamentais, até porque um governo responsável não pode sequer alegar não ter como devolver o dinheiro indevidamente por ele apropriado.
(*) Advogado, professor de Direito, procurador de Justiça aposentado e autor de diversos livros jurídicos, entre os quais A defesa dos interesses difusos em juízo (12a edição, Saraiva, 2000).
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