Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alberto Dines

«Quando um jornalista comete um crime, o crime é muito mais crime», sugere o nosso compatriota Carlos Chaparro (professor da Universidade de São Paulo), na sua página da Internet. Prova disso seria que, nas manchetes do «segundo dia», apenas um dos grandes jornais do Rio e de São Paulo «tratou o criminoso pelo seu nome próprio». O acento tónico era colocado no qualificativo profissional. «O foco emocional – conclui Chaparro – foi inteiramente centrado na carga mítica da palavra jornalista».

Permito-me sugerir uma interpretação. Se Pimenta Neves se transformou em emblema (negativo) de toda uma categoria profissional, foi porque, desse modo, a sociedade brasileira, ou determinados sectores dela, puderam operar uma espécie de «transferência», deslocando o jornalista para o lugar do assassino. A imprensa que, por via de regra, critica, denuncia, acusa, sentou-se, desta feita, no banco dos réus. Os autores de tantos julgamentos mediáticos eram, por uma vez, eles próprios, julgados e condenados, por interposta pessoa, sem direito a audição prévia, pelo tribunal da opinião pública.

Dines referiu que, neste «caso Pimenta», «está exposto pela primeira vez um dos ingredientes básicos de um processo que Sigmund Freud chamaria de “psicopatologia do quotidiano jornalístico”: a omnipotência». Talvez por isso a opinião pública brasileira, ou parte dela, projectou no director de redacção do Estado de S.Paulo o seu mal estar perante uma imprensa useira e vezeira em infringir os direitos do cidadão comum, mas perplexa e nervosa quando um membro de proa da comunidade jornalística presta contas por um acto bárbaro e indesculpável.

PS – Agradeço aos meus amigos e colegas Carlos Chaparro, Alberto Dines, Otavio Frias Filho, Eduardo Meditsch e Francisco Karam as opiniões e os materiais com que me habilitaram a escrever este comentário. Sem a sua preciosa ajuda, o recurso à Internet e ao correio electrónico, esta coluna não teria sido possível. Mas, obviamente, nenhum deles é responsável por eventuais erros contidos nesta análise efectuada à distância."

"Tantas perguntas, nenhuma resposta", copyright O Estado de S. Paulo, 24/08/00

"Talvez eu tenha vivido pouco. Tenha vivido mal e a vida me tenha poupado de experiências brutais. Não sei quanto se deve viver até aprender.

Desde domingo carrego a sensação de que acabei de nascer. De que a vida começou esta semana sob o impacto do mal. De domingo para trás estive num ensaio, decorando diálogos, recebendo marcações. De domingo em diante, o palco desapareceu, sumiram as marcações, esqueci os diálogos. Agora, não tem diretor nem texto, flutuo no vazio da incompreensão, no vácuo da perplexidade. Ou a vida é isso? Nenhuma resposta e tantas perguntas.

Estava em casa e recebi o telefonema de um amigo. Minha mulher, ao meu lado, me ouviu gritar, eu que jamais grito. E me viu ficar branco e trêmulo.

Ocorreu a ela que tivesse acontecido alguma coisa grave ao meu filho, que vinha de uma fazenda. Não foi com meu filho, felizmente. Nunca um felizmente soou tão estranho numa frase, numa vida. Tão inadequado. Há momentos que a gente gostaria de varrer, transformar em miragem. A partir do instante em que Marco Antônio Rocha me comunicou, cheio de laconismo e dor, que Pimenta Neves tinha matado a namorada, o mundo passou a ser incômodo, assustador.

Desde aquele momento até hoje, quarta-feira, quando escrevo esta crônica, não tenho dormido, sinto ânsias depois de cada garfada, caminho como sonâmbulo. Um gesto. O dedo aciona um pedaço de metal de 3 centímetros, o gatilho, e um mundo de vidas desmorona como dominó. Infelizmente, dedos que acionam gatilhos não possuem lucidez, consciência da extensão dos gestos, proporção do ato. Penso com dor em quem morreu, na família que se viu em meio a uma tragédia, nos amigos dela. No entanto, meu pensamento se alonga em outra direção. Nas duas filhas de Pimenta, as gêmeas, distantes, sem terem, talvez, acompanhado a desintegração da mente do pai, porque acredito, neste caso, na deterioração de neurônios, emoções, sentimentos, razão. Pela primeira vez na vida vislumbro a extensão de um drama, sua multiplicação, o impacto da violência. Até agora fui espectador, ingênuo, despreparado.

Domingo, comecei a amadurecer. Depois, penso na ex-mulher, nas irmãs de Pimenta, em nós, amigos, aturdidos e atemorizados.

Durante a semana, uma avalanche de acusações e declarações se desencadeou, vinda de conhecidos, de gente que trabalhou com ele, conviveu em redações.

Não li nem ouvi nenhuma palavra a seu favor. Em dias se montou a imagem de um monstro. Não defendo o gesto de Pimenta. Mortes como a de Sandra tornam a vida feia, mergulham o mundo no escuro. No entanto, misturadas, me chegam imagens desencontradas do homem que saía do Cine Odeon, em Araraquara, em nossa adolescência, ansioso por fazer filmes, criar arte. Esse foi um de seus sonhos. Não fez, foi por outros caminhos e foi brilhante no que fez. Ou o homem que carregou docemente por anos a imagem de uma apaixonada de juventude.

Não estou justificando, nem atenuando, o gesto que me fez perceber como somos frágeis, desamparados, cheios de meandros interiores, obscuros e perigosos, atemorizantes. Ah, como tive pavor esta semana! Como tivemos medo, nós, amigos e conhecidos, ao raciocinar: estamos sujeitos a isso, a um gesto desses? Em que segundo os limites se dissolvem? Imagens me vinham.

Pimenta e eu saindo de Washington, porque ele queria revelar-me o fascínio do Vale de Shenandoah, o mesmo de um filme em tecnicolor que nos encantara.

Ou passeando por museus de Washington para me mostrar pinturas que o tocavam. A beleza o emocionava. O Pimenta que me enviava livros, ou vídeos raros ao Rodolfo Konder. O homem que, nas viagens de volta ao Brasil, quando estava no Banco Mundial, pedia aos amigos de Araraquara que organizassem um reencontro com a turma de classe. A imagem que me vem é a do futebol do curso científico, quando Bazani, já um craque na Ferroviária, fazia longos lançamentos para a ponta, obrigando o Pimenta a xingar, correr e a saltar feliz com o gol que o meio-de-campo lhe dera.

Enquanto escrevo, ele está no hospital, em coma induzido, com a polícia na porta à sua espera. Ao destruir, ele se destruiu. Até esta semana, perto de mim, jamais tinha visto uma pessoa se desfazer como este amigo de 50 anos, que se desconstruiu por razões que somente ele soube ou armou. Nunca tinha estado próximo a um desmoronamento tão implacável. Por mais que a psicanálise evolua, que a psiquiatria se desenvolva, que as ciências da alma se modernizem, jamais chegarei a entender. Nem posso calcular a extensão do sofrimento que aquele dedo no gatilho disseminou. Que dedos no gatilho disseminam. (Ignácio de Loyola Brandão é escritor)"

"Advogado divulga nota oficial à imprensa", copyright O Estado de S. Paulo, 29/08/00

"Esta é a íntegra da nota divulgada pelo advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira:

‘Na qualidade de advogado de Antônio Pimenta Neves, sinto-me na obrigação de tecer algumas considerações. Parcelas da mídia e da opinião pública estão analisando o episódio de forma açodada, pré-concebida, sem nenhuma imparcialidade. Meu cliente está sendo massacrado. Querem condená-lo, sem processo e sem defesa. Fatos aparentemente desabonadores são lançados na mídia, sob o sigilo da fonte. Contrariamente do que ocorre na Justiça, os fatos não precisam ser provados. Passam a ser verdades. Na Justiça se prova, na mídia não. O tratamento não é imparcial. Noticia-se o negativo. Sua personalidade, seu caráter, sua rica vida profissional são rigorosamente esquecidos. Quer-se traçar um perfil pessoal absolutamente distorcido.

Querem mostrá-lo como um frio assassino. Desejam o seu encarceramento provisório. Duvidaram de sua tentativa de suicídio. Querem prendê-lo como se fosse um temível facínora. Não se limitam a informar, acusam. Não admitem defesas, condenam. Não querem processo, querem punição. Desejam sua prisão porque teria confessado o crime. Sim, confessou. E quantos o fizeram e aguardam o julgamento em liberdade, por que essa é a regra? Seu interrogatório foi clandestinamente gravado, editado e divulgado, mesmo contra ordem judicial. Da criminosa gravação, extraíram uma cena e passaram a taxá-lo de prepotente. Ninguém trata o episódio como um fato isolado em sua vida. Dizem que ele em liberdade poderá matar outras pessoas. Cínico e estúpido argumento. O inquérito já se encontra relatado. Tempo extraordinariamente curto para o seu término. Faltam laudos. Não houve oportunidade de se juntar uma mera declaração que fosse. Nem sequer a transcrição da fita contendo a complementação de seu interrogatório encontra-se nos autos. Não é hora de fazer sua defesa técnica e nem o foro competente. É hora apenas para lembrar que a função de julgar é, ainda, em nosso país, própria e exclusiva do Poder Judiciário. O que vem acontecendo não é democrático. Não é civilizado. Não é justo. Quer-se, apenas, um julgamento com obediência às normas constitucionais, respeitado o sagrado direito de defesa, o contraditório e o devido processo legal. Fora daí é barbárie. É vingança. É inadmissível retrocesso.’"

"Pimenta tem antecedentes", copyright no., 25/08/00

"Na batalha jurídica que terá que enfrentar a partir de agora, Antônio Pimenta Neves terá problemas com a própria biografia. Além da queixa que Sandra Gomide fez em uma delegacia de São Paulo dias antes de ser assassinada, o ex-diretor de O Estado de São Paulo teve problemas com a polícia americana. Motivo: agressão física contra sua ex-mulher, a cientista política americana Carol Neves. Em 1994, Carol chegou a registrar uma queixa na polícia da Virgínia, onde o casal morava, em um sítio a quarenta minutos de Washington. Acusou o ex-marido de tê-la agredido com o cano de uma arma durante uma discussão. Antes que a acusação pudesse render maiores dores de cabeça para Pimenta, no entanto, Carol retirou a queixa.

No Brasil com as duas filhas, Stephanie e Andrea, Carol tem comentado com amigos que jamais poderia imaginar que, apesar de seu histórico de violência, Pimenta pudesse matar alguém. Ainda assim, os antecedentes do jornalista devem ser usados pelo advogado da família de Sandra, Luiz Flávio Gomes, para traçar seu perfil psicológico como o de uma pessoa instável e violenta.

Pelo que contam os amigos, Pimenta Neves e Carol tiveram um casamento conturbado, que alternava períodos serenos com outros de violentas discussões. Uma relação que lembrava a que Pimenta Neves manteve com Sandra. No final de 1994, o casamento do jornalista e Carol complicou ainda mais quando médicos americanos diagnosticaram um início de câncer no útero de uma de suas duas filhas. Por conta da doença, Pimenta Neves teria adiado a decisão de se separar da mulher.

Em 1995, no entanto, a separação acabou por se consumar de maneira paulatina. Nesse período, Pimenta Neves foi chamado para assumir o cargo de editor-chefe do jornal Gazeta Mercantil. A princípio, ele ocuparia a vaga por um período de, no máximo, um ano e meio, enquanto se consolidava uma transição na hierarquia do jornal. Depois disso, voltaria a ser correspondente em Washington. Quando chegou ao Brasil, o jornalista negociou com os donos da Gazeta o cargo permanente de diretor. Foi aí que se separou de vez de Carol.

O jornalista mudou para os Estados Unidos em 1974, onde foi ser correspondente da Folha de São Paulo, Gazeta Mercantil e O Estado de São Paulo. Em 1986, candidatou-se a uma vaga no Banco Mundial. Durante os nove anos em que ficou no banco, angariou uma penca de inimigos. Entre eles, o ministro da Fazenda, Pedro Malan. O jornalista queria transformar-se em uma espécie de conselheiro para assuntos da vice-presidência da América Latina e Caribe. Malan debochava das intenções de Pimenta Neves, que era assessor de imprensa do banco.

Falante, seguro, engraçado, sarcástico, dono de boas tiradas, Pimenta Neves no convívio social é descrito como uma daquelas pessoas que têm o tempo da bola. Sabe quando e como dizer a coisa certa. ‘No convívio mais próximo, no entanto, ele é um sujeito demolidor. Distribui adjetivos fortes sobre todos. Um é débil mental, outro é idiota. E por aí vai’, diz um integrante do mercado financeiro que acompanhou os anos de Pimenta Neves em Washington.

O jornalista costuma ser descrito como profissional talentoso e culto. Na Folha de São Paulo, foi o segundo de Cláudio Abramo. Na Gazeta Mercantil, participou do período em que a tiragem do jornal dobrou. No período em que fez parte da direção de O Estado de São Paulo, a circulação do jornal aumentou em 30%. ‘A competência e o talento dele são inegáveis’, elogia o jornalista Roberto Muller, com quem trabalhou na revista Visão e na Gazeta Mercantil.

Quando se trata do perfil extra-redação de Pimenta Neves, no entanto, tem como principal característica a megalomania. Em Washington, eram comuns referências irônicas como ‘Pimenta que, como se sabe, é amigo íntimo do Clinton’. Um jornalista que trabalhou com Pimenta por quase uma década o descreve como ‘uma pessoa muito dura consigo mesma, e que tinha delírios de grandeza. Assumia a autoria de idéias que deram certo mas não eram suas, por exemplo’. O mesmo jornalista conta que Pimenta nunca cometeu desvios éticos, à parte os deslizes com Sandra. Como exemplo, menciona o fato de que Pimenta proibia os jornalistas de viajarem a convite de empresas interessadas em divulgar seus produtos – uma prática que é comum na maioria das redações do país.

Pimenta Neves nasceu em Araraquara, em uma família de classe média. Na adolescência, passou por um trauma que evita comentar: uma de suas irmãs se matou aos 17 anos – pulou do alto de um prédio em São Paulo. Na juventude, o jornalista militou na Juventude Trabalhista e se ligou ao Teatro de Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, então em formação. Costuma dizer aos amigos que uma alternativa ao jornalismo teria sido a de seguir carreira como ator. Do ponto de vista psicanalítico – aquele segundo o qual no palco as pessoas liberam seus demônios – poderia ter sido uma boa opção."

"O crime, a ‘festa’ e a catarse", copyright America Online Brasil, 31/08/00

"Depois de sete dias de emoções, dramas e suspense nos jornais diários e nos noticiários de TV e rádio, as revistas semanais (Veja, Época e Isto É) encerraram, neste fim de semana, a ‘festa’ jornalística em torno do crime cometido pelo jornalista Antonio Pimenta Neves.

Claro que o assunto continuará ainda por algum tempo com relevância nas pautas diárias. Mas, depois da devassa de bastidores feitas pelas três revistas, o noticiário tenderá cada vez mais a se ater aos fatos e à informação técnica do processo e das escaramuças entre os advogados.

Sete dias depois do crime, houve também, feita pela Folha de S. Paulo, a catarse dos pecados da cobertura jornalística. Catarse, com todos sabem, é a purgação que purifica e liberta. O termo, preservado pela cultura, tem raízes etimológicas nos Cátaros, seita medieval combatida e condenada pela Igreja da inquisição.

Os Cátaros se proclamavam representantes e praticantes da doutrina mais pura das crenças e dos costumes humanos. Uma pureza radical, sem meios termos, sustentada pela imposição de continuadas práticas purificadoras de maniqueísta adesão ao ‘bem’. Eram fundamentalmente contra o matrimônio, porque (a tanto chegavam) repudiavam o ato sexual e qualquer relação entre os sexos.

Os Cátaros se foram, ficou a catarse, figura retórica de sabor mitológico utilizada principalmente pelos saberes da Psicologia, para significar o efeito benéfico, libertador, da conscientização de uma lembrança até então reprimida.

Pois a Folha, em vários textos de avaliação crítica (o principal deles, o da ombudsman Renata Lo Prete), fez na edição de domingo passado a catarse ‘purificadora’ da experiência jornalística da cobertura do crime.

Todos os ‘pecados’ cometidos, de favorecimento do criminoso, foram devidamente apontados e expurgados. Pena que, nessa mesma edição, na reportagem em que relatava os fatos da véspera, a Folha tenha omitido a visita de amigo feita a Pimenta Neves pelo diretor de redação da própria Folha, Otavio Frias Filho.

Na catarse levada a efeito pela Folha faltou também relatar com maior precisão as razões porque o jornal O Globo, do Rio, e a TV Globo fizeram do caso a cobertura mais destacada e, ao contrário da própria Folha, sem poupar Pimenta Neves.

Uma das últimas decisões do jornalista matador, no cargo de diretor de redação do Estadão, foi a de proibir notícias da Globo no jornal, inclusive no suplemento dominical dedicado à televisão. Ele havia sabido que a assessora de imprensa da Globo em São Paulo, amiga de Sandra, a ajudava na busca de proteção policial contra as ameaças de Pimenta Neves e também na busca de emprego.

A proibição do noticiário da Globo nas páginas do Estadão foi um revide. A Globo soube disso e fez também o seu acerto de contas, na cobertura do crime. O momento mais intenso e agressivo desse acerto de contas foi a divulgação da fita com a misteriosa e clandestina gravação do depoimento nada abonador em que o assassino confessou com detalhes o crime e as suas razões.

Com catarse ou sem ela, deve-se reconhecer que a imprensa passou por uma experiência traumática e difícil. Não é fácil noticiar com independência e distanciamento crítico um crime em que criminoso e vítima são jornalistas.

Ele tinha amigos poderosos e aliados influentes nas principais redações, nas quais também plantara alguns inimigos; ela, jovem ainda em plena fase de acalento de sonhos, também fizera amizades e inimizades nas redações por onde passara.

Como evitar interferências subjetivas no recorte, na relação e na explicação dos fatos? Nos primeiros dias da cobertura houve, principalmente na Folha, um claro movimento de proteção às razões do criminoso.

Pimenta Neves foi favorecido, por exemplo, pela evidência dada à versão de que, na origem de tudo, ele fora vítima de sedução – como se, num caso de amor reciprocamente cultivado, fosse possível e até importante determinar quem leva quem para a cama.

Sandra foi, portanto, duplamente vitima, frágil diante da covardia dos tiros, mais frágil ainda, porque indefesa, diante dos fáceis julgamentos da cultura machista que persiste na sociedade, e por decorrência nas redações. É a cultura-mãe do argumento jurídico da legitimidade da morte em defesa de honra. Na prática dessa jurisprudência, tal legitimidade tem servido apenas para absolver ou reduzir penas de homens que dizem ‘matar por amor’.

A verdade é que ambos, Pimenta Neves e Sandra, deixaram-se envolver, inclusive na vida profissional, pelos desatinos da paixão, num processo de destruição favorecido por fragilidades de caráter comuns aos seres humanos. Isso aparece claramente nas reportagens de duas das revistas semanais, em tom de maior isenção na "Vejinha" (Veja São Paulo).

A Época apresenta sobre a "Vejinha" a vantagem, importante, de dar nome às fontes e aos personagens dos episódios relatados. Mas tenho informações seguras de que vários dos diálogos publicados (‘reproduzidos’ até com travessões) não correspondem às conversas tidas com as fontes citadas. Nem na forma, nem na essência.

A Vejinha não inventou diálogos. Reportou com precisão as informações recolhidas de gente envolvida nos episódios relatados, tirando proveito dos acordos feitos com fontes que se abriram protegidas pelo anonimato do ‘off-the-record’.

Para encerrar, tiro da Folha o recorte de uma frase exemplar de Ruy Mesquita, diretor-responsável do Estadão, dita após a missa de sétimo dia da morte de Sandra: ‘O Pimenta que eu conheci (…) morreu na hora em que se tornou um assassino’.

Pois que como assassino seja visto e tratado também pela imprensa, no relato rigoroso dos fatos e das circunstâncias. (Carlos Chaparro é professor de jornalismo da USP (Universidade de São Paulo)"

"Pimenta Neves", copyright Folha de S. Paulo, 31/08/00

"Os jornais paulistas onde Pimenta Neves trabalhou tantos anos reagiram com estupefação à notícia do crime. Concordo com a crítica de que a edição deste jornal, no dia seguinte, foi ‘tímida’ – e aceito minha responsabilidade nesse erro. Mas discordo da noção, que começa a prevalecer, de que o assassino está sendo favorecido.

A maior parte das versões divulgadas proveio da acusação e de pessoas ligadas a Sandra Gomide. O assassino não se manifestou, exceto em depoimento editado com notória má-fé contra ele. As revistas – capa em todas elas – pintaram-no como vilão rematado. A TV se entregou prazerosamente a seu linchamento moral.

Entendo essa avalanche como reação emocional e legítima à barbaridade do crime. Pimenta Neves cometeu um delito gravíssimo pelo qual terá de pagar. Disse isso a ele na visita que me vi obrigado a lhe prestar, na condição de alguém que o respeitava e admirava fazia 25 anos, desde que Cláudio Abramo nos apresentou na Folha.

Embora reconheça minha limitação para distinguir o aspecto subjetivo do jornalístico neste episódio, penso que a mídia em seu conjunto, no afã de se mostrar ‘independente’ (e de acertar velhas contas com o réu, em alguns casos), corre o risco oposto. Não o de protegê-lo, mas o de satanizá-lo num corporativismo às avessas.

Dizem que, ao assegurar o ‘outro lado’ da defesa e tratar fatos não comprovados como versões, os jornais têm cautelas que não demonstraram em outros casos. Pois elas deveriam ser adotadas em todos os casos. Espero que esta crise, além de testar a independência da mídia, também ponha à prova nossa propensão ao maniqueísmo.

Sempre considerei certos recursos de que este jornal dispõe – ombudsman, seção ‘Erramos’, compromisso de publicar o ‘outro lado’ e mensagens de contestação – como contrapeso da violência moral que um jornalismo crítico pode desencadear. É cômodo defender esse direito da parte acusada em casos controvertidos.

Mesmo o pior dos assassinos, porém, tem direito a sua versão dos fatos. Conhecê-la é direito do próprio público ainda quando este, açulado pelo clima de linchamento, não se dispõe a ouvi-la. Nada do que Pimenta Neves alegar poderá justificá-lo. Nada pode restituir a vida de Sandra Gomide ou compensar a dor de sua família e amigos.

E, no entanto, o réu não era um monstro. Os atributos que todos lhe reconhecem – talentoso, culto, maduro, situado em posição de responsabilidade – tornam seu gesto ainda mais incompreensível e mais grave a carga de infâmia que recai sobre seus ombros. Não sabemos quase nada sobre os abismos do psiquismo.

Vida até então sem mácula, era mais apegado às noções de moral e ética do que a grande maioria dos mortais. Para quem o conheceu, o crime estarrece ainda mais por isso. Uma página de Dostoiévski explica mais do que todas as platitudes que temos visto desfilar sob pompa psiquiátrica, no eterno circo que é o julgamento humano."

"No lugar da notícia", copyright Folha de S. Paulo, 31/08/00

"Não fossem o assassinato de Sandra Gomide e a precedente série de atos sórdidos para prejudicá-la, Pimenta Neves teria passado pelas redações sem ser notado pelo jornalismo. Embora suas numerosas e duradouras oportunidades de contribuições merecedoras de memória, sua relevância jornalística faz-se, enfim, mas como notícia.

Atos de desonestidade para ganho material, com uso dos seus cargos, não figuram no que se sabe da vida profissional de Pimenta Neves. O que já é bastante, se comparado a muitos outros que também se fizeram profissionais do oficialismo. Nesse oficialismo, como contenção do exercício profissional nos limites e modos desejados pelo poder, é que o seu jornalismo se perdeu, cedo ainda. Daí a serviços de subserviência ainda maior e de cada vez menos ética, tudo depende só das circunstâncias.

Traço comum a todos os que fazem tal percurso é a necessidade de forjar-se um sentimento de poder, de importância e onipotência mesma, para suportar o convívio com a sua verdade interior. Foi esse sentimento nebuloso, com suas formas de autoritarismo e arbitrariedade, que espantou os delegados ao tomarem seu primeiro depoimento.

Como diretor de redação de O Estado de S.Paulo, Pimenta Neves levou as posições do jornal, expressas por intermédio do noticiário, a extremos que não se viam ali desde o período anterior ao golpe de 64. O desejo da Presidência de que os procuradores da República fossem atacados, na tentativa de desmoralizá-los para não investigarem as ações de Eduardo Jorge Caldas Pereira, recebeu de Pimenta Neves um atendimento sem igual: páginas e páginas inteiras de ataque, diatribes que nem assinatura puderam levar. Mesmo sendo o jornal pró-governo, a prepotência não fez cerimônia nem com o fato de que o Estado já foi notabilizado pela tradição de combate à imoralidade administrativa e política.

Pimenta Neves explica a execução de Sandra Gomide como consequência de decepção sentimental e profissional, esta provocada pelo comprometimento da jornalista e ex-namorada com a retenção de uma notícia inconveniente à Vasp. A notícia, para começar, não tinha importância alguma, era aquela história disforme de que uma igreja desconhecida queria arcar com os bilhões de dívida da Vasp, a título de compra. Além disso, a tal igreja, às voltas com ação de despejo por falta de pagamento, e a Vasp não seriam exatamente empresas em condições de comprar silêncio ou notícia, como logo perceberia o experiente Pimenta Neves.

Admita-se, porém, que Sandra Gomide tenha surripiado uma nota sobre inexistente venda da Vasp. Isso nada alterou para os leitores do Estado nem para o conceito do jornal. O mesmo não se poderia dizer da sonegação por Pimenta Neves, a pedido da Presidência da República, da notícia de que Fernando Henrique Cardoso liberara verbas extras para o TRT-SP, apesar de já apontadas as irregularidades da obra.

A notícia esteve nas primeiras páginas de numerosos jornais e, prova de que o Estado a recebera, figurou no site do jornal na Internet. Houve quem fizesse um malabarismo global para disfarçar a notícia, mas o Estado dirigido por Pimenta Neves foi o único, entre os chamados grandes, que a sonegou inteiramente ao conhecimento dos seus leitores.

A relevância de Pimenta Neves fica mesmo na sua condição trágica, uma notícia que o seu antijornalismo não pode deformar nem sonegar."

"O caso Pimenta", copyright Jornal do Brasil, 3/9/00

"Alguns leitores reclamam da cobertura ‘pífia e estranha’ que o JB estaria dando ao caso Pimenta Neves. Entre eles selecionamos o leitor Cezar Mota marmo@tba.com.br:

‘Li, surpreso e decepcionado, uma frase do jornalista Fritz Utzeri que tentava explicar a pífia e estranha cobertura que o JORNAL DO BRASIL dedicou ao caso do covarde e frio assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo ex-diretor de redação de O Estado de S. Paulo Pimenta Neves. Disse Fritz, ou foi atribuído a ele, que o caso referia-se à vida privada de duas pessoas, e não merecia a primeira página do JB. A frase, se verdadeira, não dignifica Fritz Utzeri.

Perdoe-me, caro Fritz, mas há assassinatos que transcendem a pura e simples estupidez do ato em si. Há crimes que retratam doenças psicossociais – e profissionais. O crime de Pimenta Neves não é uma coisa privada. É um ato tão brutal e sintomático quanto o assassinato das outras mulheres, nas duas décadas anteriores. É uma versão tardia e extemporânea da ‘legítima defesa da honra’, e do sentimento de propriedade de uma pessoa sobre outra. O fato de ter sido o assassinato cometido por um jornalista não lhe deveria atenuar a gravidade. Ao contrário, porque é um sintoma de outro fenômeno: o poder exercido com tirania e abuso sobre os colegas por alguns suseranos de Redação, que se julgam acima do bem e do mal. É interessante que o Estado, a Folha e o JB, em um primeiro momento, tomassem partido do assassino, como se os jornalistas constituíssem categoria à parte da cidadania.

É motivo de reflexão que alguns jornalistas considerem que merecem tratamento especial – e, de fato, sejam acobertados por algumas redações, quando cometem crimes emblemáticos – é levar muito a sério a classificação de Quarto Poder, e a demonstração clara do conceito supremo que fazem de si próprios alguns jornalistas que galgam postos de direção em grandes jornais. E é também um exemplo cruel da velha prática das redações, do chefe que protege e promove uma funcionária por razões extra-profissionais, ou do chefe que persegue profissionais que não se submetem a seu assédio sexual. É pena que o JB e a maioria dos outros grandes veículos da imprensa não tenham feito uma reflexão sobre esse crime. E também sobre o tratamento diferenciado que Pimenta Neves teve desde o início, quando deixou claro que mataria sua vítima. E continuou tendo, após a execução do assassinato, tanto da polícia quanto de alguns jornais.’

Caro Cezar: antes de mais nada repilo a insinuação de que o JB tenha em algum momento tomado o partido do assassino. Os jornais falaram de ‘suspeito’ nos primeiros dois dias porque não havia testemunhas ou confissão do crime e essa deve ser a maneira correta de tratar o assunto. Aqui procuramos fazê-lo, sem que isso em implique qualquer prejulgamento.

Feita essa introdução, vou explicar o critério que orienta a cobertura do JB, decidida pelo comando editorial do Jornal: o fato de Pimenta ser diretor de Redação não deve ajudá-lo em nada no JB, mas também não deve prejudicá-lo. Trata-se de crime envolvendo um homem e uma mulher que mantiveram relação na qual misturaram sexo, poder, favorecimento profissional, possessividade, ciúmes doentios, amor, ódio e crime, todos os ingredientes que não devem permear uma relação de trabalho. Demos ao caso o mesmo destaque que um jornal carioca daria a crime semelhante cometido em São Paulo. Voltaremos sempre que houver novidades. Estranhamos o fato de o crime, com réu confesso, resistir por mais de duas semanas na primeira página de alguns jornais e de, no mesmo período, abrir todos os telejornais de uma grande rede de TV, ser capa de revistas semanais e ganhar um tratamento de folhetim sensacionalista em emissoras de rádio.

Não me lembro de nenhum outro crime dessa escala que merecesse tal repercussão. Além disso, ocorrem dezenas de delitos iguais todos os dias em áreas pobres da cidade sem que mereçam uma linha de noticiário dos jornais que fazem estardalhaço com o crime de São Paulo. O JB também não fala disso, mas nossa posição a respeito de crimes é sempre mais discreta. Não é o nosso negócio, nem o interesse principal de nossos leitores. Mas você tem razão quando cobra uma ampla reflexão sobre o assunto e sua cobrança está devidamente anotada e será providenciada.

Voltando ao caso Pimenta, introduziram-se câmeras ocultas em seu depoimento que foi editado para mostrá-lo frio, insensível e arrogante. Em alguns momentos a cobertura chegou a ser furibunda, afirmando que ‘Pimenta ainda não está na cadeia’ e reclamando do luxo da clínica onde permanecia internado. Quinta feira, dois psiquiatras examinaram Pimenta e trechos da consulta, apareceram na imprensa. No meu entender, o que se diz ao médico equivale quase ao que se diz ao padre no confessionário. Torna-se público apenas se a Justiça o determinar. Caso contrário é apenas falta grave de ética médica.

Qual é o interesse público de saber da infância de Pimenta? Ou que a vítima queria ter filhos com ele? Que perdeu dois irmãos? Ou o fato de seu pai ser definido como ‘trabalhador e austero’ e sua mãe como ‘generosa’? A intenção desse tipo de ‘jornalismo’ é clara: condenar o assassino que, apesar de ter pais exemplares, não passa de um criminoso inato, frio e desalmado. Outro ponto, digno de atenção, é a menção constante do nome do Estado de S. Paulo na cobertura escrita e falada, como se fosse o sobrenome de Pimenta. Dão a impressão de que se busca atingir a respeitabilidade e a credibilidade do jornal paulista, o que, num meio em que algumas empresas se especializam em deslealdade, ânsia de monopólio, falta de ética e manipulação de informações, pode muito bem ter segundas ou terceiras intenções, nada ‘passionais’.

O JB só dará um foco maior ao caso, se perceber que Pimenta está sendo beneficiado pela sua condição de ex-diretor de Redação e jornalista influente. No caso Doca Street, no qual estavam em jogo duas figuras que se expunham à opinião publica e faziam das colunas sociais um meio de vida, o JB trouxe as novidades quando as havia e cobriu os julgamentos (o que fará no caso Pimenta). Eu era repórter e coordenei os dois julgamentos de Doca Street. Foram dois espetáculos, transmitidas ao vivo pela TV. No primeiro, Doca saiu carregado em triunfo, como um herói, absolvido. No segundo, foi linchado como um ladrão de cavalos no faroeste bravio, ante a pressão ululante das feministas. Escrevi na ocasião: ‘Em ambos os casos quem saiu perdendo foi a Justiça.’ Quem deve decidir o futuro de Pimenta Neves é um júri soberano e não um linchamento público pela imprensa.

Conheço superficialmente Pimenta Neves. Não somos amigos e se fosse eu o advogado da família da jornalista assassinada buscaria desqualificar de cara o crime passional. Quando estudei Medicina Legal, aprendi que o passional atira quase a esmo, descarrega o revólver ou enfia a faca até cansar, a ponto de o legista ter dificuldade para determinar qual foi a ferida mortal. Depois, em geral, tenta matar-se (na hora) ou entrega-se destruído. Quem já viu a ópera Carmen pense no fim de Don José e terá o retrato do assassino passional.

No momento em que matou, Pimenta pareceu mais um psicopata do que um passional. Não suportou ser contrariado ou perder o mínimo de poder e controle. Rejeitado, matou. Não estou afirmando que Pimenta seja psicopata. Apesar de formado em medicina não o examinei e se pudesse examiná-lo não me manifestaria em público, mas como jornalista levo em consideração o que li nos jornais. Os psicopatas podem ter vida profissional brilhante, são coerentes, articulados, praticam seus atos friamente e não dão qualquer sinal de arrependimento ou sensibilidade. São perigosos, mas o seu lugar é o manicômio judiciário (quando cometem crime) e não a cadeia.

Achei curioso o laudo dos psiquiatras que examinaram o jornalista e o consideraram ‘normal’. Então alguém premedita um crime, destrói moralmente, persegue e atira com fria precisão na vítima, demonstra arrogância e pouco ou nenhum arrependimento (cito a descrição feita pela própria imprensa) e é ‘normal’? Valha-me Nossa Senhora!

Quanto aos casos de assédio sexual, existem e cansei de vê-los em redações. Mas não é um crime exclusivo de jornalistas. Há assédio sexual até em conventos de freiras. Basta ler o livro Outros Hábitos, da ex-freira Anna França, que está fazendo muito sucesso. Jornalistas não são diferentes de outras criaturas. Não há razão alguma para corporativismo. Cada um deve ser tratado como cidadão comum, de acordo com a determinação da lei comum, independente de seu local de trabalho. Senão vamos começar a noticiar que o mecânico da Viação Tupã matou sua companheira com requintes de crueldade, ou que o barbeiro do Salão Netuno estuprou a vizinha, ou ainda que o acionista da Eucatex mandou estuprar, mas não matar. Alguém se lembra desse tipo de qualificação em outro episódio?

Qualifique-se quando houver nexo causal entre o motivo do crime e a instituição em que o criminoso trabalha. Por exemplo, um crime econômico cometido por um diretor do Banco Central, ou o chefe da gráfica do Senado usar as máquinas para imprimir dinheiro falso com o conhecimento da presidência da casa. (São exemplos fictícios, sem qualquer caráter de sugestão, esclareço logo, antes que comecem a chover e-mails).

Confirmo o que disse ao site sobre o fato de que não noticiaria o crime se Pimenta houvesse cometido suicídio. Por princípio não noticiamos suicídios e o crime (que nesse caso teria fortes características passionais) se encerraria em si, e só teria interesse para alimentar nosso pior lado: o de voyeurs. Só damos suicídio quando há interesse público. Se um presidente, como Getúlio, achar que a única saída para a crise institucional é meter uma bala no peito, o JB estará lá, por motivos óbvios. Políticos são pessoas públicas com mandato popular e poder. O que eles fazem nos afeta diretamente. Diretores de Redação são apenas executivos de empresas jornalísticas. Quem achar que é mais do que isso estará delirando. Quem matou Sandra Gomide foi Pimenta Neves e não o diretor de Redação do Estado de S. Paulo."

"Nós e os outros", copyright Folha de S. Paulo, 27/08/00

"No primeiro dia, na primeira página, ficou claro que o assassinato de Sandra Gomide por Antônio Pimenta Neves não receberia o tratamento habitualmente dispensado a histórias com os mesmos ingredientes. São ingredientes – os perfis do autor e da vítima, o fator passional, os tiros, o haras – que levam um crime à capa da Folha.

Não para o alto, como o desastre do submarino. Não em várias colunas, como a roubalheira na obra do fórum. Mas notícia de primeira página, com certeza, fosse Pimenta Neves médico ou engenheiro, diretor de banco ou de empresa.

A dúvida oficial que pairava no domingo passado – nas horas posteriores à morte, a polícia ainda o tratava como ‘principal suspeito’ – não refreou o jornal em outras ocasiões. Para constatar, basta recorrer ao arquivo ou a simples exercício de memória.

Mas Pimenta Neves, 63, é jornalista. Como foi Sandra, 32. Até matar a ex-namorada, ele dirigia a Redação do Estado de S. Paulo. Ao longo da carreira, ocupou cargos importantes em vários veículos, entre eles a Folha. A notícia não saiu na capa de segunda.

A reportagem interna conseguiu manter-se equilibrada até o momento de explicar quem era a vítima, quando enveredou para o seguinte:

‘Durante seu relacionamento com Pimenta Neves, ela foi promovida e chegou a ser editora de economia da Gazeta Mercantil. Deixou o jornal depois que Pimenta Neves se transferiu para o Estado de S. Paulo, há cerca de dois anos.’

‘Nesse jornal, ele a contratou como repórter especial. Depois ela passou a editora de economia. Há cerca de um mês, ele a demitiu. Pimenta Neves disse a amigos ter provas de que o comportamento profissional da ex-namorada, na função de editora, não era ético.’

Logo abaixo, o título do texto dedicado à trajetória profissional do autor do crime dizia: ‘Pimenta Neves tem currículo notável’.

Do contraste, um leitor retirou esta conclusão: ‘O jornal parece quase desculpá-lo. Afinal, ela era ‘desonesta’, e ele, ‘notável’.

Como observou uma leitora, ‘é preciso ter clareza do que se pode fazer com as palavras, e do quanto elas revelam sobre a postura de quem as usa’. Assim, cabe perguntar por que a Folha, em vez de dizer que Sandra dormiu com o chefe para ser promovida, não escreveu que o jornalista notável premiou a subordinada por dormir com ele e a demitiu quando ela não quis mais fazê-lo. A reportagem se antecipou a Pimenta Neves e seu advogado na tentativa de desmoralizar a vítima.

Quanto à acusação de desonestidade, referente a reportagens sobre a Vasp, foi publicada sem que o jornal dispusesse de prova. Diante da preocupação em registrar méritos pregressos do assassino, não era demais esperar, em contrapartida, algum cuidado em relação a quem não pode mais se defender. Comparadas as edições de segunda-feira, nem o Estado soou tão protetor.

Não que este tenha dado livre curso à história. No entanto, sabendo-se mais na berlinda do que os concorrentes, tratou de seguir uma agenda mínima: menção discreta na capa, nada de adjetivos dentro.

O pacote incluiu biografia de Sandra. Na de Pimenta Neves, o título destacou que ele ‘dirigiu vários jornais’, como a dizer: ‘poderia ter sido em qualquer um deles’.

‘Por que a assepsia da cobertura?’, indagou outra leitora. Ela se referia à ausência de fotos.

No primeiro dia, a Folha não trouxe nenhuma, o que foge ao padrão para casos dessa natureza. No segundo houve imagem do pai da vítima junto ao caixão, com uma pequena foto de Sandra em destaque. A de Pimenta Neves só veio a sair na quinta-feira.

No aspecto visual, apenas o Estado conseguiu ser mais lacônico. Até ontem, não havia publicado foto do assassino nem da vítima.

O zelo faz supor que assistimos ao início de uma nova era, em que apenas criminosos confessos terão a imagem estampada no jornal. Das páginas de política às de esporte, basta folhear para perceber que não é isso.

Ao lado do Estado, a Folha foi, no decorrer da semana passada, o jornal que mais limitações demonstrou no acompanhamento do caso. Não houve apenas prudência, mas timidez mesmo, não raro acompanhada de viés favorável à defesa.

Declarações de colegas sobre a instabilidade recente do jornalista, o relato de que andava armado, as ameaças feitas a Sandra, o segurança contratado pela família da vítima, o pedido de Pimenta Neves a conhecidos para que não a empregassem: tudo isso saiu primeiro em outros veículos. Até ontem, algumas das informações nem haviam sido recuperadas pela Folha.

Depois do Estado, ela é talvez a mais próxima de Pimenta Neves, que mantém relações pessoais com vários de seus jornalistas, entre eles o diretor de Redação, Otavio Frias Filho.

Distante da praça paulista, O Globo faz a cobertura mais livre de amarras, ao lado da apresentada pelo site Notícia e Opinião.

Há quem diga que o jornal do Rio exagera no destaque e usa tom acusatório. As evidências mais fortes, no entanto, vão no sentido contrário, o de que Estado e Folha poupam Pimenta Neves.

Há quem diga também que o barulho em torno do caso é coisa de jornalistas, e que ele não desperta o mesmo interesse no chamado ‘leitor comum’.

Seja como for, esta não é uma discussão sobre audiência. O ponto é saber se a imprensa está disposta a submeter os seus ao mesmo rigor com que trata os outros. Pelo retrospecto da semana, a resposta é não.

Certo ou errado, não é hábito do jornal chamar de suspeito alguém que já confessou o crime ao advogado e aos próprios jornalistas.

Não é regra se preocupar com a imagem de alguém a ponto de descartar sua foto em traje de banho, um tanto constrangedora para um homem de muita idade e nenhum forma física.

Também é incomum dizer que a filha do personagem da notícia tem ‘doença grave’, e não câncer, em respeito ao sofrimento da família.

Para os outros, vale o ‘doa a quem doer’. Para ‘um dos nossos’, não é bem assim."

"Editores", copyright iG <www.ig.com.br>, 28/08/00

"Minha jovem jornalista,

Vc aproveita que a tragédia envolvendo um editor e uma jornalista para me perguntar como devem ser as relações entre os dois.

Eu poderia te responder com o que diz um livro que acaba de sair nos EUA (o Brasil, vc sabe, apesar de alguns títulos, tem ainda uma literatura muito escassa sobre o jornalismo; além disso, como o jornalismo acumula mais conhecimento empírico do que conceitual, muitas vezes o que está relatado em um livro sobre essa atividade não é passível de ser transformado em experiência genérica) chamado ‘O Negócio do Jornalismo’.

Na introdução, o organizador do livro, William Serrin, faz algumas considerações interessantes sobre esta relação – se esgotar toda a complexidade que envolve esta atividade conjunta. Por um lado, ele crítica a tendência dos repórteres dizerem, cada vez mais, que alguns temas delicados não seriam aprovados por ‘eles’ (os editores, é claro), iniciando um perigoso processo de desistir de alguns temas relevantes e estabelecerem para si mesmo um processo de auto-censura.

Por outro lado, ele diz que os editores, muitas vezes, são velhos repórteres ‘cansados da guerra’ e passam a exercer um papel mais de defesa do que de ataque, mais de contemporizadores do que de radicalizadores. Eles passam a exercer o papel de vigilantes que procuram evitar que as reportagens não fujam das convenções do jornalismo, não fustiguem o poder, não mostrem nenhuma paixão.

De fato, esta espécie de ‘círculo da tolerância’ (a expressão é atribuída a um grande editor que vc não teve tempo de conhecer, Cláudio Abramo) ocorre em grande parte, mas não é isso que se deve esperar das relações entre um editor e um repórter.

Por mais difícil que seja o casamento entre os dois, ele deve, em primeiro lugar, ser fundado pela paixão: paixão de tangenciar e, se necessário, ir além dos limites, paixão de provocar mudanças, paixão de procurar chegar mais perto o possível do ponto onde a claridade de um assunto passa a ser, depois dali, o território obscuro do mistério que existe em todas as coisas.

Nem sempre, um editor e um repórter chegarão a esse lugar fronteiriço pelos mesmos caminhos, nem sempre essa aventura será uma comunhão dos mesmos princípios, crenças e procedimentos. Mas o importante é que haja uma cumplicidade, um entendimento tácito de que os dois querem chegar lá. A partir daí, o resto será detalhe.

Continue sempre assim, como seu desejo de aprender – por que não há fim para o aprendizado em jornalismo. Um grande abraço,

M, de melhorar sempre

PS: Peter Finley Dunne dizia que o ‘trabalho do jornalista é confortar os aflitos e afligir os confortados’. Pense nisto."

"Homens que matam", copyright Folha de S. Paulo, 30/08/00

"Homicídios de mulheres continuam aumentando. Segundo reportagem desta Folha (27/8), na maioria dos casos, o motivo é passional. No exercício arbitrário da própria prepotência, os homens matam as mulheres que lhes são próximas.

Para confirmar as estatísticas (homicídios de mulheres subiram 13,5% em 1999), acaba de acontecer mais um caso intrigante. Havia um sessentão que namorava uma moça de 32 anos, mas a relação tornou-se incômoda para ela e chegou ao fim. Ninguém sabe por que ele não conseguiu aceitar o rompimento. Tampouco se pode adivinhar por que razão ela não o suportava mais. Não está em julgamento se a moça pretendia apenas subir na carreira jornalística à custa do namorado mais velho ou se, apesar de ter gostado dele no começo, o amor acabou depois de três anos, como acontece com muita gente. Amores, em geral, são finitos, mas o homem maduro e experiente não suportou ser abandonado e quis inverter as coisas.

Não conseguiu. Resolveu, então, matar. Essa a tragédia de Sandra Gomide, jovem jornalista assassinada pelas costas por Antônio Marcos Pimenta Neves, seu superior hierárquico, que, não satisfeito em demiti-la e difamá-la, destruiu-a fisicamente.

Em toda história real há pontos que ninguém pode esclarecer porque pertencem à intimidade não revelada dos envolvidos. Nos crimes passionais levados a julgamento pela Justiça, advogados defensores de assassinos de mulheres já usaram de tudo para justificar os atos de seus clientes, chegando a inventar uma tese absurda, segundo a qual o homem traído pela mulher, namorada ou companheira – ou ex-mulher, ex-namorada etc. – poderia matá-la para lavar a própria honra. Embora se trate de tese já superada por decisão do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a honra é bem personalíssimo e intransferível, isso é, a mulher não porta a honra do homem, quando algum indivíduo destemperado mata seu objeto de desejo ainda há quem se lembre de alegar ‘legítima defesa da honra’. Uma vergonha a mera menção de tal justificativa.

A ‘traição’, seja pessoal ou profissional, não é desculpa para o homicídio. Nos termos do Código Penal, somente se perdoa a conduta de matar alguém nos seguintes casos: 1. se for em legítima defesa, isto é, se o indivíduo mata para não morrer ou para salvar outra pessoa; 2. se o indivíduo mata por se encontrar em estado de necessidade, isso é, para salvar de perigo atual direito próprio ou alheio; 3. se o indivíduo estiver no estrito cumprimento de um dever legal ou no exercício regular de um direito (art. 23 do Código Penal).

Ao contrário do que muita gente pensa, a ‘legítima defesa da honra’ não se encontra na nossa legislação. Não existe nenhum artigo de lei que preveja essa exclusão de ilicitude. Assim, ela não pode ser aplicada nem reconhecida para absolver assassinos de mulheres ou de quem quer que seja que se tenha sentido traído.

A ‘legítima defesa da honra’ tampouco existe na vida real. É ficção, artifício, distorção usada para camuflar sentimentos muito pouco nobres que movem os homicidas – de mulheres, em geral. Quem conhece o ser humano e compreende os perniciosos efeitos do machismo que ainda interferem nas relações de gênero sabe que o agressor mata porque sente frustração e ódio. O ciúme, por si só, não é o móvel do crime.

O sujeito que mata sente desejo de vingança, despeito, amor-próprio ferido, prepotência, arrogância, possessividade e, acima de tudo, rancor. Ele quer destruir. Seus mecanismos de autocontrole não funcionam porque ele acha que existe uma mulher que lhe pertence e essa mulher ousou contrariá-lo. No fundo, está convencido de que é um direito seu fazer justiça com as próprias mãos e usando os métodos de sua escolha. Nossas leis, porém, não admitem isso.

Por mais que se use o velho truque de desmerecer a vítima tentando destruir sua moral, atacando sua conduta e difamando-a, assim como todos aqueles que a cercam, como familiares e amigos, nada pode justificar o chamado ‘homicídio passional’.

Não conhecemos a verdade integral do que se passou entre Sandra e Pimenta. E jamais saberemos, entre outras razões, pelo fato de a vítima estar morta e não poder dar a sua versão.

Por outro lado, não podemos prejulgar e opinar sobre a condenação ou não do assassino (ele é confesso). Isso a Justiça dirá; somente a ela cabe fazê-lo. Mas nem a Justiça nem a sociedade brasileiras podem admitir certas teses ou determinadas práticas que afrontam os direitos humanos e reduzem as mulheres a escravas sexuais de homens frustrados.

Seja qual for o veredicto final do caso Sandra Gomide, ele tem de se basear em provas, nada mais. Fora das hipóteses mencionadas acima, não há justificativa para matar. As qualidades da vítima e de sua família não estão em julgamento. Os passados do réu e da vítima tampouco importam. A vida, essa sim, é o bem maior do ser humano, e não pode ser subtraída por ninguém. (Luiza Nagib Eluf, 44, é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo FHC))"

"Um choque no Estadão", copyright Veja São Paulo, edição nº 35, ano 33

"Instituição paulista tão inabalável como o Monumento às Bandeiras e o Teatro Municipal, o jornal O Estado de S. Paulo sofreu na semana passada um choque e uma febre de expectativa e suspense. O choque foi o assassinato da jornalista Sandra Gomide, sua ex-editora de economia, pelo diretor de redação, Antonio Marcos Pimenta Neves. A febre foi a disputa pelo poder que, como uma das conseqüências da tragédia, voltou a aflorar nos dois ramos da família Mesquita, proprietária do Estadão desde 1891. Ele é a jóia da coroa, o símbolo e o maior orgulho de um conglomerado que engloba também o Jornal da Tarde, a Agência Estado e a Rádio Eldorado. Entre as peculiaridades do Estadão, um dos mais influentes e corajosos órgãos da imprensa brasileira, está o fato de seu comando editorial, durante 105 anos, ter passado sucessivamente de pai para filho, todos com o mesmo prenome: Julio Mesquita (de 1891 a 1927), Julio de Mesquita Filho (1927 a 1969) e Julio de Mesquita Neto (1969 a 1996). A tradição só havia sido quebrada pela força, durante o período em que o diário esteve sob intervenção na ditadura do Estado Novo. Há quatro anos, porém, ela foi rompida. Com a morte de Julio Neto, a direção passou para seu irmão Ruy Mesquita, e não para seu primogênito, Júlio César Mesquita. É o doutor Ruy, como é chamado, quem desde então dá a orientação editorial e política do Estadão. Há três anos, ele contratou pessoalmente Pimenta Neves para ser o diretor de redação. Pimenta era seu homem de irrestrita confiança.

Na manhã da última segunda-feira, em meio a um ambiente de tristeza e perplexidade, Ruy reuniu os executivos e os editores do jornal. Como raramente sai de sua sala, onde trabalha com a porta fechada, ele não conhecia a maioria dos presentes. ‘Nós nos devemos condolências mútuas pelo que aconteceu’, disse. Depois, emocionado, lembrou o dia da morte de seu pai, em 1969, quando ele e seus dois irmãos saíram do cemitério e foram direto para a redação. ‘Este jornal tem coração e tem caráter, independentemente das pessoas que o fazem, e não vamos deixar que isso nos abata’, afirmou. Em outro momento do encontro, anunciou que o segundo de seus quatro filhos, Fernão Lara Mesquita, 47 anos, passaria a ‘ajudar no jornal’. Fernão é o diretor responsável do Jornal da Tarde, cargo que o pai exerceu durante trinta anos. Há cerca de um ano, Fernão vem trabalhando mais tempo junto de Ruy, com quem tem grande afinidade jornalística e ideológica, na página dos editoriais. Na prática, enquanto não se define quem ficará no lugar de Pimenta, Fernão ocupa, informalmente, o segundo posto no Estadão, o que o coloca como o candidato natural à futura sucessão de seu pai, que tem 75 anos. ‘Estou com um pé lá, outro aqui’, disse Fernão na quarta-feira à noite na sala de onde dirige o Jornal da Tarde. ‘O pé vai estar cada vez mais para lá’, acredita seu irmão Rodrigo Lara Mesquita, diretor-geral da Agência Estado. Lá, no caso, é o Estadão.

Há, no entanto, um problema. Chama-se Júlio César Mesquita, 48 anos, sobrinho de Ruy e primo irmão de Fernão. Júlio César, que ocupa a sala que foi de seu pai, no 6º andar da sede junto à Marginal Tietê, é diretor da unidade de negócios de O Estado de S. Paulo. Isso significa que ele manda na administração, mas não na parte editorial do jornal. Ou seja, o que o Estadão vai publicar ou deixar de publicar, e opinar sobre isso ou aquilo, não é de sua alçada, como foi de seu pai, de seu avô e de seu bisavô. Essas decisões cabem a seu tio e agora, em parte, a seu primo. Preterido na sucessão paterna, Júlio César, segundo pessoas próximas, teve de aceitar que Ruy se tornasse o número 1, mas desta vez decidiu ir à luta para evitar a ascensão de Fernão. Na semana passada, o conselho administrativo do grupo se reuniu e Júlio César, enérgico em suas críticas, teria lembrado que sempre fizera restrições ao comportamento pessoal de Pimenta Neves. A reunião não sacramentou a passagem de Fernão do Jornal da Tarde para o Estadão. ‘Estamos todos de acordo e não há desentendimentos’, afirma Ruy Mesquita com veemência. ‘Nada tenho a declarar’, disse Júlio César a Veja São Paulo. ‘Este é um assunto que discutimos em assembléia de acionistas, e não através de uma revista.’

O conselho administrativo é a instância máxima de poder na empresa. Dele participam os acionistas da família. São os descendentes diretos de Julio de Mesquita Filho, o doutor Julinho, que dirigiu a redação durante 42 anos, e de seu irmão Francisco Mesquita, o doutor Chiquinho, que pelo mesmo período exerceu o comando administrativo e comercial. Os irmãos nunca misturaram suas atribuições. Hoje, os dezessete herdeiros da terceira e quarta geração estão divididos em seis grupos familiares de acionistas. Três descendem do doutor Julinho e três do doutor Chiquinho. Cada um desses grupos tem 16,66% das ações e um representante nas reuniões. Por isso, as decisões mais complexas, como é natural em muitas empresas familiares, exigem às vezes longas negociações e passam pelo aval do conselho consultivo, integrado por seis empresários que não trabalham no grupo. Há ainda um conselho editorial independente, presidido pelo empresário e bibliófilo José Mindlin.

Na quinta-feira, o jornal informou que o cargo de diretor de redação está vago – o nome de Pimenta foi retirado do expediente da página 2 na terça – e sua substituição ‘será definida futuramente’. ‘Não tenho nem faço questão de ter cargo definido’, afirma Fernão. ‘Meu trabalho não é intervenção. Na verdade, venho trabalhando com doutor Ruy há algum tempo, na página de opinião, mas desde o trauma passei a estar mais presente na redação de O Estado’, acrescenta. Fernão diz que seu objetivo é permitir que o pai fique um pouco menos sobrecarregado. ‘Meu pai não se considera dono, mas empregado que bate ponto’, afirma Rodrigo Mesquita. ‘Vai continuar trabalhando aqui até o fim da vida.’ Mesmo abalado com os últimos acontecimentos, Ruy tem mantido sua rotina. Acorda às 4 da manhã, começa a ler compulsivamente, chega ao Estadão perto do horário do almoço e fica em sua sala até o início da noite. Corrige e emenda os editoriais a mão. Quando vai redigir, em seu estilo claro e contundente, usa uma antiga máquina de escrever Olivetti manual. Pelo computador, que aprendeu a usar recentemente, limita-se a acompanhar os serviços de informação da Agência Estado. Ex-fumante de cachimbo e charuto, exercita-se em caminhadas de meia hora por dia dentro da própria sala. Dias atrás, mandou uma carta para um de seus pares, M.F. do Nascimento Brito, que se afastou da direção do Jornal do Brasil, dizendo que sentira certa inveja ao saber que ele se aposentara. Apesar disso, Ruy Mesquita não dá sinais de que pretenda sair de cena tão cedo e dificilmente delega suas tarefas. No final do ano, por exemplo, quando tira rápidas férias e as notícias políticas e econômicas escasseiam, encomenda com antecedência uma série de editoriais, de assuntos mais frios, para serem publicados em sua ausência. Lê, emenda e deixa tudo pronto. Só então viaja para sua fazenda de 200 alqueires, em Minas Gerais."

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