Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Alberto Dines

SR. MERCADO & D. MÍDIA

“O que é isso, Companheiro Mercado?”, copyright Jornal do Brasil, 7/12/2002

“Do novo grupo de camaradas, é o mais renitente. Não abre o jogo, não ?fecha? com posição alguma, infenso ao patriotismo, vacinado contra o civismo, esvaziado de ?vontade política?. O Companheiro Zero, apesar de significar vazio, aderiu entusiasmado às cruzadas de Fome Zero, Analfabetismo Zero e outras às quais se emprestará como sobrenome.

Já o Sr. Mercado é companheiro suspeito – irracional, volúvel, imprevisível, onipotente. Não se deixa cortejar nem conhece o medo. Quando Lula disparava nas prévias, a criatura clicava os botões do pânico. Sabia quando e como tirar proveitos. Quando pintou o clima paz e amor, ?lulou?. Para tirar novos ganhos.

Exatos 45 dias depois do segundo turno e 24 antes da posse, o Companheiro Mercado surtou, vitimado por um delírio de arrogância. Ontem, o dólar abriu em alta graças aos rumores de que o PT deixaria para segunda a indicação da equipe econômica. Baixou quando vazaram informações da Granja do Torto de que Pedro Bodin teria aceito, afinal, o convite para o BC.

Por insondáveis motivos, o insubmisso companheiro descartou os dados da CNI sobre a utilização recorde da capacidade industrial, desprezou os dois negócios da China anunciados pela Volks e Embraer, jogou pela janela fundamentos e sequer se serviu de uma eventual alta de juros para barrar a preocupação com a inflação. Queria impor a sua vontade: não admitiria outra sexta-feira morna e um fim de semana vazio sem saber quem vai dar as cartas.

Tem algo da prima-dona caprichosa, faz o que lhe dá na veneta, pinta e borda, finge-se apolítico, apartidário, mas é rigorosamente amoral. Incorpora-se à legião do desenvolvimento mas, na realidade, está nos esquadrões do terrorismo especulativo. Usa a carteirinha do Establishment mas parece estar filiado às Farc, Al-Qaida ou PCC. Quando Gustavo Franco tirava da gaveta o famigerado saquinho de maldades, só pensava nesse senhor (ou senhora). Quando Armínio Frota assume o balcão para organizar o friforó, tenta, na realidade, enganá-lo com as manhas de ex-operador. Nada o satisfaz porque o Companheiro Mercado não é um, mas muitos; fala no singular mas é manifestação plural. Quer ganhar com a alta, com a baixa e, em geral, com as duas.

Quando a mídia dominada pela preguiça ou a pressa (dá no mesmo) confere forma humana ao Companheiro Mercado – com humores, bile, cérebro e vontades – está, na realidade, criando uma entidade antropomórfica inexistente e escapando da função de encarar a verdade.

O Companheiro Mercado não é gente, também não é modelo. É sistema que se realimenta indefinidamente porque não pode ser policiado, regulado ou sequer exposto. Nisso é ajudado pelas musas inspiradoras, o Economist, Financial Times (co-irmãs, quase quebradas) e o abilolado Wall Street Journal. Bush Jr. levou quase um mês para ser confirmado como ocupante da Casa Branca e nenhuma dessas cassandras mostrou sinais de impaciência – era do jogo democrático.

A Constituição brasileira (sábia ou tola, não importa) prevê um lapso de cerca de dois meses entre a proclamação dos resultados eleitorais e a posse dos eleitos. O presidente do BC precisa ser indicado até a próxima terça e sabatinado até o dia 15 – por que a pressa? Não existe razão para atalhar prazos, sobretudo porque não há vácuo de poder. O atual presidente não dá sinais de encerrar seu mandato antes da transferência da faixa nem o próximo quer envergá-la antes. O mérito desta inédita transição é que ela resiste às impaciências: governo, governa; e sucessores preparam-se para a sucessão. Jogo verdadeiramente democrático, nos trinques. Não é para inglês ver, mas para nos vermos como sociedade madura. Único inconformado, enfezado, insaciável, é o Companheiro Mercado que, em nome da liberdade, recusa qualquer tipo de regra e, em nome dos direitos individuais, aceita qualquer trapaça.

O que aconteceu há quatro dias com o J.P. Morgan é inacreditável: merece ser incluído nos rol dos milagres da reencarnação ou nos anais psiquiátricos sobre personalidades divididas, Dr. Jeckyll & Mr. Hide, Inc: num momento, funciona livremente como agente financeiro, no outro, assume-se como rigorosa agência classificadora. No intervalo, ganha fábulas de dinheiro com as avaliações que engendra numa ponta e logo divulgará como informação na outra.

John Pierpoint Morgan (1837-1914), banqueiro, filantropo, colecionador de arte, mulherengo e mecenas, deve estar morrendo pela segunda vez. Corre o risco de ver seu prestigioso nome convertido em símbolo da improbidade. Ou, na melhor das hipóteses, retrato fiel do Mui Desleal Companheiro Mercado.

 

“Ansiedade diária”, copyright O Globo, 6/12/2002

“Difícil dizer quem é mais ansioso: o mercado ou a Imprensa. A alta do dólar não é apenas pela falta do nome do presidente do BC. É ainda fruto dos vencimentos de dívida privada nas últimas semanas deste ano, entre outros pontos

No dia 30 de novembro de 1994, o presidente eleito Fernando Henrique anunciou os nomes de Pedro Malan, para o Ministério da Fazenda, e de Pérsio Arida, para presidente do Banco Central. Fora eleito no dia 3 de outubro e demorara 57 dias para fazer o an&uauacute;ncio. Lula foi eleito há 39 dias e está sendo tratado como se estivesse atrasadíssimo no processo de montagem do novo governo.

Fernando Henrique havia sido ministro da Fazenda do governo Itamar, escolhera a equipe, fizera o plano, conhecia as pessoas, era a continuidade em pessoa e demorou quase dois meses para ocupar a pasta da Fazenda e decidir o presidente do Banco Central. Lula é a descontinuidade em pessoa.

Fernando Henrique só anunciaria o Ministério no fim de dezembro, mas disse que estava antecipando os nomes de Malan e Arida para sinalizar que seria mantido o Plano Real, que, durante muito tempo, tivera o nome de Plano FHC.

Mesmo assim, houve demora, ansiedade e necessidade da tal ?sinalização?. Difícil dizer quem é mais ansioso: o mercado ou a Imprensa; e qual deles aumenta a aflição do outro. A alta do dólar de ontem não é apenas conseqüência da falta de informação sobre o nome do presidente do Banco Central. É também fruto dos vencimentos de dívida externa privada nas últimas semanas deste ano, vencimentos de títulos cambiais, reunião do Copom para definição de taxa de juros com a inflação subindo.

Apesar de tudo isso, o fato é que há muita ansiedade, o que não é nada bom. Há muitas dúvidas no ar, além do nome do presidente do Banco Central. Uma delas é o próprio processo de decisão no PT. Se ficarmos só nas contradições dos últimos dias: autoridades do PT disseram que os nomes do BC sairiam ontem; depois, que sairiam na sexta após reunião com a executiva; agora está adiada para depois da viagem aos Estados Unidos. Este processo nebuloso alimenta a incerteza sobre como será o futuro governo.

A isto, se some tudo o que foi dito e desdito, durante a campanha e após a eleição, sobre questões chaves da economia; é preciso reconhecer que há motivos para ansiedade. E não apenas em relação ao Banco Central, mas também em relação a outros setores e órgãos que nem estão na ordem do dia.

Durante a campanha, o então candidato Lula me disse, numa entrevista, que todas as suas decisões seriam tomadas com o partido e que ele não tomaria decisões solitárias. Nas últimas semanas, depois das eleições, os líderes partidários se esforçaram em criar a imagem oposta: de que Lula é um todo-poderoso executivo de seu governo. Foram repetidas as declarações do deputado José Dirceu ou do porta-voz André Singer e de outras autoridades partidárias na linha de que ?as decisões pertencem apenas ao presidente eleito?. Agora, informa-se que os nomes serão submetidos antes à Executiva do partido. Será mero exercício protocolar, ou algum dos 31 membros da executiva pode vetar algum ministro? As decisões são lentas porque a escolha é mesmo estratégica? Ou por que é preciso compor todas as inúmeras facções do partido? Se for a última alternativa, a lentidão não é apenas neste momento; pode ser em todo o processo de tomada de decisão do novo governo. Isso é ainda mais assustador.”

 

GOVERNO LULA

“Cinema na pauta do governo Lula”, copyright O Globo, 7/12/2002″

“Como uma pré-etapa da preparação do programa de governo do PT para o audiovisual, a equipe de transição promoveu uma série de encontros com a comunidade cinematográfica esta semana com o intuito de se informar a fundo sobre reivindicações do setor.

? Recebemos a orientação de ficar roucos de tanto ouvir ? brincou o secretário estadual de Cultura, Antonio Grassi, cuja exposição de princípios do Governo Lula para o audiovisual abriu a série de debates, na terça-feira.

TVs abertas não foram convidadas para o encontro

Entre terça e quarta-feira, mais de 200 pessoas ligadas à indústria cinematográfica (diretores, produtores, exibidores, distribuidores) passaram pelo auditório da Biblioteca Nacional, no Centro, para tomar parte nos debates. Foram seis mesas de discussão, duas delas dedicadas especificamente à discussão do papel e dos rumos da Agência Nacional de Cinema (Ancine).

? Há um consenso de que o novo governo deveria voltar a considerar a idéia original da agência, que não trataria apenas de cinema, mas de audiovisual como um todo ? disse o subsecretário estadual do Audiovisual, Orlando Senna, que está encarregado de redigir o documento com propostas para a equipe de transição. ? Cinema e televisão têm de andar juntos. A discussão sobre conteúdo deve estar acoplada à divulgação desse conteúdo.

? Há um sentimento de que a agência não decolou porque não aconteceu da forma como a gente queria ? diz Berenice Mendes, da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura e da equipe de Comunicação Social do governo de transição, que coordenou a mesa de debates sobre televisão.

Na época da criação da Ancine, a discussão sobre a contribuição das TVs à indústria do audiovisual foi jogada para mais tarde na última hora. A polêmica foi grande, com a comunidade cinematográfica reclamando de má vontade do setor televisivo e este alegando não ter sido ouvido nas discussões do Gedic (Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica), que gerou a Ancine.

? O Gedic foi mesmo fechado, sem diálogo com as entidades ? diz Berenice. ? As TVs têm razão na reclamação. Essa falta de diálogo se reflete também no Conselho Superior de Cinema, um órgão que deveria formular a política para o setor e não tem representantes diretos do setor.

No entanto, as TVs abertas não foram convidadas para a série de debates, com a exceção das da rede pública (TVE e Cultura). Representantes de canais por assinatura, como o Canal Brasil, também estiveram presentes.

Em 1 de janeiro, a Ancine, em tese, sai da esfera da Casa Civil e vai para o Ministério da Indústria e Comércio, onde estaria mais aparelhada para tratar do posicionamento do cinema nacional no mercado. As discussões desta semana, contudo, apontam para uma prorrogação desse prazo, através da qual a agência permaneceria por mais alguns meses ligada à Casa Civil.

? É para que o novo governo tenha uma visão mais clara do que fazer com ela ? justifica Grassi. ? Ou vai-se fazer um pingue-pongue que vai desmontá-la mais do que já está. Hoje ela vem capengando em busca de uma casa.

A providência se deve também a dúvidas sobre qual deveria ser o papel da Ancine.

? Há muitas questões a serem respondidas. Ancine deve fomentar produção ou deve ser apenas um órgão fiscalizador e regulador? Deve ficar inteiramente desvinculada do Ministério da Cultura?

As discussões sobre o papel da Ancine perpassam uma questão maior para o PT, que é o papel do Ministério da Cultura. Há a preocupação de que a pasta fique enfraquecida.

? Nosso programa de governo para a Cultura aponta que ela é estratégica para o desenvolvimento. O Estado precisa atuar no estímulo ? diz Márcio Meira, da equipe de Cultura do governo de transição. ? Sobre questões de mercado, é preciso haver equilíbrio. O Estado tem que poder gerir a aplicação de recursos no cinema, já que grande parte desses recursos, hoje, é mesmo pública.”