Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

GOVERNO LULA

“De baralhos e sinucas”, copyright Jornal do Brasil, 6/09/03

“Nos filmes de faroeste os vilões apareciam primeiro em cartazes com o título ?Wanted? – ?Procurado?. Depois da invasão do Iraque, inventou-se o baralho acusador, 52 cartas com retratos e delitos das principais figuras da sanguinária ditadura de Saddam Hussein organizados por ordem de periculosidade.

A moda pegou. Na internet circulam inúmeras versões de baralhos com os mais diversos usos e temáticas, uma delas já incluída em nosso teatro político: o ?Baralho da Traição?, preparado pelos funcionários públicos e grupos políticos contrários à reforma da Previdência, contra aqueles que consideram inimigos da classe.

Em matéria lúdica, precisamos de algo parecido com o bilhar que os franceses inventaram no século XIV e exige muito mais do que sorte e audácia. Com um taco, três bolas de marfim, perícia manual, acuidade visual e grande dose de inteligência, reproduzem-se situações existenciais mais intensas e, por isso, essenciais.

No bilhar que agora precisaria ser re-inventado uma das bolas poderia chamar-se de legimania, a compulsão de legislar sobre tudo, maneira de impor rápida e definitivamente aquilo que bom senso e boa-fé resolveriam com mais rapidez e facilidade. Outra esfera seria denominada de reformite (designação que tomo emprestada do jornalista Luís Nassif): impulso irreprimível para anular a lei, decreto ou artigo constitucional horas depois de ter sido aprovado.

Legimania e reformite são bolas gêmeas, inseparáveis. Dialéticas, movimentam-se em direções contrárias: quanto maior a tacada legiferante, maior será a contratacada reformista ou reformadora. Veja-se o caso da reforminha tributária mal saída do forno legífero e já condenada a uma revisão casuísta na instância seguinte, dentro da lógica do toma-lá-dá-cá.

A terceira bola desse jogo ainda não tem nome, ou melhor, carece de uma designação mais concisa. Por ora, pode ser chamada de Loteamento da Esfera Pública ou, para encurtar, LEP, até que algum leitor mais inventivo e competente consiga batizar essa praga que corrói, compromete, paralisa e inviabiliza a ação governativa em todos os seus níveis.

Nepotismo político, não familiar, igualmente danoso e vexatório, o LEP é a bola vermelha de um bilhar mesquinho e medíocre que resiste galhardamente às promessas eleitorais, às vassouradas pós-eleitorais, às juras moralizadoras, aos enxugamentos, re-engenharias e compromissos com a eficiência. É o retrato da arrogância, monumento ao desprezo pela coisa pública.

A República não é apenas um sistema de governo, é também uma forma de administrar, buscar eficiência e honrar débitos com o eleitorado. Esse espetáculo loteador a que ora assistimos em diferentes pastas e instâncias não difere de outros a que nós, nossos pais e avós, assistimos em outros tempos. O que não nos impede de classificá-lo como coisa de republiqueta, banana-republic. Caudilhismo da pior espécie, porque enquanto o caudilho tradicional, para justificar-se, convoca parceiros altamente capacitados, essa vocação loteadora parte do princípio de que qualquer nomeação justifica-se – independente da competência ou caráter – diante dos altos objetivos em nome dos quais foi acordada.

De nada adianta sonhar com novo surto de reformite e proclamar a necessidade imediata de uma reforma política. Ela não mudará nossos costumes, nossas mentalidades, nem extirpará o cinismo com que se forjam embaixadores, ministros, diretores de estatais, assessores, chefes de seção, aspones e especialistas. A imperiosa alternância de partidos no poder não pode servir de pretexto para a absurda descontinuidade administrativa que converte cargos técnicos em cargos políticos e achincalha a própria política, convertendo-a numa periódica barganha de cargos e vantagens. Essa é uma politização simplista, perversa, capaz de perverter os benefícios da meritocracia, transformando-a numa farsa e, os declamadores de palavras-de-ordem, em gurus.

Servidores em qualquer nível servem aos governos mas servem, sobretudo, ao Estado, instituição permanente. Dos gestores públicos espera-se a busca de continuidades, de modo a evitar rupturas, retrocessos e transtornos tão freqüentes em nossa vida administrativa. Mesmo porque, a esta altura, a maioria dos nossos partidos políticos embaralha-se no mesmo ponto do espectro político, as diferenças vão por conta de idiossincrasias pessoais e pontuais.

Os legimaníacos certamente produzirão um extenso código de ética para evitar aberrações como a que aconteceu no Instituto do Câncer. Para implantá-lo toparão qualquer negócio, esquecidos de que, logo depois de aprovado, virá outro surto de reformite que, para ser aplacado, demandará outra farta distribuição de benesses entre aliados e amigos. Essas têm sido as regras do nosso interminável bilhar. Convém mudá-las antes que ele se transforme numa imensurável sinuca.”