Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

PT NO PODER

“Serenar, serenata”, copyright Jornal do Brasil, 30/10/03

“Auê, baderna, banzé, bate-boca, bronca, bulha, encrenca, esbregue, fricote, friforó, fuzuê, imbróglio, pega, pirraça, presepada, ralho, rebordosa, rebuliço, rififi, rixa, rolo, rusga, sarilho, sururu, zanga, zona, zorra. No país das querelas e quizílias, o idioma diverte-se com as desavenças, generoso com rupturas, dissensos, litígios, contestações e dissidências.

Apesar da natureza generosa, a terra farta e fértil, somos atraídos pela porfia, desconfiados de acordos e aproximações. Macho é brigão, sábio é aquele capaz de vencer disputas e, em nossa retórica, anima, alma, está mais próxima de animosidade do que de animação e alegria.

No mesmo dia em que o ministro José Dirceu, inspirado pelos deuses da concórdia, telefonava ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e encerrava a mútua azucrinação, o presidente Lula da Silva, em Campina Grande, mandava brasa nos antecessores, chamando-os de covardes (por não terem feito as reformas). Sob o sol inclemente do Nordeste, iniciava novo ciclo de cotoveladas e implicâncias que, no fim de semana, servirão para enriquecer as seções de frases de efeito dos semanários e, nos dias seguintes, para adiar a promessa de paz e amor.

Alívio no azedume federal foi o encontro de ontem no Rio que reuniu políticos e intelectuais próximos ao PPS e ao PSDB. A começar pelo inspirado nome: ?Primeiro Colóquio – As Reformas do Estado e a Agenda do Brasil?. No colóquio pratica-se o diálogo; desde a Grécia antiga, é a academia para o exercício da razão.

O encontro não tem objetivos práticos, a fusão entre os dois partidos é coisa remota. O que se pretende agora é retomar os entendimentos iniciados ainda no governo Itamar Franco para construir uma frente da esquerda democrática constituída pelo PPS, PSDB e PT. Na ocasião o PT roeu a corda, fascinado com a possibilidade de chegar ao poder sozinho. Agora, uma década depois, quando o PT chegou lá mas se vê obrigado a fazer acordos à direita com coronéis pefelistas e currais do PMDB, a velha convergência esquerdista ganha um sentido de urgência.

Isso ficou visível no início da semana durante a realização do Congresso da Internacional Socialista, onde os partidos de nítida vocação socialdemocrata, como o PPS, PT e PSDB, lá estavam na condição de ?observadores?, enquanto o PDT, cada vez mais caudilhesco e radicalizado, apresentou-se como único associado legítimo.

A necessidade de uma frente ampla, socialista e democrática, está escancarada no toma-lá-dá-cá da reforma tributária, onde se engalfinham os interesses municipais, estaduais e federais mas ninguém lembra-se do velho reformismo socialista capaz de promover a justiça através de uma política tributária justa e solidária.

Apesar do esquadrão de tratores e rolos compressores, o PT corre o risco de ficar sozinho, fascinado com o pragmatismo das velhas raposas reunidas à sua volta mas desprovido de quadros capacitados para gerenciar mudanças.

A socialdemocracia é sincrética, tanto na sua história como na sua essência. Reuniu o conceito de revolução lato sensu com o de democracia stricto sensu. Norberto Bobbio lembra que ela é a ?memória da revolução?, não pretende a sobrevivência do sistema, quer alterá-lo de dentro, através de suas próprias forças.

Karl Kautsky (1854-1938), um dos pais da socialdemocracia alemã, afirmava que ela é ?um partido revolucionário e não um partido de revoluções?. A sutil diferença só tem condições de materializar-se através de grandes pactos, frentes amplas. Interação de iguais.

O Colóquio do Rio não cogitou de fusões porque um processo dessa envergadura não se começa pelo fim (até dispensável, se as etapas anteriores forem produtivas). Apesar de auspicioso já tem adversários declarados: o enfezado Ciro Gomes, único representante do PPS no primeiro escalão do governo, classificou-o como ?paranóia?. Roberto Freire, artífice do evento e um dos políticos brasileiros mais identificados com o nobre ideal ?frentista? respondeu: ?Não fazemos política de resultados, há comunistas tanto no PPS como no PSDB. Na votação do Estatuto do Desarmamento houve mais coincidências do que divergências entre nós, os petistas e os tucanos.?

Na terra das diatribes, baixados os tacapes e bravatas serenadas, isto soa como música. Serenata.”

 

“Modelo de presidente da era da TV”, copyright No Mínimo (www. nomínimo.com.br), 29/10/03

“Como fala o nosso prezado presidente aniversariante Luiz Inácio Lula da Silva! Discursa, lendo e improvisando; viaja pelo Brasil e pelos quatro cantos do mundo e lança planos, projetos, promessas, quando sempre discursa e quase sempre viaja.

Um convicto adepto do novo modelo presidencial da era da televisão. Não se pode dizer que ao atual presidente caiba a inauguração do estilo falastrão, peregrino e de generoso semeador de ilusões. Sem qualquer intenção de fomentar intrigas ou acirrar ciumeiras da troca de farpas entre o ex e o atual, é de evidência que se confere com a simples consulta a memória que no desempenho pessoal, o antecessor Fernando Henrique Cardoso e seu sucessor se parecem como sapatos do mesmo pé. Calçam pares idênticos, da mesma cor comprados na mesma loja. Não sei se os números também coincidem.

Os servidores de carreira do Palácio do Planalto e as equipes mais reduzidas do Palácio Alvorada e da Granja do Torto não precisaram fazer qualquer esforço para o ajuste à mudança de governo. Salvo, claro, nos hábitos domésticos, nas diferenças de temperamento, nas preferências elementares e até nas rotinas dos raros instantes de folga. É tão improvável que Lula freqüente a biblioteca do Alvorada nos lazeres de fim de noite e dos fins de semanas quanto imaginar o ex-presidente FHC de calção e chuteira correndo atrás de uma bola no gramado da Granja do Torto.

O modelo idêntico não se explica apenas pelas semelhanças de temperamento e que talvez nem seja a chave para a decifração da série de coincidências. Cada época impõe a sua moda da lenta cadência da evolução.

No depoimento de quem acompanha profissionalmente a atividade política em mais de meio século de militância, posso dizer que vi e vivi as transformações do período inicial do rádio, a fase da televisão e os passos iniciais da Internet.

De ditador a presidente, Getúlio Vargas usou o rádio com parcimônia. Orador de excelente comunicação, com a voz pausada e de timbre inimitável, lia discursos em ocasiões especiais, transmitidos pelas emissoras. Seu sucessor, marechal Eurico Dutra, de lamentável dicção, trocando os esses pelo xis, fugia de microfone como o bichano do banho. No retorno de Vargas pelo voto, em 50, a televisão estava dando os primeiros passos trôpegos e na verdade só teve influência decisiva na campanha demolidora de Carlos Lacerda pela TV-Tupi, todas as noites, ao vivo, entrando pela madrugada.

O presidente Juscelino Kubitscheck foi o primeiro a se utilizar regularmente da televisão, desde a campanha, comparecendo a estúdios para as entrevistas e convocando redes nacionais para exposições sobre planos e obras de governo. E ainda usou politicamente a televisão proibindo a presença de Lacerda.

O embirutado Jânio Quadros aproveitou a singularidade da sua figura excêntrica e o abuso das mesóclises nas entrevistas durante a campanha e em ruidosa entrevista logo depois da posse.

Em tempos de ditadura a televisão, como a imprensa, sob censura, submetem-se à demagogia compulsória. Nos cinco anos do rodízio, os generais-presidentes raramente concediam entrevistas, além da montagem das coletivas. A Redentora tinha seu sistema próprio de convencimento.

O apogeu, o esplendor, o fastígio da era da televisão, com o fascínio multiplicado das redes, as facilidades dos gravadores portáteis perpassam pelos oito anos dos dois mandatos do sociólogo e continuam, na mesma toada, nos dez meses do primeiro ano do mandato de Lula.

Curiosamente, sem que as lições da experiência tenham sido aprendidas. A vaidade de aparecer fala mais alto que as advertências sobre os riscos de desgaste com a superexposição da imagem. FHC foi crivado de críticas pelos excessos de cerimônias montadas para o anúncio de planos que não saíram da oratória, pela obsessão das viagens internacionais para colher os aplausos da fluência do expositor poliglota.

Como seu clone barbado, embevecido pelo justo sucesso dos seus improvisos vigorosos nas platéias do mundo, Lula escorrega no mesmo piso ensaboado do deslumbramento com viagens, a chuva torrencial de promessas, de planos, projetos.

Não é possível que não ocorra aos seus competentes assessores e marqueteiros a velha sabedoria popular de que o que é demais, tal como a delícia da cocada preta, acaba enjoando.

Candidato promete; presidente realiza. O povão que vê o presidente todo o dia, pela TV ou lê o noticiário abundante dos jornais e revista, pulando de um microfone para outro em discursos amazônicos, subindo e descendo de aviões, enchendo as horas com intermináveis reuniões que rendem o consenso das discordâncias, começa a desconfiar que não sobra tempo para o trabalho solitário de gabinete, o exame de problemas com assessores, os despachos com os 36 ministros e secretários-ministros, os vagares para matutar, no exame com a consciência dos erros e acertos, das correções e para o exercício da reflexão.

Ninguém sabe tudo ou tudo aprende de oitiva. E um dos piores pecados de quem governa é a soberba.

A gente precisa, de quando em vez, de uma pitada de humildade.”

 

“Coisa perversa”, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/03

“O empresário Antônio Ermírio de Moraes, questionado por Heródoto Barbeiro na CBN, disse que o aumento na produção industrial paulista é, sim, um sinal de ?recuperação econômica do país?.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, também acha:

– O pior já ficou para trás.

O chefe da missão do FMI também acha, na Globo:

– A economia brasileira está indo muito bem. A inflação e os juros estão caindo. A recessão está terminando.

Míriam Leitão, comentarista da Globo, também acha:

– O primeiro sinal de recuperação da economia demorou, mas está aí.

E isso tudo os quatro falaram antes de sair a manchete do Jornal da Record:

– Vendas de eletroeletrônicos crescem 20% em setembro.

E antes de o Jornal Nacional acrescentar:

– Novos sinais da recuperação da indústria brasileira. Segundo a FGV, o nível de produção subiu quase seis pontos de julho a outubro. E as vendas da indústria do Rio cresceram quase 3% em setembro.

O ruído é só que produção e vendas crescem, mas o emprego segue estagnado, ao contrário do que prometiam.

E começam as exortações e as explicações.

O presidente do BC disse que ?as condições estão dadas? e ?só falta investir?, em nova mensagem às empresas.

Para a comentarista da Globo, ?só num segundo momento é que a indústria voltará a contratar?. Antônio Ermírio é menos otimista. Questionado sobre os motivos da aparente contradição de crescer sem empregar, comentou:

– É fácil explicar. É a chamada globalização. Essa globalização é uma coisa perversa para o mundo em desenvolvimento. Você tem que produzir e ao mesmo tempo enfrentar os preços internacionais.

Em resumo, a retomada do crescimento…

– Vai empregar, mas vai empregar menos.

Espetáculo de crescimento não é sinônimo de espetáculo de empregos.

Para o PT e seus candidatos, a perspectiva de recuperação, ainda que sem efeito de igual proporção no emprego, é um presente que dá alento para o ano novo eleitoral.

E não é preciso procurar muito para vislumbrar, desde já, a campanha na TV.

Pode-se ligar o Cidade Alerta, da Record, e trombar com uma longa reportagem ou algo assim sobre a inauguração de um CEU de Marta.”

***

“Do crescimento à ética”, copyright Folha de S. Paulo, 29/10/03

“Jô Soares, depois de longa e acrítica entrevista com José Dirceu, puxou os ?parabéns? para Lula e cantou com o ministro, o sexteto e todo o auditório, na madrugada.

E a terça-feira que se seguiu parecia indicar realmente a entrega de muitos ?presentes? de aniversário, para usar uma expressão do comentarista Alexandre Garcia.

Para começar, a produção industrial em São Paulo, segundo levantamento da Fiesp, cresceu 6% em setembro. ?O melhor mês de setembro em nove anos?, bradou William Bonner no Jornal Nacional.

Foi o terceiro mês seguido de aumento no nível de atividade industrial paulista, aumento que começou no mesmo julho em que Lula havia deixado escapar, num de seus arroubos populistas, a expressão ?espetáculo do crescimento?.

Na usualmente queixosa Fiesp, anunciou-se com certa resistência que foi o maior crescimento em quase um ano e aceitou-se que foi um número ?alto?, mais até, uma ?belíssima surpresa?.

Acrescente-se a isso a nova queda nos juros bancários, ainda que pequena, e o que se tinha pela frente era -ou parecia ser- uma jornada de graça para o governo Lula.

Acrescente-se, como cereja sobre o bolo, uma pesquisa da Universidade de Miami, realizada com 537 integrantes do que foi descrito como ?elite latina? e divulgada por todos os meios.

Nela, Lula surgiu como o líder pan-americano com a melhor avaliação entre os ?latinos? ricos: 69% de aprovação, contra 56% do segundo colocado, o argentino Néstor Kirchner, e 55% do terceiro, o chileno Ricardo Lagos. E, mais importante, contra 87% de desaprovação do norte-americano George W. Bush.

Um presente atrás do outro, como se vê. Mas o dia foi longo o bastante para que o presidente da Força Sindical, ex-candidato a vice-presidente da República, embarcasse com estardalhaço numa acusação nada confortável para Lula e o PT, a de ?espionagem? eleitoral.

Paulo Pereira da Silva, ?recém-lançado candidato do PDT a prefeito de São Paulo?, como destacou a Record, anunciou que agora ?quer distância? do governo Lula. E até se desculpou com o tucano José Serra, que foi seu acusado anterior pela mesma ?espionagem?.

A vociferante oposição do PSDB e do PFL no Congresso reagiu ameaçando com uma CPI que não deixaria o presidente respirar.

O âncora Boris Casoy, do Jornal da Record, foi mais contido e sublinhou a ?ótima oportunidade? encontrada por Paulinho para romper com os petistas e iniciar sua campanha para a vaga de Marta Suplicy em 2004. Mas acrescentou:

– Bons tempos em que o PT clamava por ética na política.”