SP, 450
“Festas e nostalgia”, copyright Jornal do Brasil, 24/01/04
“Chegaram primeiro à Bahia e tão encantados ficaram os descobridores com os prodígios daquele mundo novo que dele mandaram ao rei D. Manoel duas eloqüentes mensagens – a carta-reportagem de Pero Vaz de Caminha e duas enormes araras. Destas, acredita-se, vem o nosso primeiro nome, Terra dos Papagaios.
Não mereceram grandes comemorações na corte lisboeta a fundação, em 1554, da vila de São Paulo e, depois (1565), da vila do Rio de Janeiro. Sem papagaios ou papagaiadas: era obrigação dos descobridores colonizar aquela terra rica e vasta que a Divina Providência e o Tratado de Tordesilhas tiveram a generosidade de nos oferecer. Com um intervalo de 11 anos e a distância de 500 quilômetros fincou-se um eixo de progresso em torno do qual espalhou-se aquele país batizado há 63 anos como País do Futuro.
Esse passado onde o espalhafato tenta sobrepor-se à discreta ousadia dos pioneiros está sendo relembrado a propósito dos 450 anos – trissesquicentenário? – de fundação da cidade de São Paulo, comemorados amanhã.
Em menos de meio milênio o pequeno povoado transformou-se numa das maiores áreas metropolitanas do mundo, capital de um portentoso Estado-país e cuja historia foi retratada brilhantemente pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo em A Capital da Solidão (Editora Objetiva, 2003).
Primorosa saga onde a historiografia humanizada transforma-se num tocante e coletivo bildungsroman, romance da formação. Infelizmente interrompida em 1900, privou-nos da oportunidade de reviver as comemorações dos 400 anos da fundação de São Paulo, quando a Paulicéia taciturna, graças ao fertilíssimo Mário de Andrade, converteu-se efetivamente em desvairada com a logomarca espiralada concebida pelo carioca Oscar Niemeyer.
Eldorado moderno, em 1954 São Paulo já era o centro industrial, preparava-se para transformar-se no centro econômico e financeiro e fazia os primeiros ensaios para converter-se em capital cultural do país.
Jovem repórter, tive o privilégio de ser enviado do Rio para fazer a cobertura da esplêndida festa que alongou-se por 12 meses. As magníficas comemorações do 4? Centenário não se resumiram aos eventos programados nem aos monumentos inaugurados mas transformaram-se em instituições duradouras. São Paulo foi simultaneamente canteiro de obras, laboratório de projetos, marco e festa. Fez história.
Apesar do aval e do interesse da prefeitura e do governo do Estado, esse formidável aniversário com 400 velinhas não foi roubado pelo provinciano burgomestre Jânio Quadros ou o medíocre governador Lucas Nogueira Garcez.
Jânio elegeu-se governador naquele ano mas não conseguiu apropriar-se da festa: para enfrentar o populismo ademarista, precisou montar na vassoura da luta contra a corrupção. Getúlio Vargas, presidente eleito, prudentemente, deu apenas o ar de sua graça e voltou para a Capital.
Maestro e orquestrador foi Cicillo Matarazzo (1898-1977), que presidiu a comissão dos festejos do IV Centenário (assim mesmo, com algarismos romanos), organizou a II Bienal com grande participação e repercussão internacional, construiu o Parque do Ibirapuera (traço também de Niemeyer), fundou o Balé do Quarto Centenário, abriu o Festival Internacional de Cinema e entrosou tudo isso com o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, estes comandados por Franco Zampari.
Os quatrocentões perderam o pudor e fizeram a festa junto com os filhos dos imigrantes. A aristocracia rural desceu do pedestal para aderir ao cadinho étnico. São Paulo nesse momento capitalizou sua vocação cosmopolita, com ela soube atrair os capitais europeus e criar um pólo industrial hoje o maior do continente sul-americano. Com esse valioso aporte de recursos, o processo cultural brasileiro ganhou dimensão. Logo depois, com a Editora Abril, iniciava a escalada para transformar-se na câmara de eco e central da indústria da comunicação.
Planalto novamente em festa, o ingrediente hoje é a nostalgia. Vaga, imprecisa, com desfiles de carros antigos, fotos dos anos 20 e esforços para a recuperação do Centro Velho. Futuro encurtado, encolhido, os 450 anos têm algo de melancólico: resumem-se à disputa pela posse do mandato de prefeito nos próximos quatro anos. Ou, no máximo, decidem a reeleição do presidente da República. É pouco.”
“Luz e sombras nas festas de São Paulo”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 23/01/04
“O XIS DA QUESTÃO – De repente, passamos a ter a sensação de que, ao comemorar 450 anos, São Paulo se transformou em cidade só de encantamentos, sem problemas. A propaganda, e o noticiário por ela contaminado, nos empurram para os lados iluminados da cidade e nos escondem a perspectiva da cidade real, a das periferias, por exemplo. Quando tal acontece com a colaboração do jornalismo, o cidadão, detentor do direito à informação, fica desinformado.
1. Adesão perigosa
São Paulo merece todos os presentes e todas as declarações de amor. Mas a overdose colorida de propaganda que embala os festejos dos 450 anos da cidade revela, mesmo quando tenta esconder, uma feroz disputa pelos dividendos políticos da festa. O confronto mais evidente dá-se entre os governos do Município e do Estado. De um lado, a prefeita Marta Suplicy, do outro, o governador Geraldo Alckimin. De forma simbólica ou explícita, com voz própria ou pela voz de prepostos, cada um deles clama amor por São Paulo e exibe os presentes que lhe oferece.
Os presentes são reais, materializados em obras e realizações meritórias, de maior ou menor valia para a cidade. Há presentes magníficos, como a limpeza e o embelezamento da cidade, as cartas de Anchieta, a recuperação do centro histórico, a restauração da Estação da Luz, as sessões de cinema ao ar livre nos grandes parques e um belo repertório de iniciativas culturais, várias delas patrocinadas por organizações privadas. Mas, o que atinge a opinião pública é a batalha da propaganda. E nela, o objeto oculto da disputa é o poder.
Marta e Alckmin estão de olho nas eleições municipais de outubro. Porque, além da importância específica que tem no cenário político nacional, a conquista da Prefeitura de São Paulo, este ano, pode ser decisiva no xadrez eleitoral da sucessão presidencial, em 2006.
O aproveitamento eleitoral de um evento com a grandiosidade e a significação do 450? aniversário de São Paulo, além de previsível, é legítimo. Como legítima é a divulgação das realizações de cada um dos governantes. Porém, o furor propagandístico do confronto acaba produzindo um exagero e uma deformação que incomodam.
O exagero resulta na fadiga coletiva por tanta propaganda. Há gente que não agüenta mais ouvir falar do aniversário de São Paulo. A deformação está na perigosa adesão do jornalismo ao discurso da propaganda.
2. Que cidade é esta?
De repente, passamos a ter a sensação de que, ao comemorar 450 anos, São Paulo se transformou em cidade sem problemas, sem desemprego, sem violência, sem moradores de rua, sem menores abandonados, sem déficits de saneamento, sem favelas, sem carências de transporte, sem ruas esburacadas, sem corrupção, sem políticos preguiçosos ou despudorados, sem crianças fora da escola, sem hospitais com falta de médicos, de leitos, de remédios. A propaganda e o noticiário por ela contaminado nos empurram para os lados iluminados da cidade e nos escondem a perspectiva das periferias, onde vive a maior parte da população.
Se a parte festiva do aniversário já tem a exuberante promoção da propaganda, e sem excluir o noticiário das festas, por que a pauta jornalística não se inquieta com perguntas essenciais que o momento justificaria, como esta: depois de 450 anos, que cidade temos?
Na busca de respostas, os jornais e as TVs poderiam colocar seus repórteres em ônibus de longo percurso, irem até o fim da linha e dizerem: ?Desci em São Paulo. Que cidade é esta??
Descobririam, para revelar aos seus leitores e telespectadores, a população sobre a qual caem os efeitos mais dramáticos e injustos do caos urbano, da falta de habitação, da pobreza sem remédio, do desrespeito oficial à dignidade humana, da exploração criminosa do trabalho, da lentidão e do distanciamento da Justiça, da exclusão humilhante do analfabetismo – enfim, vítima indefesa da falta de políticas públicas de saúde, educação, habitação, transporte, emprego, capacitação profissional, segurança, justiça fiscal, distribuição de renda, acesso à terra, à cultura e à Justiça.
Mas também descobririam o mundo não noticiado dos verdadeiros heróis do cotidiano, gente que, apesar de tudo, persiste no trabalho como instrumento de sobrevivência e dignidade. Gente que, apesar de tudo, não renunciou à honestidade como norma de vida, nem à auto-estima. E disso fazem a sua festa, todos os dias.
Do fim da linha, os repórteres voltariam com belas histórias para o exercício da arte jornalística, que é a arte de narrar ações, reações e emoções humanas, na construção do mundo real. E de, pela narração, desvendar os lados ocultos da vida, na cidade dos homens.
3. Luz e ocultação
Nada contra a propaganda. Mas não se justifica, nem convém à sociedade, a adesão fácil do jornalismo à euforia propagandística que cerca o 450? aniversário da cidade de São Paulo.
Quando assim age, sob o impulso ou no aproveitamento das emoções que a propaganda intensa potencializa, o jornalismo deixa de sê-lo, apesar das aparências habilmente preservadas. Integra-se, por aderência, às presunções da propaganda, dando espaço e força apenas às informações que convêm ao discurso preponderante.
Quando tanto se expõe e exalta o lado iluminado da cidade em festa, mais se acentua a ocultação dos lados menos iluminados. E quando tal acontece com a colaboração do jornalismo, o cidadão, detentor do direito à informação ficará desinformado. Esse é o xis da questão.”
“Mais coração, menos pulmão”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 22/01/04
“?Padre Anchieta foi ao Brasil praticamente para morrer (…) Quando viajou, aos 19 anos, estava muito doente, com problemas respiratórios, e pensava em terminar em poucos meses seus dias lá. Acontece que o clima de São Paulo lhe fez muito bem, e ele viveu até os 63 anos de idade?.
A explicação de Luis Rodrigues a Assimina Vlahou, da BBC, publicada na Folha Online, me fez tossir mais um pouco. Eu queria ter certeza de que haveria um arzinho de sobra para suspirar e me lembrar de duas verdades da minha vida: ?Eu amo São Paulo? e ?se eu deixar, São Paulo me mata? (acho que se eu não deixar, também).
A frase do padre brasileiro, encarregado da biblioteca da Companhia de Jesus no Vaticano, reverberou entre a ironia coletiva (a de que quem respira aqui se dá bem) e a pessoal.
Pois, nascido em Brasília e morador de outros estados, foi em São Paulo que me meti nesta bronquite intermitente, por obra de madrugadas de trabalho, poluição, sereno, estresse, chuvas de bala de 38, 765 e outros calibres e uma vaga e alentadora perspectiva de hora extra no fim do mês.
Aqui também quebrei uma costela (não, foi em Diadema), depois que o motorista do carro de reportagem encasquetou de ultrapassar na curva.
Bronquite alérgica, costela avariada, São Paulo me dá trabalho. Emprego também. Precisamente, só no jornalismo contei nove (deixei de fora os de outras cidades, próximas ou não). Ou eu sou rebelde, ou não eram dos melhores. Talvez as duas coisas. O mais comum, com as exceções de sempre: quando o trabalho era bacana, o chefe não era, e vice-versa. Pode pôr o salário nessa conta de subtrair. Um menos o outro é igual a mudança de emprego.
São Paulo salvou José de Anchieta, o ressuscitado. Aqui, todos os vivos persistimos. Egoísta, falo pelos sobreviventes.
Meu primeiro e, espero, último assalto (vítima, bem entendido) foi em Guarulhos (Região Metropolitana conta?). Nem falo de outros incidentes. Vão achar que sou pé-frio. Ao contrário: desde que aqui cheguei de vez, em 1? de fevereiro de 87, resisto inteiro à cidade e às chibatadas de seus empregos-pelourinhos (quando não em salário, em aporrinhação ou em horas de trabalho).
A vida é difícil, mas o diabo é que eu gosto desta terra. Aqui me encaminhei para o jornalismo, aqui casei, descasei e casei de novo, aqui tenho amigos-gigantes, corações tipicamente paulistanos. Não me considero brasileiro de São Paulo, como dizem os políticos, com o olhar espichado para os votos dos imigrantes. Sou paulistano nascido em Brasília. Em minhas viagens fora do Estado, não ousem falar mal da cidade na minha frente. Sou um filho temporão desta metrópole. Não era, até então, arraigado em nenhum lugar, como um autêntico ?nowhere man?. Isso é passado.
Aqui fiz e faço a minha vida. Se luto por uma São Paulo melhor, junto com tantos colegas que a merecem, também é porque não aceito que se torne madrasta, como o tem sido para muita gente no decorrer dos anos.
O primeiro jornal desta plaga foi o ?Farol Paulistano?, de José da Costa Carvalho, futuro marquês de Monte Alegre, um dos integrantes da Regência Trina Permanente (1831). O periódico começou a circular em 7 de fevereiro de 1827, 273 anos depois da fundação do Colégio dos Jesuítas. Por um largo tempo não houve jornais, mas ar puro.
Quando penso em deixar São Paulo para conseguir respirar, em qualquer outro lugar, quando penso em me mandar por causa da violência que não ajudará a criar os filhos que ainda não tenho, quando penso em deixar a minha própria história para trás, às margens do Tietê e do Pinheiros, entristeço-me, para, segundos depois, empertigar-me e inflar-me novamente de utopia.
Pudera devolver a São Paulo tudo aquilo que ela me deu. Posso, como jornalista, espernear, denunciar-lhe os abusos e afagar-lhe os progressos. Ainda assim, sou um só, fraco e à mercê das borrascas. Sinto-me impotente, como o sentem, acredito, muitos de vocês.
Não a abandonaremos, contudo. Festas e convenções à parte, as celebrações destes 450 anos extrapolam o passado e servem para refletir, para recobrar o fôlego, para respirar o futuro que nós, jornalistas, temos o dever de edificar. Ainda que à custa dos próprios pulmões.”