SALVE JORGE
"Dez, vinte Amados", copyright Jornal do Brasil, 11/8/01
"Quarta-feira éramos estáveis e nem sabíamos. Ontem acordamos drasticamente reduzidos a negativos. A S&P olhou a bola de cristal e nos condenou prospectivamente. Nossa perspectiva para 2002 piorou apesar da bolada que entrou do FMI. O rebaixamento talvez deveu-se porque só ganhamos do Panamá de 5 a 0, quando os investidores internacionais exigiam algo próximo dos 10 a 0. Ou por causa da gafe cometida por Veja, que, na entrevista com Tony Blair, confundiu União Monetária com União Européia e criou baita confusão na política inglesa.
Não seria de estranhar que os videntes da Standard & Poors estivessem irritados com o ajoujado, adjetivo que Itamar Franco enfiou no seu último pronunciamento contra o Planalto para justificar a derrota na disputa interna do PMDB. Se fala assim quando ainda é candidato a candidato ? pensaram os juízes do nosso destino ? imagine-se que arcaísmos proporá no discurso de posse.
O mais provável, porém, é que o castigo futurológico imposto pela S & P tenha sido causado por algo mais sério e muito mais triste. Desde segunda-feira estamos sem Jorge Amado. E, aparentemente, ficaremos muito tempo sem qualquer substituto. Mesmo que os imortais da Academia já estejam agitados pela escolha do novo ocupante da sua cadeira.
Ratings são volúveis: inapelável é o sumiço de Jorge Amado. Merecia chegar aos 100 anos, parou nos quase 89, generosamente vividos. Dores e luto passam, a perda afetiva sara. Incurável é a constatação de que estamos emperrados em matéria cultural. Uma das dez maiores potências econômicas mundiais perde sua única sumidade mundial em matéria de literatura e tudo indica que tão cedo não teremos outra. Aliás temos, considerando o fenômeno Paulo Coelho. Tipo de consolo que desconsola ainda mais.
Quando Jorge Amado despontou nos anos 30 e 40 contávamos com Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Cornélio Pena, Otávio de Faria, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, depois vieram Guimarães Rosa, João Cabral, Clarice Lispector. O país não tinha a menor expressão política ou econômica mas produziu uma elite extraordinária que inseminou pelo menos mais três gerações.
Talento gera-se por osmose, contato, convívio, exemplo, emulação, clima. Inteligência, criatividade ou sensibilidade são manifestações individuais, mas o ambiente é decisivo para que frutifiquem. Ditaduras não são obstáculos intransponíveis, a prova está na plêiade de escritores, poetas, músicos, artistas plásticos e arquitetos gerados durante e em seguida ao Estado Novo. O Iluminismo e seus filósofos surgiram na França no auge do absolutismo do antigo regime.
Não foi a Revolução dos Cravos que fez desabrochar José Saramago, diligente mas anônimo jornalista convertido em Prêmio Nobel. Foi o fim do isolamento salazarista, o reencontro nacional com a cultura, a vontade coletiva de levantar a cabeça e enxergar o futuro. Saramago foi a expressão desse estalo. Que o padre Vieira não conseguiu levar adiante sitiado pela Inquisição. Saramago foi buscar justamente a Inquisição e Fernando Pessoa ? expressões máximas e antagônicas do passado português ? para com eles construir as obras decisivas da sua extraordinária carreira.
A atual Renascença Espanhola seguiu-se ao fim do franquismo, mas vem sedimentando-se desde o fim do século 19. O que aconteceu depois da democratização foi um processo horizontal que envolveu o surgimento de grandes jornais (El País é um deles), grandes editoras, grandes professores e grandes universidades. O resultado estende-se da música erudita ao cinema, da ópera ao flamenco, do romance ao ensaio.
O tal do ?Milagre Brasileiro? (ficção livresca cujo autor está hoje embalsamado na Academia) abortou um processo que poderia ter fabricado outros Jorges, tão amados quanto ele. Para completar, nossa democratização ? formal e epidérmica ? não conseguiu mexer com as almas. Substituímos um autoritarismo por outro, um monolitismo por outro, um desrespeito por outro. Convertemos os tiranetes de antanho em mirrados heróis da atualidade e, nesse processo geral de degradação e trituração, estabelecemos lideranças, valores, paradigmas e condições atmosféricas adversas à consagração de novos Amados.
O Pacto de Moncloa na Espanha não foi um acordo partidário mas o fim efetivo da ditadura. Desarmamento dos espíritos. Vetor da indignação reorientado para a construção. Diferenças armadas em função do bem comum, comunidade. Quando Lula devidamente instruído pelo Duda afirma que só o PT pode derrotar o PT em 2002, está dizendo ?Oposição Sou Eu? e assume-se tão absolutista quanto aquele outro Luís, rei da França, ao afirmar o ?Estado sou Eu?.
No início do século 19 Ortega y Gasset também olhou-se no espelho mas foi em outra direção: ?Eu sou eu mais as minhas circunstâncias?. Com isso o filósofo estabelecia um rating permanente, conceito de interdependência e interatividade mais efetivo e duradouro do que as medições e classificações hoje em voga justamente porque as nações e as criaturas andam tão baratinadas à procura de referências.
Talento conta muito, circunstâncias contam mais. Quem desfigurou nossa cultura deixando Jorge Amado sozinho no Olimpo literário não foi o mercado. Foram as pessoas que o lideram ? inclusive na mídia ? incapazes de apostar, inovar, ousar, inventar. Sobretudo agregar e combinar. Nosso país continua sob o império do ou, conjunção alternativa, excludente, esquecido da conjunção aditiva, e. Continuamos dilacerados pelo dilema experimentalismo-comercialismo sem opções no meio.
A culpa é do governo? Também. Cultura não pode estar confinada a uma pasta, é projeto nacional permeando todas as pastas, inclusive a do Desenvolvimento que, sem conteúdo, fica restrita ao âmbito do crescimento econômico. Como Singapura ou a Coréia, cujos desempenhos não deixaram resíduo nos corações ou mentes do mundo.
Jorge Amado será nome de prêmio literário, avenidas, praças, escolas e edifícios. Deveria designar um conjunto de circunstâncias, condição, causa e fator para o surgimento de dez, vinte Amados."
"Jorge Amado e eu", copyright O Globo, 12/8/01
"Em 60 anos de vida, fiquei órfão três vezes. A primeira foi quando Glauber Rocha, nem dois anos mais velho do que eu, morreu e me deixou desarvorado em Portugal, onde convivêramos em seus últimos dias. A segunda foi quando meu pai, Manoel Ribeiro, morreu e perdi de vez o tapinha nas costas dado por ele, nas raras ocasiões em que sua severidade lhe permitia agradar-se de algo que eu tinha feito. A terceira vez foi na noite de segunda-feira passada, quando morreu Jorge Amado e estou aqui, desnorteado novamente, agora que nunca mais vou poder ouvir seu bom humor, às vezes brincalhonamente irônico, manifestar-se nas muitas lições que me deu, na paciência e generosidade que sempre foram marca de seu temperamento.
Com quem vou conversar agora, na mais desarmada confiança que se pode ter, a quem mais vou contar minhas dúvidas e hesitações, de quem mais vou ouvir macetes e percalços desta vida de contador de histórias, quem mais me olhará ? como olhava para todos nós, os jovens de quem, sem o menor paternalismo, mas como uma espécie de irmão mais velho, se tornou amigo e infatigável incentivador ? com o orgulho ancho e benevolente de um técnico de futebol, diante da equipe que conseguiu formar? Para quem vou telefonar e pedir juízo, conselhos e sensatez? Por que se vão todas as minhas referências, me deixando cada vez mais só neste mundo, onde tudo indica que ficarei mais um tempo?
Talvez pareça presunçoso eu querer falar no universo que foi e é Jorge Amado através de meu ponto de vista. Mas para falar na persona literária, política e social dele, haverá quem fale melhor do que eu. De especial no que tenho a dizer existe somente a amizade e o amor fraterno que nos uniu durante uns 40 anos e é disso que posso falar. Posso testemunhar sobre a grandeza e a generosidade de seu gênio. Pois o chamo de gênio, no sentido que esta palavra tinha antigamente, antes de enfraquecer-se pelo uso descomedido. Quem mais, senão um gênio, teria criado toda uma nação, teria dado forma, expressão e identidade a uma terra e uma cultura como a Bahia, assim legando aos baianos e aos brasileiros em geral, pois a Bahia pertence a todos os brasileiros, um patrimônio inestimável? A Bahia não pode ser compreendida ? e, por via de conseqüência, o Brasil não pode ser inteiramente compreendido ? sem Jorge Amado e Dorival Caymmi, esse outro gênio de quem só podemos também ter orgulho. Dois fortíssimos pilares da cultura nacional residem na obra deles e, agora que eles já abriram caminho, tudo parece fácil e até óbvio. É como na história de um ignorante que foi assistir a uma apresentação de ?Hamlet? e depois comentou, decepcionado, que não passava de um apanhado de lugares-comuns: ser ou não ser, eis a questão; o resto é silêncio; há algo de podre no Reino da Dinamarca; há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua filosofia; e assim por diante. A Bahia desabrochou sob as mãos de artesãos amorosos e de insuperável sensibilidade, como Jorge e Caymmi. Pela primeira vez os negros, os pobres, os humildes, os marginalizados foram trazidos maciçamente, através de uma singularíssima empatia e uma riqueza narrativa incomparável, para o proscênio das nossas artes ? e nunca mais a cultura nacional foi a mesma.
Nós aprendemos a nos menosprezar e vivemos treinando isso o tempo todo. Há quem não veja, quem não consiga quase glandularmente não ver, que Jorge Amado não foi um dos mais importantes escritores do Brasil, mas um dos maiores autores do século, sob todos os títulos, a começar pelo fato de que, para o mundo culto e, de certa forma, para o grande público de muitos países, praticamente encarnava o Brasil e bem poucos escritores podem aspirar a esse tipo de galardão. Ele, com altivez e dignidade, nos representava, era como um símbolo da afirmação nacional, era o nosso escritor.
Mas isso tudo é e será visto, pois o patrimônio que Jorge nos deixou é perene e indelével, entrou na nossa alma, e a perspectiva histórica ainda lhe dará o relevo que efetivamente merece e que alguns ainda lhe negam, estreitando e tentando apequenar a estatura indestrutível de sua obra e sua vida, cujos ideais o levaram a quatro prisões, ao exílio e à incompreensão. Sempre disse que seu personagem era o povo e por isso, com mal-disfarçado desdém, há quem o chame de populista. Mas vá lá que fosse, ele mesmo não dava nenhuma pelota para isso, até gostava. Eu estava na Bahia para sua despedida e vi o povo nas ruas, aplaudindo seu escritor com emoção. Muitos entre eles nem lêem, mas todos sabem que perderam algo de muito importante, que felizmente viverá sempre na obra que aí está.
Acabei me alongando mais do que queria, em seara que outros explorarão muito melhor do que eu. Queria mesmo falar sobre aquilo em que tenho autoridade: nossa amizade. Cacá Diegues disse à imprensa que nós todos somos produto do que ele inventou, queremos ser o projeto que sua obra representa para o Brasil. No avião em que voltávamos da Bahia, Caetano Veloso me disse a mesma coisa. Heródoto escreveu que o Egito é um dom do Nilo e nós somos um dom de Jorge. De minha parte, eu sei bem. Foi ele quem primeiro acreditou em mim, desde os meus 17 anos, foi ele que, me vendo registrar-me num hotel, olhou o item onde eu declarava timidamente que minha profissão era jornalista, pegou a ficha, rasgou-a e disse:
? Jornalista é muito bom, mas não é o que você é. Bote aí ?escritor?, você é escritor.
Foi ele que me acompanhou durante todo esse tempo, enchendo minha bola onde quer que chegasse ou a que veículo de imprensa falasse. Foi ele quem me chamou a atenção, sempre carinhosamente, para meus erros, minhas decisões mal pensadas, até para meu descuido com a saúde. A sabedoria e o bem-querer com que sempre me orientou não me deixarão nunca, sou um privilegiado maiúsculo, com essa convivência acima de tudo enriquecedora e enobrecedora. Não posso avaliar tudo o que devo a Jorge, direta e indiretamente. Só sei que tenho saudades dele e das muitas horas que passamos juntos e sei que vou atravessar o resto da vida com estas saudades."