ASPAS
LEI REBELO
"A neolíngua neoliberal", Folha de S. Paulo, 3/06/01
"?Acreditávamos num mundo sem fronteiras, mais solidário, e a palavra patriotismo se fazia esquecida. Hoje é dele que precisamos: tudo mudou. A nossa soberania está ameaçada, e defendê-la deve ser nossa maior preocupação.? (Oscar Niemeyer, arquiteto)
Na verdade, a língua configura, como acentua Hayek, uma Ordem Espontânea do mesmo tipo do que o Mercado capitalista.? (J.O. de Meira Penna, escritor)
O artigo 13? da Constituição assegura a todos os brasileiros o direito de se comunicarem em língua portuguesa: ?A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil?, diz o singelo artigo. Confesso que temo pelo futuro do modesto dispositivo constitucional. Sobreviverá ele ao furor desconstitucionalizante que retirou direitos básicos e desfigurou o texto constitucional?
Já há quem aponte nele aberrações e deformidades da mesma natureza dos chamados direitos adquiridos ou da simples distinção entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro, estes já devidamente banidos da Constituição pela onda modernizante.
Terá razão Niemeyer ou os que como ele pensam que a face atual do internacionalismo é se integrar à corrente dos povos que defendem sua identidade, sua língua, culinária, herança cultural contra a ditadura uniformizadora e empobrecedora da globalização de mão única?
Ou terá razão Friedrich von Hayek (1899-1992), o economista austríaco, profeta da tirania do mercado e do atual neoliberalismo? A língua, como o mercado, dispensa a mediação das leis e dos Estados nacionais? Ou tanto uma como o outro, criação e expressão de relações sociais forjadas no entrechoque dos interesses de seus criadores, agrupados em etnias, classes e nações no atual período da história humana, carecem de regras que bloqueiem o darwinismo econômico, social e o linguístico?
A língua é algo vivo, que precisa respirar e, não duvido, se enriquece e fortalece em contato com outras línguas e culturas. É viva justamente porque é um fato das relações sociais e não tem, como parecem acreditar ilustres professores, vida própria independente da ação dos homens e da sociedade.
A vulgaridade dos argumentos de alguns detratores do projeto que apresentei na Câmara dos Deputados se deveu, creio eu, à ignorância desse ambiente político, ideológico e cultural carregado de conflitos que conduzem para a encruzilhada da sobrevivência ou da degradação de povos e nações em todos os quadrantes da terra.
Falso debate Daí a imposição do falso debate: proibir ou não proibir estrangeirismos. Esquecem a essência do projeto (se é que por ela se interessaram), no seu artigo segundo:
?I. Melhorar as condições de ensino e de aprendizagem da língua portuguesa em todos os graus, níveis e modalidades da educação nacional;
II. Incentivar o estudo e a pesquisa sobre os modos normativos e populares de expressão oral e escrita do povo brasileiro;
III. Realizar campanhas e certames educativos sobre o uso da língua portuguesa, destinados a estudantes, professores e cidadãos em geral;
IV. Incentivar a difusão do idioma português, dentro e fora do país;
V. Fomentar a participação do Brasil na comunidade dos países de língua portuguesa;
VI. Atualizar, com base em parecer da Academia Brasileira de Letras, as normas do Formulário Ortográfico, com vista ao aportuguesamento e à inclusão de vocábulos de origem estrangeira no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
Acrescenta ainda o mesmo artigo: ?Os meios de comunicação de massa e as instituições de ensino deverão, na forma dessa lei, participar ativamente da realização prática dos objetivos listados nos incisos anteriores? (pár. 1?).
Acusam-me agora de alimentar o mito da língua única. ?Data venia?, quem sou eu para arcar com o peso de tão grave acusação. Por favor, senhores, o ?mito? foi construído por falantes e artífices da língua mais, mas muito mais mesmo, ilustres, doutos e/ou talentosos do que o modesto escrevinhador destas linhas. Querem ver? Camões, Bocage, Eça, Vieira, Machado, Euclides, Drummond, Chico Buarque, Elomar, Cartola, Ariano.
Há outros, populares, mas não menos talentosos, que podem assumir o madeiro e a via-crúcis do crime da língua única: Inácio da Catingueira (negro, escravo, analfabeto, paraibano, talvez o mais importante poeta repentista do século 19, provavelmente ignorado em certos ambientes acadêmicos assaltados pelo desamor ao idioma pátrio), Severino Pinto, José Pacheco, Leandro Gomes de Barros, para não falar dos atuais Ivanildo Vilanova, Geraldo Amâncio, Oliveira de Panelas, Jayme Caetano Braun (este gaúcho), entre tantos que cobriram e cobrem de bondade e beleza a língua portuguesa e o Brasil com seus versos, repentes e cordéis.
Recentemente, em debate em prestigiada universidade do Sul, ilustre professora acresceu ao mito da língua única o mito da unidade territorial. Agora sou acusado de propagar o mito do território único. Imaginei uma conferência mundial para redesenhar todas as fronteiras alteradas ao longo dos séculos por guerras e processos coloniais violentos.
Perguntei se o mito se referia apenas à unidade territorial do Brasil ou se o questionamento se estendia para além de nossas fronteiras. Pensei, por exemplo, nos Estados Unidos diante de uma corte internacional devolvendo um terço do território usurpado dos mexicanos.
De qualquer forma lembrei nossa professora de que o discurso do combate ao mito da unidade territorial brasileira ?cai bem? para pretendentes mais do que conhecidos aos recursos da biodiversidade amazônica.
Intelectuais colonizados Frantz Fanon foi médico, psicanalista e escritor. Nasceu na Martinica, mas assumiu a causa da independência da Argélia, nos anos 50 e 60, e escreveu uma obra -?Os Condenados da Terra?- considerada a bíblia das lutas de libertação nacional daquele período. Ele observou que o intelectual colonizado ?lança-se freneticamente na aquisição furiosa da cultura do ocupante, tendo o cuidado de caracterizar pejorativamente a sua cultura nacional, ou se acantona na enumeração circunstanciada, metódica, passional e rapidamente estéril dessa cultura?.
Para Fanon, ?se a cultura é a manifestação da consciência, não hesitarei em afirmar, no caso que nos ocupa, que a consciência nacional é a forma mais elaborada de cultura?. Bem, dirão alguns, eram outros tempos, tempos de intelectuais como Fanon.
Ah, mas há tantas humilhações, e muito piores, em límpido português. Por que se preocupar com mais uma, o abuso do estrangeirismo? É a fala do algoz a justificar o maltrato; quem sabe, um ato falho. (Aldo Rebelo é deputado federal pelo PCdoB de São Paulo)"