DEPOIMENTO DOS JORNALISTAS
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Acho muito triste que alguém tenha criado um e-mail falso para se fazer passar por um jornalista só para criar intrigas envolvendo quatro jornalista e um cientista.
O episódio mostra como estamos vulneráveis a este tipo de bobagem que circula pela internet. Ainda bem que o Observatório teve a lucidez de checar a história antes de coloca-la no ar. (A.M.)
(*) Subeditor da revista Época
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Criado para fiscalizar os deslizes de jornalistas, o Observatório da Imprensa acaba cometendo os erros que condena.
Parece que foi ontem. Márcia Silveira, jornalista gaúcha que mora em Manaus há mais de quatro anos, me enviou por e-mail um artigo publicado no Observatório da Imprensa, assinado pelo paraense Lúcio Flávio Pinto. No texto, veiculado no dia 20 de novembro do ano passado [remissão abaixo], Lúcio Flávio ameaça fazer uma crítica sobre o livro que eu acabara de lançar, Direto da Selva. O livro narra histórias interessantes e inusitadas que vivi durante dois anos na Amazônia, como correspondente da revista Veja na região. Mas Lúcio Flávio não fez críticas pontuais ao livro. Foi muito mais longe. Em seu texto, ele me acusou de ter inventado um dos episódios que relatei, o seqüestro do qual fui vítima, em Belém ? fui encapuzado e levado num carro até a floresta por três homens, que me amarraram a uma árvore, depois de fazerem ameaças (a intimidação tinha o propósito de evitar a publicação de uma reportagem em curso na ocasião, sobre apropriação ilegal de terras).
Desconsiderando todo o trabalho de investigação que a polícia havia feito, Lúcio insinuou que eu nunca sofrera aquela agressão. Eis os fatos comprovados pela polícia:
1. No dia 8 de março de 2000, por volta das 19 horas, cheguei, cambaleante, molhado de chuva e com os pulsos e joelhos sangrando, ao posto da Polícia Rodoviária Federal em Benevides, município paraense a cerca de 30 quilômetros de Belém.
2. Um dos policiais desse posto levou-me até minha casa, no veículo da polícia.
3. No dia seguinte, acompanhado por dois policiais, fui levado ao IML para ser examinado. O legista constatou que as marcas nos meu pulsos haviam sido causadas por atrito com corda ou nylon e que os hematomas nas minhas costas eram conseqüência de chutes e socos.
4. Numa operação envolvendo duas viaturas da polícia e oito investigadores, fui levado à região de Benevides. Os policiais encontraram uma família em cuja casa eu tinha pedido socorro na noite anterior. Os moradores confirmaram que, de fato, eu tinha aparecido, molhado de chuva e sangrando, pedindo socorro.
Lúcio Flávio também argumentou que o seqüestro era inverossímil pelo fato de a reportagem que o motivara não trazer nada de novo. Outro equívoco. A matéria tratava do maior caso de grilagem de terras do mundo. Mostrava todos os meandros da quadrilha: nomes dos envolvidos, juízes, empresários, madeireiros, cartórios. Eram tão fortes e consistentes as provas apresentadas, que a Câmara Federal instalou a CPI da Grilagem de Terras na Amazônia.
Há, ainda, muitas outras provas concretas que fariam qualquer órgão de imprensa sério avaliar se valeria mesmo a pena divulgar o texto de Lúcio Flávio Pinto. O Observatório da Imprensa, entretanto, jogou o “artigo” na web como se fosse a mais absoluta e intocável verdade. E, pior, sem se dar ao trabalho de entrar em contato comigo. Só fiquei sabendo da história duas semanas mais tarde, ao retornar de uma viagem de trabalho e ler o já citado e-mail da jornalista Márcia Silveira.
A gravíssima falha do Observatório ? que, pela missão a que se propõe, não deveria publicar textos sem obedecer a lei básica do bom jornalismo, a checagem ? por muito pouco não se repetiu. Na segunda-feira passada, recebi um e-mail de Luiz Antonio Magalhães, editor do Observatório, contendo um texto que seria publicado pelo site na terça, 15. Também assinada por Lúcio Flávio Pinto, a matéria “Jaysons Blairs Brasileiros: Jornalismo-Ficção faz Escola” acusava a mim, Alexandre Mansur, subeditor de Época, e Claudio Angelo, editor-assistente de Ciência da Folha de S. Paulo, de termos inventado supostas entrevistas com o pesquisador e ambientalista americano Russel Mittermeier, presidente da ONG Conservation International. Segundo Lúcio Flávio, o próprio Mittermeier teria declarado a ele (Lúcio) que nunca tinha sido entrevistado por mim, por Mansur ou por Claudio.
O primeiro e-mail de Luiz Antonio deixa bem clara a postura do Observatório. “Você está citado na matéria abaixo, que o Observatório da Imprensa publicará na edição desta semana.” Noutras palavras, mesmo sem prova alguma o texto iria ao ar. E Luiz Antonio ainda determinava o deadline: “A edição do Observatório entra na rede na noite de amanhã e aguardamos um retorno seu até às 16h de amanhã”. Ou seja: nós, os acusados, é que teríamos de provar nossa inocência. Eu e Claudio Angelo gastamos boa parte da nossa terça-feira trocando e-mails e conversando por telefone com o próprio Luiz Antonio e com a assessoria de comunicação da Conservation International no Brasil.
Por mais que afirmássemos que todo o texto era uma grande bobagem sem o menor fundamento, e que era Lúcio Flávio quem devia apresentar as provas de suas acusações, o editor do Observatório continuava dizendo que a matéria entraria no site às 18 horas. Só às 16h45 a matéria caiu. A assessoria da Conservation International no Brasil conseguiu falar com Russel Mittermeier, que negou ter dado as referidas declarações a Lúcio Flávio Pinto. Portanto, existe mesmo um Jayson Blair brasileiro, mas não sou eu nem os colegas citados levianamente no artigo em questão. A história, no entanto, ainda não tinha chegado ao fim. Diante da situação constrangedora, surgiu na última hora uma explicação curiosa para a confusão.
Toda a comunicação entre Lúcio Flávio e o editor do Observatório ? do envio da matéria aos acertos finais ? foi realizada por e-mail. Constatada a imprecisão do artigo, Luiz Antonio telefonou para mim e para Claudio Angelo, dizendo que tinha acabado de falar com Lúcio Flávio e que estava “perplexo” com o que descobrira. Na verdade, tudo teria sido armado por um “falso” Lúcio Flávio Pinto, utilizando um endereço de e-mail que o “verdadeiro” Lúcio desconhecia. Éramos, enfim, todos vítimas. É de se estranhar, no entanto, que o texto da matéria que acabou não sendo publicada é impressionantemente semelhante ao estilo de Lúcio Flávio ? o que não quer dizer grande coisa. O interessante é constatar que o editor Luiz Antonio passou praticamente dois dias conversando por e-mail com o “falso” Lúcio Flávio Pinto sem perceber que se tratava de um impostor. E a matéria só caiu quando Russel Mittermeier desmentiu tudo.
Agora, analisemos a gravidade do caso. Alexandre Mansur está viajando de férias e, portanto, não tomaria conhecimento da pendenga por e-mail, que foi o único meio de comunicação utilizado pelo Observatório para nos avisar que o artigo iria ao ar. Claudio Angelo está de viagem marcada para os Estados Unidos, onde passará um tempo estudando no respeitadíssimo MIT. Eu sou editor da revista Terra e passo ao menos dez dias do mês viajando a trabalho. O que teria acontecido se essa matéria tivesse sido publicada numa semana em que nós, os três acusados, estivéssemos sem contato por e-mail? Seríamos os três tomados por farsantes e embusteiros, mesmo sem o acusador ter prova alguma. Foi exatamente o que aconteceu comigo em novembro do ano passado, quando um certo Lúcio Flávio Pinto ? se o real ou o falso, não sei ? recebeu do mesmo Observatório da Imprensa espaço livre para me difamar. Talvez seja a hora de alguém criar o Observatório do Observatório. Como disse Cláudio Ângelo, com quem eu nunca havia falado até tudo isso acontecer, “quem observa os observadores?”. (K.C.)
(*) Editor da revista Terra