COBERTURA DA GUERRA
Paulo José Cunha (*)
Finalmente, após os atentados de 11 de setembro, a rede árabe de televisão al-Jazira divulgou imagens da liberdade de imprensa, uma senhora que estava desaparecida desde aquela data. Ela foi descoberta entre os escombros do WTC usando uma burka ? aquela roupa tradicional que cobre o corpo das mulheres afegãs. Até agora, as informações disponíveis eram as de que a liberdade de imprensa estaria usando um chador, aquele paninho que cobre o rosto das mulheres muçulmanas, mas deixa de fora os olhos. Agora, a al-Jazira confirma a suspeita de que ela optou por cobrir-se por inteiro, da cabeça aos pés.
Sem metáforas metidas a engraçadinhas: sintomaticamente é uma rede árabe de tevê com sede no Catar que vem dando ao mundo neste momento a grande aula de liberdade de imprensa. Al Jazira (A Ilha) vem mostrando o que o governo de Washington tenta desesperadamente ? e com a conivência de boa parte da imprensa local e de diversas grandes redes internacionais ? esconder para dentro e para fora.
A Casa Branca fez chegar às autoridades do Catar sugestão no sentido de que exercessem seu poder de influência sobre a estação para que suas transmissões não prejudicassem a estratégia americana. O troco veio da boca do xeque Al Thani: "Explicamos aos nossos amigos americanos e outros que estamos adotando um modelo parlamentar. A questão está encerrada, pois a vida parlamentar exige que tenhamos uma mídia livre e confiável. É isso que estamos tentando fazer." (Folha de SP, 8/10/01). Se as transmissões da al-Jazira não fossem em árabe (mas nunca é tarde para aprender), é provável que a opinião pública internacional sobre os acontecimentos gerados a partir da ação terrorista em território americano fosse ligeiramente diferente. Isso porque a política de atuação da rede árabe ? que é uma espécie de CNN lá deles ? se baseia na notícia, e não na versão oficial. Enquanto na imprensa americana a liberdade de expressão cada vez mais se limita pelo interesse nacional, a atuação da al-Jazira vem se tornando uma pedra no sapato de George Bush e companhia por exercer suas funções confiando mais em seus correspondentes do que nas declarações oficiais dos governos dos países onde atua.
Alguém aí se lembrou de uma certa Primeira Emenda, em respeito à qual se exercia a mais livre imprensa do planeta? Bons tempos.
"My brother"
Atuando na contramão da vontade de Washington, a al-Jazira preocupa muito o governo americano por desmantelar um meticuloso planejamento elaborado durante quase um mês, desde que os estrategistas do Pentágono se debruçaram sobre seus mapas chamuscados e definiram a forma de ataque colocado em prática domingo à tarde, na hora do jogo dos escolares do Felipão: o "morde-assopra" dos tomahawks enfeitados com sacos de lentilha e feijão. Não contavam que uma rede de tevê com estúdios minúsculos (o presidente egípcio Hosni Mubarak comparou-a a uma caixa de fósforos) fosse capaz de atravessar o samba e ganhar a confiança de todos os governos do Oriente, a ponto de ser a única emissora do mundo a receber autorização para manter uma equipe em Cabul, a capital do Afeganistão.
Também não é a toa que goza de prestígio em Israel ? por colocar no ar os pontos de vista de seus dirigentes. E contar com a simpatia de Bin Laden, que outro dia mandou a eles o vídeo do casamento de seu filho. Sem falar no furo que a al-Jazira fez a CNN amargar domingo passado, ao colocar no ar duas horas depois da ofensiva contra o Afeganistão a entrevista em que Bin Laden destilou todo o seu ódio contra os Estados Unidos e praticamente assumiu a autoria do ataque terrorista.
Com 85 jornalistas e correspondentes em toda a região (inclusive em Jerusalém) e também em Washington, Bruxelas e Londres, a al-Jazira se orgulha de ser "mais equilibrada do que a CNN ou a BBC", como afirma o editor-chefe Ahmed Al Sheich. O jornalista piauiense Assis Moreira, da Rádio Suíça, disse ter assistido em Dacar uma palestina protestar pelo fato de o repórter da al-Jazira tratar um israelense por "my brother" e ouvir como resposta: "É uma maneira árabe de tratar o interlocutor, nada mais."
Apesar da burka
A contradição em tudo isso vem do próprio Afeganistão, onde o Talibã proíbe rádio e tevê. Se o fundamentalismo fosse um pouquinho mais ameno, talvez os afegãos neutralizassem a influência que vão sofrer quando ligarem os receptores de rádio que os americanos estão despejando na região (com dial preparado para sintonizar exclusivamente a Voz da América, proibida na última semana de setembro de colocar no ar até mesmo uma entrevista com o mulá Muhamad Omar, líder afegão).
Enquanto isso, as câmeras da al-Jazira vão revelando o tamanho da burka que recobre a imprensa americana.
A CNN, importunada com a concorrência, preferiu pôr em prática a máxima do filósofo felino Garfield ("se não podes enfrentar o inimigo, une-te a ele"), e firmou acordo operacional com a al-Jazira para retransmissão de seus informes. A estréia foi a paranóia do assassino Bin Laden, assistida por um perplexo George Bush, em plena Casa Branca, logo depois da chuva de tomawawks com feijão.
A rede árabe, assim, vai transformando em realidade a advertência do repórter Bernard Shaw, que em janeiro de 1991 dizia, através da CNN, em meio às explosões dos primeiros mísseis sobre Bagdá: "Something is happening outside" ("Alguma coisa está acontecendo lá fora"). E vai continuar acontecendo, apesar da burka que recobre tudo.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de telejornalismo. Dirige o Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>