PROPAGANDA OFICIAL
Moacyr Francisco (*)
Será que um patrimônio público é de todos por direito, mas de ninguém de fato? Há quem explique assim as "obras" dos pichadores das cidades, por sua predileção pelos monumentos históricos como "tela". Sob esse prisma, que dizer do dinheiro público, das verbas malversadas? Como em todo começo, seja de um relacionamento pessoal seja no cumprimento de uma nova lei, o primeiro passo é a assimilação das responsabilidades que um compromisso prestes a ser assumido acarretará.
A partir daí, por algum tempo, reina o respeito absoluto às novas regras, talvez até com algum temor. Aos poucos, porém, esse respeito vai se desvanecendo; a própria convivência com as regras, antes rígidas, sofre os efeitos permissivos que essa intimidade propicia. Vem o relaxamento, no melhor sentido. Abrandam-se as tensões iniciais, atenuam-se eventuais sensações de culpa. Instala-se o conforto; primeiro estágio da tolerância e pronto: está aberto o caminho para interferências antes inadmissíveis. Então, sugestões e palpites ora auspiciosos passam a ser bem-vindos; primeiro estágio para a intromissão.
Tem início aí o relaxamento, no pior sentido. O caos começa a mostrar sua cara feia; "aquele" respeito já era. Um exemplo prático e outro trágico: nas primeiras semanas de vigência do novo Código de Trânsito, muitos motoristas pareciam bonecos de vitrine dirigindo, tantas as normas e proibições.
Hoje, grande parte dos fiscais e policiais já nem ligam se alguém está fumando com o braço para fora, enquanto fala ao celular. Apenas cumprem sua função principal ? aplicar multas e arrecadar dinheiro para o estado. Mas enquanto uns arrecadam para gastar, outros se ocupam em gastar antes de arrecadar ou gastar o que não têm. A Lei de Responsabilidade Fiscal ? que surgiu austera, firme, absoluta, olhava de cima políticos gananciosos, sequiosos, egoístas ou nada disso, chegou a feitos inéditos, como a redução substancial do salário de várias categorias políticas pelo país afora, resultado prático da simples aplicação dos princípios por ela exigidos ? hoje já mostra sinais de fadiga. Quimera logo transformada em séria candidata a lenda.
Bilhõezinhos de "estímulo"
"A Lenda ? Responsabilidade Fiscal" (perdão, foi irresistível). É que quando tudo parecia sob controle, eis que o velho e mau conhecido "jeitinho brasileiro" aparece na festa. Um escorregão pra cá, uma exceção aberta pra lá são suficientes para que passemos a acompanhar pelo noticiário as inevitáveis denúncias e acusações mútuas, já tão sobrantes em ano eleitoral.
Quem dera tais polêmicas ficassem restritas aos orçamentos municipais, como em São Paulo. Mas em ano de eleições gerais a coisa vai longe. A ferrenha austeridade fiscal vai cedendo lugar a concessões, conchavos e compromissos assumidos a priori.
E é aqui que entram em cena os veículos de comunicação de massa. Não, não chegaram atrasados à festa, apenas vêm cobrar pelos serviços prestados ou pela preparação dela. Num país onde 1/4 da totalidade das redes de TV e cerca de 70% das emissoras de rádio, onde é inimaginável o número de jornais controlados pelos próprios "donos do poder" ? refiro-me a esses mesmos que fazem e executam as leis, e cujos nomes não costumam aparecer nos expedientes nem nos contratos sociais ?, é fácil imaginar uma das razões pelas quais foi criada uma nova "retranca" para legalizar o escoamento de verbas até então represadas pela falta de um dispositivo que justificasse seu uso.
Um acordo entre o governo e o mercado publicitário, assinado agora no final de maio, dispõe que, sob a designação de "publicidade de utilidade pública", várias autarquias com verbas disponíveis não precisarão usar de quaisquer subterfúgios nem recursos especiais para "zerar" o cofre; prática habitual no Brasil, já que os poderes Executivo e Legislativo, em geral, pouco se preocupam em facilitar as gestões posteriores ? a norma vigente é o egocentrismo de quem está no poder.
"Não há de quê"
Logo, não será surpresa a veiculação de anúncios assinados pelos mais insuspeitados ministérios ou secretarias, trazendo mensagens inócuas, em página par, apenas como pretexto para o envio das respectivas faturas. Nada mau para um combalido mercado publicitário que há muito não vê contratações. Muito ao contrário. Há razões de sobra que justificam o profundo torpor em que se vê mergulhada essa classe, e os negócios nunca andaram tão em baixa. Uma verbinha governamental que assopra a ferida nessa hora é o melhor alento (ainda disponível). Mesmo aqueles jornais que não poupam editoriais agressivos e críticos ao governo federal serão contemplados, afinal, são eles os principais formadores de opinião; serão, certamente, convidados da festa. No momento presente, "manda" quem pode e "obedece" quem tem prejuízo. No entanto, essa iniciativa propõe algo inédito: preços especiais para essa modalidade de propaganda.
O governo, que parece nunca ter se sentido espoliado pelos veículos ? que quase sempre lhe cobram os preços de tabela sem qualquer negociação; ou cobra adiantado e, quando pode, com sobretaxas ?, agora parece ter "acordado". Apenas parece. A clara impressão é que o dinheiro público não pertence a ninguém mesmo, como cachorro que tem muitos donos… O dinheiro rola como se tivéssemos as mais ricas autarquias, as mais opulentas prefeituras, os mais nababescos governos estaduais e um federal "paizão" de todos, numa ilha de prosperidade onde não fariam nenhuma diferença alguns bilhõezinhos a título de "estímulo" aos negócios.
Já houve, ao menos em tese, iniciativas de unificação dos preços de tabela por alguns veículos, que nunca saíram do papel ? se é que chegaram ao próprio. De fato, seria uma enorme incoerência colocar no "mesmo saco" diferentes categorias de anunciantes, cada qual com seus interesses e finalidades intrínsecas. Se um pequeno varejista, em desespero, compra (na mídia) o que não pode pagar, em pouco tempo estará falido. Não há milagre. Nem há culpa alguma por parte das empresas que veicularam seus anúncios.
Em escala federal, porém, essa "falência" é um pouco diferente, porque nela a propaganda é apenas um dos "pesos"; café pequeno, mas lenitivo imprescindível à sobrevida de muitos veículos. Contudo, se de um lado o governo persiste na prática de comprar mal e vender o que não pode entregar, de outro, no braço de ferro entre empresas de comunicação pelas verbas públicas a ordem continua sendo a sangria dos cofres públicos ? o que mais parece alguma espécie mórbida de "vingança" ?, a longo ou mesmo médio prazo essa prática nefasta se traduzirá em (mais) um tiro nos próprios pés; primeiro (ou último?) estágio para o tiro fatal. Por essa recém-criada categoria de "publicidade de utilidade pública" o governo federal vai pagar ? nominalmente ? menos pelo espaço utilizado, e vai poder aparecer mais.
E nada mudou com relação às publicações de cunho legal ou institucional, ou seja: um dos sorvedouros da grana pública poderá continuar drenando os caixas como sempre e, a partir de agora, por mais essa "modalidade" de duas vias. Apelo a uma velha piadinha, outra irresistível citação canina: "Por que o cachorro entrou na igreja? Porque a porta estava aberta…" Em 2001, a esmagadora maioria das empresas de comunicação teve sérios prejuízos. No mercado como um todo, demissões a granel. Pelos compromissos financeiros e mesmo sociais, os donos da mídia, de joelhos, só podem agradecer a mais essa iniciativa autofágica do governo. Aos donos do poder ? e do Brasil ?, cordialmente, cabe responder: "Não há de quê!"
(*) Publicitário, São Paulo
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