LEITURAS DO JB
Gilson Caroni Filho (*)
Nenhuma foto, nenhuma manchete. Estas eram as determinações da censura militar. A tragédia chilena, mais uma no subcontinente, deveria ser noticiada sem destaque. Como um evento quase natural na saga latino-americana, o golpe liderado por Augusto Pinochet ficaria registrado da forma mais discreta possível. Quarenta e um anos de normalidade institucional teriam que cair no esquecimento. Estávamos no tristemente célebre 11 de setembro de 1973.
No dia seguinte, o Jornal do Brasil produziu a mais emblemática peça de resistência da grande imprensa nacional O fim do sonho do socialismo democrático em Santiago se transformou na mais importante primeira página do jornalismo brasileiro daquele período. Em texto escorreito e rico em detalhes, o leitor avistou o Palácio de La Moneda em chamas e, no seu interior, o corpo inerte do presidente Salvador Allende. O que a censura tanto temia aconteceu: o jornalismo pariu história em estado bruto. Nenhuma foto, nenhuma manchete. Tempos heróicos protagonizados por homens interessantes [veja, no pé, nota com a memória do episódio].
Trinta anos depois, ainda nos sobram tragédias. Países sucateados por uma devastadora política neoliberal vêem-se às voltas com taxas galopantes de desemprego e exclusão social. O poder público, acuado pela desenvoltura do crime organizado, corre o risco de perder o que o define por essência: "O Estado como detentor do monopólio da força" (Max Weber). São tempos perigosos para os conceitos de soberania e república. Dias que exigem uma nova "primeira página" para a consciência cidadã e a consolidação do processo democrático.
Vivemos o pânico generalizado. O aparato repressivo está corrompido e/ou impotente para confrontar um crime articulado além das fronteiras nacionais. Sua reprodução interna compromete um bom pedaço do tecido societário. Parte da droga que ingressa no país abastece segmentos sociais variados. O imaginário que dispensa o coletivo e cultua o imediatismo é o hospedeiro por excelência. O restante, como asseguram especialistas no assunto, segue para mercados de países ricos. Eis a novidade da patologia (no sentido dürkheimiano) que nos ameaça: o narcótico como equivalente universal. Somos o nariz e o corredor.
Sensacionalismo barato
Mudada a natureza da tragédia, qual a linha editorial a ser seguida? Quem sabe se o mesmo Jornal do Brasil, passadas três décadas, tenha preservado a fórmula que tanto o notabilizou como sinônimo de bom jornalismo? Escola destacada dos melhores quadros da nossa imprensa, o JB, que, nos anos 70 era o sonho de jovens aspirantes a um emprego em redação, ainda existe como dinâmica? Enquanto a ditadura esmagava movimentos sociais e calava os oponentes com torturas e execuções, os melhores articulistas, repórteres e editores se reuniam no antigo prédio da Avenida Brasil, 500. Excelência e tenacidade davam ótimo conteúdo a uma configuração gráfica exemplar. Note-se que não estou me referindo à empresa e a suas relações com o bloco de poder. Trato de homens. Tão singulares como interessantes. Editores que não se supunham acionistas imaginários de uma empresa familiar e repórteres pouco afeitos a um press release de conveniência.
Será possível, dentro dos novos desafios que se apresentam, dar continuidade a sua trajetória de bem informar e estimular o pensamento crítico? Formatar agendas e propor os temas do debate, agindo sempre em consonância com a boa ética jornalística? Afinal, esse era o perfil há 30 anos. Um diferencial que lhe permitia, replicando a campanha publicitária do concorrente, afiançar "que um jornal é tão bom quanto as verdades que ele diz".
A julgar pela linha administrativa adotada nos últimos anos, as perspectivas não são nem um pouco alvissareiras. A resistência, nunca esqueçamos, requer qualificação, embasamento histórico e consciência política acurada. Editorias esvaziadas por falta de pessoal e poucas sucursais produzem uma cobertura muito aquém da solicitada pelo leitor mediano. Os bons articulistas que ficaram convivem com profissionais desmotivados e outros tantos despreparados. Parece se avizinhar um fim melancólico.
Talvez a edição de 9 de maio de 2003 seja por demais exemplar para ser ignorada. Nela podemos constatar a "primeira página" dos novos tempos. Descompromissada com o rigor informativo, deliberadamente manipulatória e, acima de tudo, comprometida com o sensacionalismo barato. Nada mais incompatível com a tradição a que vínhamos aludindo ao longo deste pequeno artigo.
Repetição como farsa
Na dobra superior há uma foto com guardas municipais em confronto com camelôs. Logo abaixo, outra foto, menor, mostra a governadora do Rio reunida com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tendo ao fundo o secretário de Segurança, Anthony Garotinho, e o secretário nacional de Segurança Pública, Luís Eduardo Soares. Eis a legenda entre as duas fotos: "Rindo de quê?: Bombas explodem na Av. Rio Branco na hora de maior movimento no Centro. No Palácio Guanabara, a governadora Rosinha e o secretário de Segurança, Garotinho, sorriem alegremente em reunião com o ministro da Justiça".
Ora, ou o JB confunde competências ou está claramente tentando predispor o leitor contra as autoridades. Ainda mais se levarmos em conta que o dia foi pródigo em boatos e escolas fechadas. Não foi para discutir o combate ao comércio informal que o ministro da Justiça e a governadora se reuniram. Os tumultos no centro da cidade, do ponto de vista legal, envolviam forças municipais. Qual o propósito da omissão? Incompetência ou motivação política? Quem ria de quem?
Quando lemos o texto que motivou a chamada de primeira página, as "bombas" se transformam em pedras, morteiros e rojões, e o que provocou a ira do editor se revela desproporcional ao fato concreto. Senão, vejamos:
"[Rua] Sete de Setembro [no centro da cidade], onde desde segunda-feira a Guarda Municipal adotou um patrulhamento fixo com 15 agentes para reprimir a presença de ambulantes. Cerca de 20 camelôs investiram contra os guardas, munidos de pedras e morteiros. Alguns acusaram os guardas de terem agredido o camelô Hélder da Silva Gomes, levado para o Hospital Souza Aguiar com ferimentos na cabeça.
A batalha se estendeu pelas ruas do Centro. O grupo de camelôs passou a fustigar os guardas e fugir rapidamente, repetindo a tática por diversas vezes. Na Rua do Ouvidor, muitos se escondiam atrás de bancas de jornal para iniciar novas investidas contra os agentes. Os guardas buscavam proteção contra pedras e rojões e tentavam organizar o contra-ataque."
Duas fotos, diversas chamadas. Estas eram as determinações editoriais. A tragédia carioca, mais uma entre tantas, deveria ser registrada de forma sensacionalista sem qualquer elo de coerência com os fatos noticiados. Como um evento de claro apelo mercadológico. Estávamos no tristemente célebre 9 de maio de 2003. Dia em que o JB mostrou o que para muitos já era evidente há tempos: sua alma, tal como sua notória primeira página, ficou em algum lugar do passado. O que está nas bancas insiste em se repetir como farsa.
(*) Professor-titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro
N. da R.: Na noite de 11 de setembro de 1973, a edição do JB do dia seguinte estava fechada quando o então editor-chefe Alberto Dines recebeu em casa, passadas as 22h30, um telefonema da redação informando que o jornal estava proibido de dar em manchete a notícia do golpe no Chile. Dines mandou interromper a produção, voltou à redação e desenhou uma nova capa, com quatro colunas de texto em medida falsa, compostas em corpo 18. O jornal era composto em linotipos. Para um tamanho de letra maior do que 18 deveriam ser usadas as tituleiras Ludlow ? com o inconveniente de as linhas precisarem ser fundidas uma a uma, o que atrasaria muito a impressão. Malgrado a proibição da censura, a edição do jornal circulou com a notícia do golpe e do assassinato de Salvador Allende em destaque. Um destaque surdo: impacto sem manchete, sem títulos, sem fotos. Uma capa entre as melhores. (L.E.).