TERRORISMO FINANCEIRO
Ulisses Capozzoli (*)
A menos de cinco meses da realização da Rio+10, em Joanesburgo, na África do Sul, e na reta de definição do próximo governo no Brasil, bancos estrangeiros agitam artificialmente o mercado anunciando uma "perigosa" vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
À primeira vista pode parecer que há pouca ou nenhuma relação entre os fatos. A verdade é que existe uma ligação direta e, se esta não for discutida, passará com as perdas de sempre, que são muitas para serem contabilizadas num texto breve, no espaço e no tempo.
Em Joanesburgo, como aconteceu no Rio, dez anos atrás, os representantes de países ricos virão com a ladainha de sempre sobre a pobreza, como se esta condição fosse uma escolha macabra dos países, não pobres ? porque o Brasil não é exatamente um país pobre ?, mas subdesenvolvidos.
Economistas engendraram muitas formas de medir o subdesenvolvimento: o consumo de energia, a renda per capita, a taxa de analfabetismo etc. A verdade, como escreveu Celso Furtado mais de uma vez, é que se trata de uma mentalidade. Uma mentalidade arcaica de classes dirigentes incapazes de um projeto nacional voltado para a maioria da sociedade, preocupadas apenas em manter seus privilégios, a qualquer custo. No caso do Brasil, mentalidade essa fortemente ligada a uma memória escravista. A família Sarney, no Maranhão, é o exemplo mais recente desse quadro desolador de um coronelismo que definha, mas não está morto. O uso da secretaria estadual de Ciência e Tecnologia como refúgio legal a Jorge Murad, o poderoso primeiro-marido do Maranhão, não deixa de ser sintomático, no sentido freudiano da expressão.
O terrorismo dos bancos ? trata-se de terrorismo financeiro ? foi registrado pela imprensa de forma desigual. A imprensa mais conservadora, a pretexto de refutar a especulação, na verdade abriu manchetes de página onde a oligarquia velha de 500 anos desfia suas lamúrias e temores. Falamos o tempo inteiro de democracia, mas no momento de ela ser levada à prática, são outros quinhentos.
Iminência do caos
Democracia e ambiente são condições inseparáveis. Numa democracia de verdade, os cidadãos têm oportunidade de realizar suas potencialidades. Com trabalho, dedicação e persistência, têm chance de realizar seus desejos, quase sempre modestos: uma casa para abrigar a família, alimentos e roupas decentes, um mínimo de assistência social e a obrigação e orgulho de arcar com os custos sociais sob a forma de impostos.
Quando o terrorismo financeiro ameaça frustrar o desejo democrático de escolha da sociedade, por meio de chantagem e ameaças veladas, toda uma possibilidade de reequilíbrio, como a estabilização do solo após um sismo (ao menos até que um outro sismo se manifeste) fica indefinidamente adiada. Uma tensão enorme se acumula e tende a ser liberada sob forma de violência. Violência social.
Desmatamento incontido, desemprego assustador, poluição do solo, ar e água, criminalidade em alta vertiginosa, corrupção desenfreada, são todos sintomas de desagregação, nos quais o homem é parte de um complexo ecossistema natural-social. Ao soprar as trombetas de um pretenso juízo final, a especulação financeira atinge seus objetivos: elevar as taxas de lucro rapidamente. Sair às pressas como um ladrão com o saco às costas e, depois, retornar de manso e esperar uma nova oportunidade de fazer tudo outra vez.
Se a imprensa conservadora tivesse um pouco mais de tino e compromisso social, em vez de fidelidade canina a preceitos que já nem fazem mais sentido, poderia lembrar-se, por exemplo, da França. Não da ameaça de ultra-direita representada por Jean-Marie Le Pen. Mas da França à época da eleição do socialista François Mitterrand, quando também se anunciou a iminência do caos. Mitterrand não foi nenhuma ameaça e, de quebra, estabeleceu barreiras mal dissimuladas à imigração. Brasileiros, por exemplo, passaram a necessitar de vistos para entrar na França de tão decantada liberdade social [a exigência só terminou quando da formalização da União Européia].
Além fronteiras
Há duas semanas, especialistas em direito ambiental do Brasil e América Latina escreveram a Carta do Rio, documento com recomendações para preservação ambiental que será apresentado em Joanesburgo, no encontro que oficialmente tem o nome de Conferência de Desenvolvimento Sustentável Rio+10.
O documento é um conjunto de propostas e condições indispensáveis para a construção da cidadania no sentido de um desenvolvimento sustentável , o que significa dizer, sem comprometer os recursos naturais para as gerações futuras e atendendo minimamente as necessidades atuais. São condições que, em muitos casos, demandam investimentos sociais, como a garantia no abastecimento de água de boa qualidade, tratamento adequado dos esgotos e do lixo etc.
Recursos sociais para essas finalidades, no entanto, tendem a ser drenados para fora sob ação do terrorismo financeiro. Sob pressão internacional é preciso registrar superávits. Os impostos, já nas nuvens, tendem a aumentar. Mas eles também têm seus limites. A imprensa conservadora, que esbraveja contra outras formas convencionais de atentados, não se manifesta à altura contra essas formas mais sutis de terrorismo. Aceita o jogo perverso e, dessa maneira, alia-se ao terror.
A certa altura da crise argentina, que parece não ter fim, porta-voz qualificado do governo George W. Bush anunciou que "marceneiros e encanadores norte-americanos" não deveriam cobrir os custos do desastre argentino. Como assim? Para onde foi a riqueza argentina? Como na termodinâmica, também na economia, a energia não pode ser criada nem destruída. Pode ser transformada. No caso argentino, o mais provável é que marceneiros e encanadores, não por suas qualificações profissionais, mas como investidores do mercado financeiro internacional, tenham embolsado parte do que saiu da Argentina. Sem falar da corrupção interna e externa que drena recursos sociais como um buraco negro cósmico.
Vivemos num mundo de muitos discursos. Cada um deles adaptado a uma necessidade e conveniência. Daí uma enorme incompreensão, fonte de angústia e insegurança. Qual o custo social desse estresse que ninguém mensura? Se ninguém mensura, ninguém sabe ao certo. Mas, à vista desarmada, sabe-se que não é pequeno.
Debater uma nova relação internacional envolvendo recursos naturais e preservação ambiental poderia ser um começo de caminho. Mesmo com recusas arrogantes, como a insistência dos Estados Unidos em acatar o Protocolo de Kyoto para amenizar o efeito-estufa. O desastre ambiental que se anuncia não vai obedecer fronteiras geopolíticas. Mas as modelagens feitas até agora são praticamente unânimes em admitir que os países subdesenvolvidos, mais uma vez, arcarão com a parte mais pesada de todas as perdas.
Para ter alguma perspectiva de futuro, mais que em outros momentos agora há uma profunda necessidade de democracia. E a imprensa conservadora precisa entender que, mesmo cultuando suas preferências, não pode deixar de reconhecer que a dimensão dos problemas contemporâneos exige um pouco mais de comprometimento social.
(*) Mestre em ciências pela USP, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor de Scientific American Brasil