MEMÓRIA / PAULO EMÍLIO SALLES GOMES
"Uma Paixão Radical", copyright Carta Capital, 11/09/02
"Ao chegar à cinemateca de São Paulo, na quarta-feira 4, para dar largada à bateria de palestras que pretendem retomar o pensamento do maior crítico de cinema do Brasil, Lygia Fagundes Telles perdeu o traquejo. Viúva de Paulo Emílio Salles Gomes, a escritora reencontrou, naquele lugar cheio de filmes e histórias, todo o ideário do antigo companheiro. ?Acho que não vou conseguir falar. Fiquei muito emocionada ao ver a nova biblioteca e o Centro de Documentação deste prédio que tantas lembranças abriga. Deixamos muitas raízes aqui.?
A inauguração desses dois espaços marca o início do evento Atualidade Paulo Emílio, que, até o dia 15, relembra os 25 anos de sua morte com debates de primeira e com a exibição de vários filmes por ele admirados. Intelectual no sentido mais amplo do termo, Paulo Emílio consagrou um modo de pensar o cinema brasileiro que é definidor de todo o exercício crítico atual e cuidou das primeiras latas de filmes que viriam a compor a Cinemateca, hoje instalada no antigo Matadouro Municipal, na Vila Clementino.
?Quando criamos isto aqui, chovia muito em São Paulo e éramos muito pobres?, lembra Lygia, à época incumbida da missão de recolher os tostões que tornariam real o acervo sonhado. Paulo Emílio achava que, por ser uma escritora famosa, ela teria mais moral com os empresários e governantes. ?Um dia, pedi até para o Maluf, que logo perguntou: ?Só isso?? E então eu disse: ?Se quiser dar um pouquinho mais…? E ele deu?, descreve, com uma sonora gargalhada.
Nesse relato de Lygia está contido muito do espírito que alçou o cinema nacional, no início dos anos 60, ao posto de instrumento de conhecimento do País e de sua história. E Paulo Emílio, mais do que qualquer outra pessoa, encarna esse compromisso cinematográfico que tem muito de aventura e muito de paixão.
?Ele era um grande pensador. Mas era também um apaixonado, alguém com uma incrível vontade de fazer as coisas darem certo?, define Rudá de Andrade, filho de Oswald e outro dos pioneiros da Cinemateca. É o resgate dessa vida inquieta e profícua a principal marca da atual onda Paulo Emílio.
Seus livros – cujos direitos pertencem a Gofredo Telles, filho de Lygia – serão todos reeditados e sua história virou livro. Em Paulo Emílio no Paraíso (Editora Record, 504 págs., R$ 50), que será lançado no fim do mês, o pesquisador José Inácio de Melo Souza disseca suas facetas política, intelectual e de homem de cinema. Lygia, freqüentemente procurada para falar sobre o antigo companheiro, já criou até um bordão. ?Quer conhecer o Paulo? Leia a biografia! Espero que a partir de agora ninguém mais o retrate por minhas palavras desordenadas.?
Fruto de dez anos de pesquisas, o livro de Melo Souza baseia-se em 60 depoimentos colhidos no Brasil e na Europa e numa montanha de documentos preservados graças à mania de guardar papéis de Paulo Emílio. O autor, logo na introdução, declara que seu principal objetivo é fazer o crítico ?falar para o presente? e mostrar sua trajetória política e intelectual. Por isso, reserva pouquíssimo espaço para desventuras amorosas ou historietas particulares desse paulistano, filho de um médico sanitarista, nascido no bairro de Higienópolis em 1916.
Tanto é assim que as primeiras 300 páginas narram, basicamente, o vaivém político do intelectual que se sabia de esquerda, mas não queria nem o stalinismo nem o trotskismo. A história começa na década de 30, quando Paulo Emílio conclui o ginásio do Liceu Nacional Rio Branco e, mal começa o curso preparatório para o vestibular de Medicina, se mete numa intensa atividade política. Envolve-se de tal modo com esse jogo que dá de ombros ao estetoscópio e passa a militar na Juventude Comunista.
?Ele esteve na linha de frente de todas as lutas da estudantada em 1934 e 1935, criou movimentos, integrou a Aliança Nacional Libertadora, afastou-se da política partidária e fez inimigos políticos entre os comunistas?, descreve Melo Souza. Foram tantas atividades – incluindo artigos para o jornal A Platéia e a criação da revista Movimento com o amigo Décio de Almeida Prado – que, em dezembro de 1935, virou preso político na cadeia do Paraíso, em São Paulo, e só se viu livre das grades em 1937, escapando por um túnel. Depois da fuga, pegou um navio para Paris e lá ficou até 1939.
No retorno ao Brasil, estava mais politizado ainda: deu início à segunda fase da militância e ingressou na Faculdade de Filosofia da USP, onde revigorou o grêmio e fez a cabeça de muitos jovens, dentre eles Antonio Candido. ?Ele mostrou a importância de uma esquerda independente e, com uma liderança carismática, me fez seu discípulo?, relembra Candido, o mais importante crítico literário do País. ?Sou o último sobrevivente daquela turma, mas uma coisa posso falar por todos nós: sem Paulo, nossa geração não teria sido a mesma.?
No entanto, o percurso singular e o discurso que fugia ao padrão da esquerda não foram suficientes para mantê-lo na política. Desencantado com o ressurgimento do integralismo, partiu para a segunda estada na França em 1946 e só retornou oito anos depois. Nessa época, foi fisgado de vez pelo cinema. Em Paris, seguiu cursos no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), virou rato da Cinemateca Francesa e amigo de seu fundador, Henri Langlois, escreveu o livro responsável pela redescoberta do cineasta Jean Vigo na Europa e aderiu de vez à cinefilia.
?Sua dedicação ao cinema tem algo de missão?, constata Melo Souza. De fato, ao voltar para o Brasil em 1954, carregava na mala a tradição do cineclubismo, o faro para a pesquisa e a crítica refinada. Mal chegou, juntou-se a Alfredo Mesquita, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido na revista Clima e lá deu nova forma ao ensaio cinematográfico.
Em seguida, tornou-se conservador da filmoteca do MAM (SP) e assumiu a página de cinema no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, onde brigou pela liberação de filmes como Os Amantes, de Louis Malle, e encampou as tendências de vanguarda da Nouvelle Vague e do Cinema Novo.
Ainda na primeira metade da década de 60, decolou também na carreira universitária. Convidado por Darcy Ribeiro, começou a organizar o curso de Cinema da Universidade de Brasília, mas acabou brecado pelo golpe militar. Pouco tempo depois, tornou-se professor de Teoria Literária na USP e, de lá, saltou para a Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade, onde instituiu uma linha teórica até hoje desmembrada pelos grandes nomes do pensamento cinematográfico atual, como Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet.
Ao mesmo tempo que tirou os espectadores de cinema da mera condição de fãs de estrelas para introduzi-los na cultura dos cinéfilos, Paulo Emílio foi desenvolvendo uma defesa radical do cinema brasileiro e, nos anos 70, passou a ser tachado de jacobino ao defender a idéia de que qualquer filme brasileiro é melhor do que um estrangeiro. ?Essa postura incendiária causou muito espanto entre a intelectualidade porque sua defesa do cinema brasileiro englobava a pornochanchada e Mazzaropi?, observa seu biógrafo.
Ao lado da atividade de crítico e ensaísta, ele arriscou também uma participação como ator na pele de um delegado em Gimba – o Presidente dos Valentes, de Flávio Rangel, e fez alguns roteiros, como o de Capitu, desenvolvido em parceria com Lygia. Mas foi só em 1977, pouco antes de morrer de ataque cardíaco fulminante, que colocou a verve a serviço da ficção. Em Três Mulheres de Três PPPês, Paulo Emílio deliciou-se com os encontros e desencontros amorosos dos únicos personagens que inventara.
No livro Durante Aquele Estranho Chá, Lygia retrata bem o que significou o romance para Paulo Emílio. Chamando-a pelo apelido de Kuko – dar apelidos às pessoas era uma mania incorrigível -, ele disse: ?Mas, Kuko, por que você não me avisou que escrever ficção é essa coisa maravilhosa? Ah, agora só quero inventar histórias, só inventar histórias?. Histórias, inventou apenas as dos três contos desse livro. Mas reinventou o modo de olhar o cinema brasileiro. E agora, graças aos novos debates e à completa biografia, mais e mais gente poderá partilhar de suas aventuras intelectuais e descobrir que um filme nem sempre é só um filme."
MEMÓRIA / JULIO MESQUITA
"Julio Mesquita narra o dia-a-dia da 1.? Guerra", copyright O Estado de S. Paulo, 15/09/02
"Quando a segunda torre do World Trade Center foi atingida por um avião, em 11 de setembro do ano passado, as redes de TV de todo o mundo transmitiam ao vivo. A notícia estava à vista de milhões de espectadores por todo o planeta. Quando estourou a Grande Guerra (1914-1918), eram os jornais que informavam sobre os acontecimentos.
Neste marco do começo do século 20, as notícias da guerra na Europa chegavam ao Brasil por meio de telegramas e também de publicações que cruzavam o Atlântico de navio, num volume de informações inimaginavelmente pequeno para quem vive no começo do século 21. Quando a guerra estourou, o desafio de informar e explicar a guerra aos leitores do jornal O Estado de S. Paulo foi assumido por seu proprietário e diretor, Julio Mesquita.
Praticamente todas as segundas-feiras, por mais de quatro anos, ele publicava os principais telegramas recebidos pelo jornal e também textos seus não apenas informando sobre o desenrolar do conflito, como também analisando suas causas e conseqüências. Sabia que os dados de que dispunha eram parciais, mas não se furtava de utilizá-los criticamente: em 1915, por exemplo, escreveu: ?As notícias de Berlim só nos falam de vitórias dos alemães. As de Paris e Londres, não raro se referem a reveses dos Aliados.?
Explica, mais adiante, sem esconder sua preferência pelos aliados, que de Berlim só se recebe propaganda e que prefere as notícias da França e da Inglaterra porque elas não chegam a perder ?o seu caráter de informação, que é o que procuram os jornais como o nosso?.
Essa cobertura da guerra que deu sentido novo à palavra massacre (8 milhões de pessoas morreram, 21 milhões ficaram mutiladas e 65 milhões de homens foram mobilizados) vai ganhar, em novembro, uma reedição, na forma de livro, em quatro volumes, CD-ROM e site na internet. O projeto do Estado vale-se da Lei Rouanet e conta com participação da Camargo Corrêa, do Itaú, da Petrobras e da da Unip (Universidade Paulista). Parte significativa dos exemplares serão doados a bibliotecas e instituições de ensino, mas também será possível comprá-los nas livrarias. A obra, que contou em sua organização com a participação dos jornalistas Fernando Portela e José Alfredo Vidigal Pontes (o projeto gráfico é de Diana Mindlin), será publicada pela editora Terceiro Nome. A edição-executiva ficou a cargo de Mary Lou Paris. O jornalista Napoleão Sabóia assina um texto sobre a evolução da fotografia durante o período (os volumes são fartamente ilustrados com fotos, desenhos e mapas), e Jorge Caldeira, sobre o papel de Julio Mesquita na história do jornalismo brasileiro. Mais detalhes do projeto já estão disponíveis nos sites www.estadao.com.br e www.igler.com.br.
A edição desse material, na verdade, retoma o projeto de amigos de Julio Mesquita, que chegaram a publicar o primeiro volume de A Guerra – 1914-18.
Julio Mesquita não consentia em sua publicação. Os ?companheiros de redação?, não obstante, o fizeram às escondidas do patrão, e escreveram, num prefácio: ?Um escrúpulo também lhes salteou o espírito: o autor dos artigos não consentindo, como não consentiu nessa publicação projetada, não se lhe podia pedir que fizesse a revisão dos boletins emendando os equívocos e enganos que naturalmente hão de ter. Sem esse trabalho prévio, a publicação não ficaria desmerecida? Assentaram afinal que melhor seria levá-la a cabo mesmo com esse risco do que deixá-la em aspiração, que nunca se viria a realizar.? Os volumes seguintes não foram editados, devido à resistência de Julio Mesquita.
?A idéia de publicarmos seus relatos e comentários sobre a 1.? Guerra, cobrindo quatro anos e alguns meses de trabalho, surgiu no momento em que iniciamos a pesquisa para a edição de um livro sobre a história do jornal O Estado de S. Paulo. É um material que não poderia continuar nos nossos arquivos, inédito diante da História. Tinha mesmo de ser divulgado?, escreve, em nota que integrará o primeiro volume, Ruy Mesquita Filho, diretor do Jornal da Tarde, editor da obra e responsável pela iniciativa de lançá-la agora. Na sua opinião, o livro narra ?a história do dia-a-dia da 1.? Guerra Mundial, vista por um jornal brasileiro?.
Julio Mesquita sabia que suas fontes eram precárias e explicou que evitava os pormenores táticos e estratégicos – que nem os melhores especialistas estavam conseguindo destrinchar: era uma guerra, pela violência e pela técnica, absolutamente nova na trajetória da humanidade. Por isso, trata especialmente dos aspectos gerais do conflito. Chega a discutir a importância de avanços tecnológicos, como o uso de submarinos, aviões e gases na guerra, sem abandonar questões econômicas e políticas (comenta ainda, dois anos antes da revolução russa, a crise social que o país vivia).
Mas não esquece que a distância atrapalhava no detalhe – o que talvez não percebesse é que o ajudava na observação do todo. Cada um dos volumes trará um texto do historiador e militar Fortunato Pastore, que situa os conflitos narrados por Julio Mesquita e corrige eventuais erros cometidos na cobertura a quente.
O correspondente do Estado em Paris, Gilles Lapouge, afirma no prefácio da obra que a leitura dos textos de Julio Mesquita, ?um jornalista brasileiro, tão longe da França?, revelaram uma nova Grande Guerra para ele, descendente de combatentes, como praticamente todos os franceses: ?A ?minha? guerra de 14-18, que eu acreditava inerte e petrificada para todo o sempre, revivia.
Em vez de ficar ajuizadamente quieta em um canto da memória, ela se agitava, me acenava. Seu estilo, sua figura, seus segredos, sua parte desconhecida, seu incognoscível, tudo, de súbito, mudava de cor.?"
CASSETAS & CHICO ANYSIO
"Dez anos depois, Chico Anysio se reconcilia com os cassetas", copyright Folha de S. Paulo, 15/09/02
"Deixando as mágoas para trás, o pessoal do Casseta & Planeta e o humorista Chico Anysio se reconciliaram na última terça-feira, quando os personagens Bozó e Alberto Roberto contracenaram com Reinaldo, Hélio de La Peña e Maria Paula. As cenas deverão ir ao ar depois de amanhã e põem fim às rusgas surgidas há cerca de dez anos, quando os cassetas iniciavam a carreira na TV e foram duramente criticados por Chico.
?O Chico nos soltou algumas farpas, mas a personalidade dele é assim mesmo, não foi uma exclusividade nossa?, diz o casseta Cláudio Manoel, que teve a iniciativa de convidar o veterano humorista para uma participação especial. ?Sua participação tem essa coisa legal de causar um ruído. Agora que o programa completa dez anos, é interessante receber um convidado que não teria espaço há algum tempo atrás porque não gostava muito da gente?, afirma Manoel. Os próprios cassetas escreveram as falas de Chico Anysio como Bozó e Alberto Roberto. No caso deste último, o quadro faz uma pequena alusão à antiga desavença. ?O cara [Chico? é uma lenda na TV brasileira, dispensa elogios, todo mundo sabe. Ele marcou a história do humorismo no Brasil com tipos absolutamente geniais, que orgulhariam qualquer criador de humor?, enaltece Manoel, que interpreta o marombeiro Massaranduba e ?seu? Creysson. Chico afirma ter ficado satisfeito com o resultado e elogia o trabalho de redação dos cassetas. Segundo ele, também em termos de representação dramática -a principal crítica feita por ele aos cassetas no passado-, o grupo evoluiu bastante. ?Não há como comparar o trabalho de hoje com o do começo. Eles não eram atores, se escoravam num texto muito bom, e assim vieram. Hoje já sabem como a coisa deve ser feita. Já sabem compor um tipo sem escorregões?, avalia Chico Anysio. O humorista diz, no entanto, que nunca teve qualquer desavença com os cassetas: ?Isso é lenda. Eu sempre gostei do humor deles, e sempre fui seu leitor no tempo da revista?. Cláudio Manoel concorda em parte, dizendo que realmente não havia um clima pessoal, porque não existia convívio para isto. ?Foi meio um disse-que-disse. Mas foi bom para gerar reportagens.?
?Cara justo?
Apontado como artista polêmico, Chico Anysio já entrou em desacordo com alguns colegas de profissão. H&aaacute; dois anos, chegou a irritar a direção da Rede Globo ao disparar críticas severas à condução da emissora. ?Minha personalidade não é polêmica. Eu sou um cara justo, luto por mais empregos para meus colegas comediantes, por mais programas de humor, e por um respeito maior aos que pertencem a essa classe?, afirma Chico.
Ele se diz discriminado. ?O fato de eu atuar na televisão faz com que se cometa a barbaridade de editarem um livro, ?Cem Melhores Contos Brasileiros? (Ed. Objetiva), e não incluírem nenhum meu. Minhas músicas são quase renegadas, minha pintura é desqualificada, meus comentários de futebol são considerados idiotas, minhas poesias nem chegam a ser lidas…?, reclama.
Atualmente, Chico está envolvido na elaboração de novos programas que pretende apresentar à emissora. ?Neste ano, já entreguei 11, e espero, até dezembro, entregar mais quatro. O aproveitamento ou não dos projetos, e nem todos são para mim, depende da TV Globo?, diz."