ENTREVISTA / PERY COTTA
Marinilda Carvalho
"Mídia e Sociedade – aproximações e afastamentos. Um estudo sobre o jornalismo reflexivo", de Pery Cotta, tese de doutoramento apresentada em 17/12/2001 ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ)
Mitos não têm lugar nem hora para cair, e alguns deles ? como o de que jornalismo é verdade e objetividade ? foram abatidos em 17 de dezembro na Escola de Jornalismo da UFRJ, onde a tese de doutorado do jornalista Pery Cotta (também advogado, publicitário e professor de Jornalismo) foi aprovada por unanimidade pela banca examinadora, formada por cinco professores-doutores de quatro ramos diferentes do saber: a orientadora Ester Kosovski (Direito), Muniz Sodré e Humberto Marini (Comunicação), Márcio Tavares D?Amaral (Letras) e Dráuzio Gonzaga (Filosofia).
Com 557 páginas (fora anexos e tabulações de pesquisa), a tese "Mídia e Sociedade – aproximações e afastamentos. Um estudo sobre o jornalismo reflexivo" parte da premissa de que a mídia, principalmente a partir dos anos 90, tem afrouxado os laços e os compromissos sociais, para submeter-se a injunções neoliberais, de predominante influência externa. O autor afirma que a mídia é "co-autora obediente de um acelerado, avassalador e compulsório processo global de mudanças".
A tese é uma rica fonte de referências teóricas sobre m&iaiacute;dia, sociedade e mitos, além de dados históricos. Só a bibliografia tem 24 páginas. Contém ainda um útil apanhado da legislação que rege as atividades de imprensa. Mas seu ponto alto é mesmo a derrubada dos velhos mitos criados na própria mídia e alimentados por gerações de jovens repórteres que perseguem o sonho do jornalismo romântico. Retira o status de mitos novos também, entre eles o da internet como mídia perfeita e universal: para Pery, isso só acontecerá quando for possível identificar de quem é o dedo que gerou a notícia digital e com que interesse.
Hoje com 62 anos, Pery pisou pela primeira vez numa redação antes dos 16, e ao longo de mais de três décadas perseguiu a verdade e a objetividade como ninguém: em 1968, por exemplo, no Correio da Manhã, denunciou às vésperas do AI-5 o Caso Para-Sar, em que radicais da ditadura planejavam lançar os "subversivos" ao mar; em 1982, na Rádio Jornal do Brasil, expôs o Caso Proconsult, tentativa de fraude contra o candidato Leonel Brizola nas primeiras eleições diretas para governador do Rio. Dois furos antológicos na história do jornalismo brasileiro.
Para Pery, os repórteres têm os pés amarrados numa pauta com objetivos, interesses e compromissos nem sempre jornalísticos. "O olho do jornalista, antes de tudo, é um olho treinado", diz. Trata-se de um "ledo engano" a idéia de que a percepção do jornalismo é "aparentemente passiva, imparcial mesmo, totalmente objetiva e necessariamente desapaixonada das coisas, além de livre das emoções humanas". O autor afirma que, no caso brasileiro, as empresas jornalísticas são cada vez mais empreendimentos capitalistas neoliberais e, cada vez menos, jornalísticas no sentido de uma preocupação em servir à sociedade. Resulta uma imprensa distante, afastada dos interesses do público.
"Procuram apenas priorizar a velocidade da informação, deixando de lado qualquer reflexão a respeito das grandes questões sociais", diz Pery em sua tese. Inclusive "a do engajamento da mídia a um processo imperial globalizante, vindo de fora, agindo sobre a sociedade". Pery não hesita em declarar: "Mídia e Estado/Governo submeteram-se demais aos interesses empresariais de uma política econômica e financeira ditada de fora." Por isto, conclui, no Brasil, mídia e sociedade mantêm uma relação desigual.
Pery é há muito conhecido por suas convicções, mas resolveu sentir a temperatura externa. Numa pesquisa inédita que compõe ? em sua opinião ? o "melhor da tese", enviou 160 questionários, com 41 perguntas, a jornalistas e teóricos da comunicação. Cinqüenta e seis profissionais responderam (a íntegra dos comentários está na tese, que pode ser baixada nesta seção), num mosaico de opiniões que surpreenderam Pery pela sinceridade. E pelo denominador comum: poucos acreditam no mito de um jornalismo impulsionado pela busca da verdade e da imparcialidade. Para a maioria, vigora a manipulação política, ideológica e financeira da informação.
O autor concorda: não há imparcialidade, nem esta é a questão principal. "Não há nada demais em ter esta ou aquela posição política, ideológica, religiosa etc. Péssimo é quando se esconde isto, fingindo uma imparcialidade impossível diante de tantos interesses em jogo." Para Pery, o jornalista pode e deve no entanto buscar as versões sobre cada fato, porque há pelo menos duas à disposição: a dele e a da fonte. No interesse público, é preciso mostrar as muitas maneiras de olhar. "Melhor seria, igualmente, que os veículos da mídia, a cada momento, reafirmassem e clarificassem as suas posições."
Mas Pery é otimista. "A mídia não é o demônio que se pinta, nem o anjo que inadvertidamente alguns ainda podem imaginar, mas – anjo ou demônio – cumpre papel fundamental no mundo contemporâneo." Pela aberta exposição dos fatos e as múltiplas versões que deles apresenta, o jornalismo é ainda a melhor prática diária da liberdade de expressão e manifestação do pensamento, e por isso é o melhor exercício de democracia e principal garantia dos direitos humanos, em qualquer sociedade. "A democracia brasileira está precisando demais de boas práticas da imprensa."
Sua entrevista ao Observatório da Imprensa:
Vemos nas cartas de leitores dos jornais freqüentes explosões de desagrado, com cancelamento de assinatura porque o veículo não atende mais a seus interesses. Há um público-leitor órfão do bom jornalismo?
Pery Cotta ? Se você olhar para o boom do segmento de revistas a partir dos anos 80 e o crescimento recente de veículos, novos títulos e empreendimentos, tanto na mídia impressa como na mídia eletrônica (rádios FM e comunitárias, TVs por assinatura dedicadas ao jornalismo), fica fácil concluir que há busca constante pela boa informação. Resultado, também, dos degraus acima na escolarização. É um percentual ainda pequeno, na sociedade como um todo, que não está mais tão dependente nem preocupada com a linha editorial do veículo. Portanto, que muda quando quer. Por exemplo, na internet você constrói um jornal seu, tirando matérias de vários sites. Este é, como você diz, um público-leitor órfão de bom jornalismo. Inclusive porque a mídia, por razões diversas, ficou muito “chapa-branca”, diário oficial de segunda mão. Isto não é exatamente o que o leitor esclarecido procura, em um momento em que, mais do que nunca, informação é poder.
Nas conclusões, você diz que "a reflexão proposta não seria atribuição exclusiva dos jornalistas e dos meios de comunicação", e sim de toda a sociedade. Você considera passivo o público brasileiro consumidor de mídia, por não cobrar de seus veículos o "jornalismo reflexivo"? O que a sociedade pode realmente fazer para exigir uma mídia mais conectada a seus interesses?
P.C. ? Não há passividade. Há falta de cultura, de educação e de ensino, em uma sociedade na qual apenas uma elite mínima consegue chegar à universidade. Dos que têm cultura, poucos lutam para ampliar o grau de informação do restante da sociedade. Os jornalistas, no caso, são os verdadeiros heróis desta tarefa infindável.
Acho que a passividade está nas universidades, principalmente nas públicas. Por isto, o Brasil há muito tempo não tem um projeto nacional, vive a reboque de interesses externos. Esqueceram-se do ensinamento de Paulo Freire de que a universidade, por ser universal e multiplicação do conhecimento, é quem deve trazer o mundo para a sala de aula e a sala de aula (o saber elaborado após a visão do mundo) para a sociedade. Se os nossos problemas forem discutidos pelos diversos especialistas e as propostas de solução ficarem acessíveis ao público, o Brasil terá afinal um horizonte.
E a mídia teria de refletir sobre esta nova realidade, caminhando junto com a sociedade. Ou, então, não teria mais público. Aliás, apesar do espetacular nível tecnológico da mídia brasileira, cada vez mais os veículos (principalmente os impressos) têm menos público. E, ao que se saiba, a população cresce e somos algumas argentinas. Sem a reflexão sobre os problemas locais que o nível cultural de lá está permitindo.
"Esqueceu-se, na mídia, de um princípio fundamental do jornalismo, principalmente do jornalismo reflexivo", diz o texto. O Brasil tem uma revista semanal que pratica o "jornalismo reflexivo", mas essas "reflexões" favorecem sempre o governo tucano e as práticas neoliberais ? ou seja, a elite. O jornalismo reflexivo é sempre necessário, não importando sua ideologia? Cada veículo deve "refletir" segundo seu público? Você considera que nossa mídia é variada o suficiente, representando os vários públicos da sociedade brasileira?
P.C. ? As revistas não fazem reflexões sobre os temas. Apenas costuram, às vezes mal, os assuntos divulgados e repetidos pelas rádios, TVs e pelos jornais. São apenas uma revisão dos mesmos assuntos, sob idêntica ótica. Muda apenas o ângulo de ver, neste igual e dirigido modo de ver. Com belas exceções, como o colunismo tipo Jânio de Freitas e revistas como Caros Amigos.
Alguns jornalistas acham melhor que os jornais não façam mesmo reflexões sobre as grandes questões nacionais, pela atual posição ideológica deles. Refletir é pensar. Como pensar pode fazer mal? Hoje, vale mais do que o ar que respiramos. É a chance de sobrevivência como ser humano. Não ligo para ideologias, porque aprendi que idéias se combatem com idéias. Ao contrário, cobro esta reflexão porque, assim, poderíamos conhecer melhor os veículos. Principalmente aqueles que são uma coisa no noticiário e outra, bem diferente, no editorial.
Não há mal algum, também, que um jornal seja desta ou daquela linha ideológica. O ruim é o leitor não ter acesso à verdadeira identidade do jornal. E pior, não haver estímulo algum para a diversificação ideológica dos veículos. Que hoje, repito, têm empresarialmente uma cabeça muito financeira e pouco social, de quase nenhum respeito ao pensamento e às idéias dos indivíduos como cidadãos.
Você é relativamente otimista em relação à mídia, ao afirmar que as verdades impostas pelas elites são diariamente desmentidas pelos fatos. Você considera que a sociedade vê esses fatos na mídia? Nosso jornalismo contextualiza esses fatos, e os associa àquelas verdades? (Você poderia pensar num exemplo?) Ou a sociedade os percebe apenas na própria carne?
P.C. ? Você tem razão. A percepção, quase sempre, é na própria carne. E os governos sabem disto e atacam sempre a parte mais sensível do corpo humano, que é o bolso. Para tirar o ânimo, desviar a atenção. No que a mídia colabora bastante. Veja de novo o exemplo argentino, onde a moeda local valia o mesmo que o dólar. Valia, mesmo? Foi a pergunta que a população fez, a despeito do que a mídia e o governo diziam. É verdade que primeiro doeu na carne. Mas deu o que pensar.
Diz o texto: "O jornalismo, pela ampla e aberta exposição dos fatos e as múltiplas versões que deles apresenta, é ainda a melhor prática diária da liberdade de expressão e manifestação do pensamento." No Brasil a mídia exerce esse jornalismo, que parece ideal?
P.C. ? Apesar de tudo, exerce. E, às vezes, de forma brilhante. Creio que até sem qualquer preocupação com idealismo. Também não sei se digo tudo isto porque acho, como Ruy Barbosa, que a liberdade de imprensa é a maior e principal das liberdades, sem a qual as outras não existiriam. Tenho senso crítico em relação às empresas jornalísticas, mas não abro a guarda em defesa do exercício profissional. Se não há a liberdade de imprensa que os jornalistas e a sociedade precisam, tratemos de criá-la. Desta bandeira não abro mão. Afinal, dela fui um combatente durante algumas décadas. E a guerra está longe de terminar.
“A mídia será sempre, para o bem ou para o mal, apenas o reflexo da própria sociedade que a criou e alimenta.” Isso é justo com o público brasileiro, que cada vez menos tem acesso a ensino de qualidade e é formado cada vez mais pelo "padrão Globo" de informação?
P.C. ? O que fazer? É a dura realidade. Se quisermos empresas jornalísticas melhores, a sociedade terá de despertar para certos compromissos e interesses da mídia. Mas, outra vez, você tem razão: se colocarmos numa balança, para ver o peso e o valor de cada lado, a sociedade tem potencialmente muito mais a oferecer. A mídia está em dívida (enorme) com a sociedade.
Você concorda com Millôr, que disse que imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados?
P.C. ? Quem sou eu para não concordar com o gênio do Millôr? A definição é ótima. Pelo menos, uma oposição a algum dos níveis do poder: federal, estadual ou municipal. Como sempre digo, está chapa branca demais para o meu gosto. Os jornais brasileiros poderiam até ser escritos e editados na Inglaterra, por exemplo. O panorama é que mudaria. Em vez de Brasília, a cobertura da família real… Ou nos Estados Unidos da Era Bush. Alguns de nossos jornalistas adorariam escrever em inglês.
Você analisou o fato de ter recebido apenas um terço de respostas em 160 questionários enviados? Jornalistas e assemelhados seriam preguiçosos, pouco dados ao debate acadêmico?
P.C. ? Não. Como pesquisa de amostragem, foi um resultado bastante expressivo. Principalmente pelo nível de resposta dos participantes. É lógico que pesquisa retrata um momento. Melhor seria que fosse feita toda semana, com o maior número possível de participantes. Para uma pessoa só realizar é tarefa de leão. No meu caso, piorou, porque as pessoas sabiam com quem estavam falando. Uma coisa é você responder ao ibope, outra a um colega de profissão. Faz uma diferença… Teve gente que bloqueou a mensagem e mandou de volta o questionário, fingindo nada ter acontecido, coleguinhas que disseram não conseguir abrir a mensagem, coleguinhas que ignoraram solenemente esta temível possibilidade de abrir o jogo. Enfim, sabiam que estavam respondendo a mim, não a um ibope sem cara e sem possibilidade de identificação, parte a parte.
Por que chamou sua atenção a sinceridade dos respondedores?
P.C. ? Porque os coleguinhas ultrapassaram minhas expectativas. Foram realmente muito sinceros e honestos. E olhe que, como todo questionário de pesquisa, tinha um bocado de casca de banana e pergunta que voltava com outra roupagem, como alguns perceberam e deixaram anotado. Mas todos sabiam quem estava do outro lado. E me deixaram feliz porque abriram o peito. Por isto, disse à banca examinadora que nestas respostas e comentários estava o melhor de minha tese. E está, mesmo.
Quando tempo você levou preparando a tese?
P.C. ? A vida inteira. Uma tese é uma síntese de memórias e pensamentos. Que você carrega consigo até o dia em que tem de botar no papel. Freud dizia que a gente guarda tudo na memória e só libera aquilo o que quer, quando assim o deseja. O resto fica bloqueado por barreiras. A tese permite que você desbloqueie tudo, porque é um ato de escrever, pensando, e de pensar, escrevendo. Quando iniciei o Doutorado, a tese estava pronta. Faltavam as outras opiniões, principalmente a dos estudiosos da Comunicação e, mais ainda, dos coleguinhas que vivem o dia-a-dia. Depois, é sentar, abrir o arquivo do computador e despejar a sua vivência profissional e a cultura que adquire no curso. Com muitas mãos ajudando, como no meu caso, é bem mais fácil.
Já há planos para publicação?
P.C. ? Não. Só se alguma editora se interessar. Estou querendo, agora, é escrever um livro didático sobre jornalismo, somando longa vivência profissional e as janelas abertas pela pós-graduação. Falta no mercado. Acho que seria interessante até para quem pensa que já é um profissional pronto ou quem dá aula com uma visão apenas acadêmica. Aprendi muito, na vida profissional e na universidade, e estou com vontade de repartir este conhecimento. Quanto à tese, foi um bom exercício, exatamente com este objetivo maior.