A ARTE DE FAZER UM JORNAL DIÁRIO
“Técnicas de combate”, copyright IstoÉ, 8/12/2002
“Enquanto médico pensa que é Deus, jornalista tem certeza. Esta é uma das muitas máximas sobre a psicologia dos profissionais de imprensa. Por que é assim? Só Freud explica, mas alguns indícios mostram o caminho. Jornalistas trabalham em condições adversas, correm contra o tempo, lidam com o pior e o melhor dos seres humanos, ficam muito próximos das fontes de poder e têm a missão de mostrar a verdade. Mais do que isso: escolhem qual verdade será mostrada. Sobreviver em meio a tanta pressão leva muitos a incorrer no terrível pecado da soberba. Sentem-se poderosos e acham que sabem tudo. Qual o caminho para superar esse risco? Ter consciência dos limites, afirma o jornalista Ricardo Noblat, um dos mais experientes profissionais de imprensa do País. ?O mais inteligente é achar que tudo o que sabem é que nada sabem?, escreve ele, citando Sócrates, em seu livro A arte de fazer um jornal diário (Editora Contexto, 174 págs., R$ 23,90), recém-lançado em várias capitais. O livro fala da reforma do Correio Braziliense, o maior jornal da capital do País, dirigido por Noblat até o início de novembro, e inaugura uma coleção que a Contexto está lançando sobre jornalismo.
Outra questão grave entre os profissionais de imprensa, e que também remete ao complexo de Deus, levantada por Noblat, é de cunho ético. Até onde o jornalista pode ir em busca de informação? A Justiça não aceita como válida a prova de um crime conseguida de forma ilícita ? gravações feitas sem autorização judicial, por exemplo ?, mas os jornais estão cheios de reportagens realizadas a partir desse tipo de material. Tentar discutir esse tema é procurar briga certa com boa parte da imprensa. Noblat compra. Aliás, ele é famoso, entre outras coisas, por encarar polêmicas. É claro que, ao longo dos seus 52 anos de vida e 35 de jornalismo, ele também já foi acometido pelo temerário complexo, mas acredita ter mudado.
No código de ética implantado no Correio Braziliense está escrito que informação adquirida de forma ilegal não é publicada. Mesmo assim, o jornal tornou-se combativo. Nos oito anos em que a reforma foi gestada, o diário deixou de ser chapa-branca e adotou postura independente. Em termos visuais, passou a ser um dos mais modernos e bem diagramados do País. Recebeu 156 prêmios nacionais e internacionais. Para que a mudança ocorresse, Noblat adotou um processo muito pessoal de treinamento da equipe. Periodicamente mandava aos jornalistas bilhetes com dicas de apuração e redação de texto. A discussão sobre ética incluiu também os leitores, na coluna que Ricardo Noblat assinava aos domingos. Para os estudantes de jornalismo e os novos profissionais A arte de fazer um jornal diário serve como um excelente manual e para os mais experientes tem potencial para incitar muitos e produtivos debates. A todos lembrará que não somos deuses. Estamos mais perto de sermos Cães de Lázaro, como diz Very Well, o mensageiro-mor do Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto que há 50 anos lida todos os dias com jornalistas.”
TERRORISMO & COMUNICAÇÃO
“Entrevista com Peter Sloterdjik”, copyright O Globo, 7/12/2002
“…Os meios de comunicação de massa são microscópios eletrônicos através dos quais um ato de terror isolado é ampliado milhões de vezes. Normalmente, os jornalistas acreditam ser os guerrilheiros úteis da democracia; na verdade, ele travam, freqüêntemente sem sabê-lo, uma guerra bacteriológica informacional contra a prória população. É exatamente essa a definição de propaganda. Estamos ingressando numa era de propaganda absoluta. A propaganda relativa é o discurso bélico em favor de uma parte beligerante. A propaganda absoluta é a própria guerra sobre a qual pretende falar…”
WOODWARD & BUSH
“Repórter de Watergate se encanta com Bush”, copyright O Estado de S. Paulo/ The Guardian, 8/12/2002
“Ao entrar na casa de Bob Woodward, em Georgetown, percebe-se que há muito tempo ele ultrapassou o limite que o separava de ser um simples jornalista para algo muito maior. O lugar tem o tamanho de uma mansão diplomática. Do salão, uma empregada doméstica pode ser vista esperando na cozinha.
Woodward percorreu um longo caminho desde o tempo em que era um repórter mal humorado da editoria geral do Washington Post, cuja reportagem sobre o escândalo de Watergate levou à renúncia de Richard Nixon. Carl Bernstein, seu colega de Prêmio Pulitzer do período Watergate, voltou a uma relativa obscuridade depois que suas infidelidades no casamento foram transformadas em livro e em filme – A Difícil Arte de Amar (Heartburn) – por sua ex-mulher, a roteirista e diretora Nora Ephron. A última vez que apareceu no Washington Post, dois de seus ex-assistentes reclamaram que ele pediu dinheiro emprestado e não os pagou, e seus cheques voltaram.
Woodward, ao contrário, manteve-se na posição de decano indiscutível do jornalismo de Washington com uma série de livros bem recebidos sobre o poder e as pessoas que o exercem na capital americana. Ele não precisa mais esperar horas em estacionamentos desertos por um ?Garganta Profunda? (Deep Throat, gíria jornalística para fonte secreta). Atualmente, ele é levado diretamente para os altos ministérios, incluindo o Salão Oval.
Para seu último livro, Bush at War (Bush na Guerra), Woodward foi brindado com uma entrevista de 90 minutos com o presidente na Casa Branca e, depois, mais duas horas e meia na fazenda de Bush no Texas. Ele também conseguiu tempo de sobra com outros personagens fundamentais – Colin Powell, Condoleezza Rice, George Tenet e Donald Rumsfeld – e calhamaços de transcrições oficiais de reuniões do Conselho de Segurança Nacional feitas desde o 11 de setembro. Em uma profissão em que o acesso é tudo, nenhum outro jornalista americano chega perto dele.
O livro pinta um retrato bastante positivo da presidência de Bush. O famoso racha entre Powell e os falcões – Cheney, Rumsfeld e seu representante no Pentágono – é descrito em cores vivas. Mas Bush emerge como um árbitro decisivo, e líder convincente.
Isso levanta a inevitável questão do ?jornalismo de acesso?. Há uma troca implícita entre tempo e informação oferecida pelos detentores do poder e o modo como o jornalista os trata nas reportagens? Woodward fica vermelho, sugerindo uma ponta de raiva, com a pergunta. ?A idéia de algo parecido com toma-lá, dá-cá é uma idéia repulsiva?, diz ele. ?Não aconteceu. Não aconteceria. Não poderia acontecer.?
Ele assinala que não foi convidado pela Casa Branca a escrever um perfil enaltecedor do presidente na guerra. Em vez disso, insiste, ele reuniu informações sobre o assunto com suas fontes antes que as autoridades percebessem quais eram suas intenções e optassem por dar sua versão dos fatos. ?É interessante o que você fala sobre acesso, ou o que chama de acesso?, diz Woodward. ?É algo que se constrói. Você consegue uma pequena informação de alguém que talvez seja uma fonte secreta, você fala com pessoas do escalão intermediário. Eu passei meses trabalhando nisso.?
Ele diz ter checado as entrevistas de cada personagem com outras versões e transcrições, que ele acredita ter recebido sem que passassem por qualquer edição. Está convencido de que lhe contaram a verdadeira história. ?Fico surpreso que, tendo feito isso por muitas décadas, pareça verdade. É o tipo de coisa que eu gosto de chamar de ?realismo no jornalismo?. O que realmente aconteceu? Quem são essas pessoas? O que elas fazem? O que elas dizem? É melhor do que enxergar o assunto através de lentes políticas ou lentes pró-guerra ou antiguerra. Mas é só isso que aconteceu.?
Bush at War reconstitui alguns dos debates internos mais importantes do governo com detalhes extraordinários. Quatro dias depois de 11 de setembro, o gabinete de guerra se reuniu em Camp David para traçar a estratégia da ?guerra contra o terror?. Até neste momento, com o calor do choque ainda intenso, Paul Wolfowitz, o principal ideólogo dos falcões, é retratado forçando um ataque ao Iraque em vez do Afeganistão apenas porque seria mais fácil.
?Ele estava preocupado com 100 mil soldados americanos atolados em combates nas montanhas do Afeganistão nos seis meses seguintes. Em contraste, o Iraque era um regime ditatorial e opressivo que poderia ser desmantelado facilmente?, escreve Woodward. Por via das dúvidas, Wolfowitz acrescentou que ?havia de 10% a 50% de chance? de que Saddam estivesse envolvido nos ataques de 11/9.
Condoleezza Rice também aparece perguntando se os EUA deveriam fazer duas ofensivas, no caso de uma delas não funcionar. No entanto, todos os principais assessores de Bush – Cheney, Powell, Tenet e Andy Card, o chefe de gabinete da Casa Branca – foram contra o ataque ao Iraque, e só Rumsfeld se absteve.
Outro ponto crucial da narrativa acontece em 26 de outubro, no momento em que a guerra aérea no Afeganistão parecia não fazer efeito sobre o Taleban, levantando uma tempestade de críticas na imprensa e alertas de setores do poder de que os EUA estavam caminhando para um novo Vietnã.
Contrariando aquela situação, Rice foi até o presidente para perguntar se ele queria mudar sua estratégia e mandar mais tropas terrestres. O gabinete de guerra estava ficando preocupado. Bush o intimou a reforçar suas determinações. ?Querem saber? Precisamos ser pacientes. Temos um bom plano?, teria dito ele. ?Estamos nisso há apenas 19 dias. Fiquem firmes. Não deixem a imprensa nos assustar.?
O livro confirma muito do que se sabia ou se suspeitava sobre a briga entre falcões e pombas, mas também sugere que a divisão se tornou, em alguns momentos, pessoal – e suja. Quando Powell foi ao Oriente Médio em abril para uma missão de paz, Cheney e Rumsfeld tentaram manobrar sua diplomacia, insistindo que ele não deveria se encontrar com Yasser Arafat. Powell, em contrapartida, via tanto Sharon quanto Arafat como ?homens maus? e optou por encontrar os dois.
A conseqüência foi uma campanha difamatória contra o secretário de Estado pelo Pentágono e o gabinete da vice-presidência. O assistente de Powell, Dick Armitage, acompanhou o ataque de Washington e transmitiu o pior para Powell em Jerusalém. ?As pessoas estão jogando m. no ventilador?, disse ele.
No livro, Bush é retratado claramente tomando partido dos falcões, e Powell reclama de ser deixado isolado da Casa Branca e da mídia. Mas na questão do Iraque ele se supera, pedindo uma audiência com o presidente no dia 5 para lhe falar sobre suas preocupações com relação à atitude aventureira dos falcões.
Woodward alega que o encontro de 5 de agosto foi ?um dos mais importantes acontecimentos da história moderna de Washington? porque mudou a maneira de pensar de Bush e o convenceu a ir para a ONU. Na visão de Woodward, a decisão da ONU, mesmo que tenha postergado a decisão de invadir o Iraque, é uma evidência clara de que o presidente tem o controle da situação. ?Ele deixou bem claro para mim que ele é o único que decide?, disse ele. ?Há conselheiros, mas eles não podem fazer nada sem a sua aprovação. A responsabilidade do comandante-chefe reside em uma única pessoa.?
O mais conhecido jornalista investigativo americano foi claramente convertido em suas conversas com o presidente. Ele até defende a política de Bush para o conflito entre israelenses e palestinos, que muitos especialistas no assunto dizem ser desastrosa.
Mas quando questionado se acha que Bush entrará para a história como um dos grandes presidentes do país, Woodward resiste. ?Não tenho idéia.? E cita Bush quando diz que o presidente tem de ser ?cálcio no osso?, fortalecendo a determinação do governo. Está certo, se você segue a política correta, argumenta,?mas se opta pela política errada, muito cálcio no osso pode levá-lo a um caminho desastroso e perigoso?.
Tentativas jornalísticas de prever o futuro não são nada além de ?predições bobas?, acredita Woodward. Seu trabalho é aprofundar-se na trilha deixada pelo passado recente e esboçar o primeiro rascunho. Para além de sua indubitável admiração pela presidência de Bush, sua conclusão é indiscutível tanto quanto cautelosa. Antes de subir a imponente escadaria para se preparar para seu próximo compromisso, ele diz: ?Não está claro se isso vai caminhar para um desastroso triunfo ou algo parecido.?”