COBERTURA DE GUERRA
"Videofone também pode matar jornalista", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 28/04/03
"A TV brasileira tem muito a aprender com a recente cobertura jornalística da guerra do Iraque. A primeira lição nos relembra que fazer jornalismo de verdade é muito perigoso e que pode matar jornalistas. Treze colegas foram mortos e dois estão desaparecidos em menos de 30 dias de conflito no Iraque. Um triste recorde para a nossa profissão. Se as próximas guerras são mesmo inevitáveis e previsíveis, pelo menos, deveríamos parar alguns instantes para refletir, analisar e tentar evitar outras mortes e coberturas televisivas desastrosas.
A segunda lição, infelizmente, nos remete a uma das nossas histórias recentes mais tristes e, ao mesmo tempo, mais importantes: a introdução de novas tecnologias e a morte do nosso colega, o jornalista Tim Lopes. Alguns meses antes da trágica morte do jornalista, em artigo como este, procurei alertar os editores responsáveis sobre os perigos que já nos ameaçavam: ?a câmera oculta sem qualquer tipo de controle pode provocar suas primeiras vítimas em breve. O problema é que essas vítimas podem não ser necessariamente bandidos e corruptos. A próxima vítima pode ser você!?. Infelizmente, o pior ou o mais trágico acabou acontecendo.
Parece incrível, mas hoje já se passaram 330 dias desde a morte do Tim Lopes. Muitas questões ainda não foram respondidas e continuam a nos ameaçar. Após uma enorme mobilização que contou com a presença de tantos colegas em diversas passeatas pelo país, que foi contemplada com uma extensa e inusitada cobertura televisiva, muitas discussões em inúmeros fóruns, seminários com direito a belos discursos, mas será que hoje estamos todos satisfeitos ou, quem sabe, ?resignados? a aceitar a versão oficial de ?morte de um jornalista dedicado nas mãos de traficante auto-diagnosticado como ?maluco?? Mas afinal quem são os outros ?malucos? que teriam permitido, autorizado ou estimulado um bom e experiente jornalista a trabalhar em condições tão perigosas?
Câmeras ocultas seriam mesmo inevitáveis para mostrar as imagens que todo mundo já conhece, está cansado de saber que existem, mas que ninguém está realmente disposto a mudar? Será que as inúmeras perguntas formuladas por tantos colegas na época da morte de Tim Lopes já foram devidamente respondidas? Será que estamos satisfeitos com as explicações e as omissões sobre as verdadeiras condições profissionais que levaram um jornalista ?jurado de morte? a voltar quatro vezes ao mesmo local perigoso onde seria finalmente ?justiçado?? Será que finalmente fomos informados sobre as reais condições de segurança disponibilizadas pelos ?empregadores? para que o Tim Lopes tivesse as mínimas condições de segurança profissional para utilizar uma tecnologia tão perigosa como ?câmeras ocultas? e sobreviver? Será que já sabemos as razões que levaram os responsáveis pela execução de uma pauta tão perigosa a levar tanto tempo para alertar as autoridades sobre o desaparecimento do jornalista? Será que, pelo menos, a classe dos jornalistas ainda se lembra do Tim Lopes?
São tantas perguntas sem respostas, tantas dúvidas sem esclarecimentos, que um dia, quem sabe, poderemos ser acusados pelas gerações futuras de negligência ou descaso com o sacrifício de um grande jornalista. Um descaso que pode nos levar a outras mortes igualmente trágicas e, o que pode ser ainda mais triste, outras mortes que ao serem anunciadas, poderiam ter sido evitadas.
Todo o jornalista morto no exercício da sua profissão, no Brasil ou no Iraque, utilizando câmera oculta ou videofone, contratado, embutido, encaixado ou independente merece ter a sua morte cuidadosamente investigada pelas autoridades responsáveis e pelos próprios jornalistas. Continuo acreditando em um jornalismo que não se contenta nunca com explicações oficiais apressadas e convenientes. Todo jornalista tem a obrigação de ser cético em relação às autoridades militares ou policiais. O passado, infelizmente, é pródigo em mentiras oficiais ou ?histórias mal contadas ou mal apuradas?. Temos a obrigação de buscar explicações e investigações detalhadas e independentes sobre a morte de todos os nossos colegas. Principalmente, aqueles que morreram em condições perigosas e duvidosas.
Deveríamos investigar essas pautas com o mesmo rigor jornalístico e o mesmo empenho que caracterizaram as carreiras de profissionais como Tim Lopes, como Terry Lloyd, da TV independente britânica, que morreu recentemente em acidente de ?fogo amigo? britânico no Iraque e como tantos outros colegas. Esses jornalistas certamente não teriam se contentado com a falta de respostas e, o que é ainda pior, com a falta de perguntas!
Exigir um jornalismo investigativo competente, que vá fundo em todas as questões e que se dedique a esclarecer a morte de nossos colegas, não é somente uma obrigação. É também uma questão de respeito à memória daqueles que perderam a vida em busca dos fatos, fazendo um jornalismo de verdade, que não aceita a versão única e autoritária da notícia. É também uma questão de zelo com o futuro, com a vida de outros colegas que ainda poderão ter que enfrentar situações e pressões semelhantes no exercício de uma profissão cada vez mais perigosa.
Nem todo o jornalista de TV tem que ser obrigado ou ?convencido? a aceitar pautas consideradas demasiadamente ?perigosas?, a ser engajado ou embutido em unidade militar americana em guerra de propaganda, ou utilizar câmera oculta sem autorização judicial ou condições mínimas de segurança. O que aprendemos com os fatos recentes, tanto no Iraque como no Brasil, é que videofone certamente não é câmera oculta, mas também pode ser muito perigoso e matar tanto a ética como o próprio jornalista. A tecnologia com certeza não é culpada de nada. Sua utilização e a imposição de limites, no entanto, exigem consenso, regras claras, transparentes e muito, muito cuidado.
Videofone e câmeras ocultas podem ser muito perigosos num jornalismo de TV em crise de valores e de identidade, onde os fins sempre justificam os meios na busca de audiência a qualquer custo. As tecnologias existem para serem avaliadas e utilizadas com critérios e compromissos claros. E já que estamos em tempos de mudanças, de cobranças, e parafraseando os mesmo editoriais da Rede Globo que exigiam ações das autoridades, ?nós também temos certeza de que imprensa brasileira não abrirá mão do seu papel de investigar todos os detalhes da morte de um colega tão importante?.
Câmeras ocultas que nos obrigam a mentir e mortes previsíveis e evitáveis como a de Tim Lopes… nunca mais!"
"Repórteres e ditaduras", copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 23/04/03
"Eason Jordan, o chefe de reportagem da CNN, recentemente tirou de seus ombros alguns segredos terríveis e está sendo objeto de ataques fulminantes. Num artigo de primeira página de 11 de abril, Jordan disse que, em viagens a Bagdá, tomou conhecimento de fatos repugnantes sobre o regime de Saddam Hussein que a CNN não pôde noticiar sem pôr em perigo sua equipe iraquiana.
Entre esses fatos: um cinegrafista da CNN foi torturado por agentes do governo; Uday Hussein, filho do ditador, disse que pretendia assassinar dois cunhados e o rei Hussein da Jordânia; e um assessor de Uday contou que seus dentes da frente foram arrancados com alicate por homens de confiança de Uday, que o proibiram de usar dentadura para que se lembrasse de não desagradar a seu chefe. Se tivesse noticiado acontecimentos desse tipo, escreveu Eason Jordan, teria posto em perigo os funcionários locais e suas famílias.
Ninguém que está criticando Jordan – em uma avalanche de cartas para The Times ou em colunas de opinião e programas de TV – pôs em dúvida o perigo em questão. Mas muitos argumentaram que a CNN deveria ter fechado sua sucursal e, então, contado a verdade. Além disso, disseram eles, a decisão da CNN de manter sua presença em Bagdá teve mais a ver com dinheiro do que com preocupação com os iraquianos ou com o jornalismo. De olho nos índices de audiência, a CNN teria vendido sua alma.
A confissão de Jordan não inspirou confiança. Mas, para julgá-la, é preciso determinar se as reportagens da CNN ofereceram, no saldo geral, um retrato verdadeiro do Iraque ou se a rede atenuou os fatos com tanta freqüência que a cobertura traiu a confiança da audiência no jornalismo. Os dois lados oferecem citações que ou condenam ou redimem a cobertura. Mas a resposta só pode ser encontrada em anos de fitas de vídeo.
A controvérsia trouxe à luz uma realidade incômoda. A cobertura de Estados totalitários obriga um jornalista a fazer concessões. Quem já trabalhou como repórter em tais países sabe que é uma das tarefas mais desafiadoras que um jornalista enfrenta, envolvendo avaliações diárias em relação a acesso, sinceridade, liberdade de movimento e medo de represálias. Alguns governos pressupõem que um jornalista estrangeiro é um espião. E a forma como eles o tratam o obrigam a agir como tal.
Jornalistas no Oriente Médio enfrentam isso o tempo todo. A simples obtenção de um visto de entrada para países como Irã, Síria, Sudão e Líbia é uma tarefa monumentalmente desanimadora. Por exemplo, o formulário de alguns países exige saber se você alguma vez visitou a ?Palestina Ocupada?, querendo dizer Israel. Se você disser que sim, poderá ser barrado. Como qualquer repórter decente que está cobrindo a região já esteve em Israel, isso significa ser obrigado a mentir.
Alguns países perguntam sua religião. ?Judaica? não é a resposta certa.
Muitas vezes só é possível obter um visto de entrada durante uma comemoração promovida pelo Estado, como as obscenas festas de aniversário de Saddam ou o aniversário de uma revolução.
Uma vez dentro do país, as barreiras enfrentadas são imensas. Você pode, por exemplo, passar meses solicitando um visto de entrada na Síria ou no Irã e depois nunca conseguir uma entrevista com uma autoridade cujo cargo vá além de vice-ministro.
Podem lhe designar um ?acompanhante oficial?, o que impede qualquer discussão mais sincera.
Alguns moradores têm medo de serem vistos na companhia de um jornalista estrangeiro. Pessoas que se mostram encantadas em conhecer um americano de repente se afastam, ao saber que estão conversando com um repórter. Além disso, sociedades controladas não oferecem àqueles que lá vivem nem um idioma nem meios de expressar sua contrariedade. Por último, o que você escreve pode determinar se vai conseguir um visto da próxima vez.
Uma solução é noticiar apenas a partir de lugares onde é possível fazer reportagens. No Oriente Médio, isso usualmente significa Israel. Mas aqueles que reclamam da CNN certamente se queixariam se ela ou outras organizações noticiosas produzissem ainda mais reportagens sobre Israel e ainda menos sobre os países circundantes. A cobertura a partir dessa região já sofre de um terrível desequilíbrio nessa contagem.
Fui correspondente no Oriente Médio durante a maior parte da década de 90 e, embora nunca tenha enfrentado uma escolha tão angustiante quanto a possível morte de um funcionário, lutei com dilemas complicados. Em 1994, escrevi um artigo curto sobre o casamento de Bushra, a determinada filha do presidente Hafez Assad. Ela casou com um homem politicamente ambicioso que o pai desaprovava, uma coisa que me foi contada por pessoas que a conheciam.
Altos funcionários do Ministério de Informações da Síria gritaram comigo no telefone e impediram minha entrada no país durante 18 meses, dizendo que eu mostrara desrespeito pelo presidente e sua família. Será que tomei a decisão acertada ao escrever essa reportagem? Não estou certo. Contei aos leitores algo que eles não sabiam. Mas a que custo, para meu trabalho?
Se não tivesse escrito aquela pequena reportagem, interessante, mas pouco significativa, será que, em visitas posteriores, não teria obtido mais informações sobre coisas mais importantes na Síria? Mas não estaria eu traindo meus leitores e minha missão retendo informações? O fato é que, todas as vezes que visitei a Síria, o Iraque ou o Irã, aprendi muito – e acredito que meus leitores se beneficiaram com os artigos que escrevi a partir desses lugares ou de artigos mais amplos, observando a região como um todo.
Muitas vezes consegui me movimentar sem um acompanhante oficial (isso talvez tenha sido mais fácil por causa do fato de eu ser um jornalista da imprensa escrita e não de televisão). Simplesmente não há meios de entender um lugar sem pôr os pés nele. Porém, para ir a certos países você é obrigado a lutar com uma série de normas abomináveis. Este é o dilema enfrentado pela CNN e todos os demais veículos em um lugar como a velha Bagdá.
É fácil dizer que Jordan e a CNN tomaram a decisão errada. Isso certamente permite uma confortável clareza moral. E pode ser que Jordan e a CNN tenham ignorado o limite divisório para agradar as autoridades iraquianas. Mas eu, para começar, seria muito cuidadoso em condená-los.
Quem já se defrontou com as escolhas que são impostas aos jornalistas nessas circunstâncias sabe exatamente do que estou falando."
"Mostrar americanos mortos era proibido, diz repórter", copyright Folha de S. Paulo, 24/04/03
"Aos 62 anos, Walter Rodgers, correspondente da TV CNN na guerra do Iraque, passou quatro semanas com três opções para dormir: um monte de feno e o banco ou o capô de seu carro. Durante o conflito, ele fez parte do projeto ?embedded? do Pentágono, que consistiu em ?encaixar? ou ?embutir? jornalistas nas tropas para mostrar o avanço da coalizão em tempo real.
Rodgers se transformou numa das estrelas da cobertura da ofensiva por mostrar ao vivo as batalhas do 7? Regimento de Cavalaria. Fora o ?detalhe? de quase não dormir, contar com pouca água e comida e trabalhar sob tempestades de areia, o correspondente esteve várias vezes sob fogo cruzado. Atravessou estradas com iraquianos atirando dos dois lados. E estava ao vivo quando uma bomba explodiu a poucos metros dele. À Folha, por e-mail, Rodgers falou sobre seus dias de guerra. Ele conta como agia ao encontrar iraquianos mortos. ?Não fixava o olhar para não me assombrar com o rosto de um cadáver.? E afirma que o Pentágono o proibiu, por contrato, de exibir rostos de soldados americanos mortos.
Folha – Como era transmitir ao vivo, durante as ações militares?
Walter Rodgers – Tenso. Todos se esforçavam para pôr o produto no ar quando granadas e foguetes cruzavam nossas cabeças e o tiroteio ocorria ao nosso lado. Muitas vezes, acontecia à noite ou numa tempestade de areia.
Folha – Como fazia para dormir, comer, tomar banho?
Rodgers – O desconforto físico era pior do que estar no tiroteio. Os combates eram eletrizantes. Viver sem água quente, eletricidade, dormir torto dentro do carro, no capô ou em montes de feno, estar sujo o tempo todo era realmente desconfortável. Era frio, era quente. Tempestades de areia, uma completa tortura.
Folha – Enquanto os soldados descansavam, o sr. aproveitava para produzir matérias especiais. Quando conseguia parar?
Rodgers – Tive quase nenhum descanso. Se quiser descansar, vire bombeiro. Correspondentes de guerra trabalham até cair.
Folha – Quantos feridos e pessoas mortas encontrou pelo caminho?
Rodgers – Vimos muitos soldados iraquianos mortos. Tentava não olhá-los ou ao menos não fixar meu olhar neles. Se você fixa os olhos num cadáver, a imagem assombra você. Então, controlava minha visão sempre, como um radar. Via tudo à minha volta, mas, como não fixava o olhar, não me assombrava com o rosto de um cadáver, uma perna despedaçada ou moscas comendo o rosto de um soldado do Iraque. Vi muito mais mortos do que feridos.
Folha – Qual foi o pior momento para o sr.? E o maior medo?
Rodgers – Houve momentos em que corríamos de atiradores por duas horas, com tiros dos dois lados da estrada, as balas saltando à nossa volta. Felizmente, os iraquianos são maus atiradores. Foi um milagre nada ter acontecido, porque muitas vezes nossa equipe era um alvo vulnerável.
Folha – O sr. teve de assinar um contrato com o Pentágono. Quais era os termos do documento?
Rodgers – Não me lembro de todos, mas diziam, basicamente, que não podíamos mostrar o rosto de um soldado americano morto. Éramos proibidos de revelar uma operação militar dos EUA antes de seu início. Não podíamos divulgar números exatos das forças norte-americanas etc. Todos pareciam justos e razoáveis.
Folha – Como avalia as críticas de que as TVs americanas se pautaram pela versão do governo dos EUA?
Rodgers – Não usamos só informações do governo dos EUA. Estava na linha de frente. Divulguei o que vi. Essa era a vantagem dos ?embutidos?. Vimos as batalhas, os fracassos e os sucessos. O processo dos ?embedded? foi revolucionário, realmente um avanço jornalístico."