OFJOR CI?NCIA
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SAÚDE PÚBLICA
(*)
José Antonio Palhano (**)
Em tempos remotos, a chamada autoridade constituída divertia-se cevando leões com a carne dos cristãos, espetacularmente devorados em praça pública, modalidade esportiva convenientemente legitimada por uma galera fiel e ensandecida, garantia de casa cheia o campeonato todo. Passaram-se os anos e a civilização, maduramente consternada, não se contentou em somente abolir semelhante prática, afinal coisa de bárbaros, onde já se viu. Preservou as ruínas do que foi o Maracanã da época, em atitude sábia e providencial. Além de inequívoca e supimpa fonte de turismo, estão lá espetadas como que numa severa e macabra advertência de como não devemos nos portar em relação aos nossos semelhantes.
Passaram-se os anos e os leões, a despeito de uma certa perda do glamour que ostentavam naqueles idos, vão muito bem, obrigado. Ou confinados em reservas nas savanas africanas, ou hóspedes ilustres de zoológicos espalhados pelo mundo todo, devidamente assistidos por competentes veterinários e alimentados, digamos assim, de uma maneira mais politicamente correta. Quanto aos cristãos, ganharam a liberdade, se multiplicaram, uns se deram melhor que outros, mas pelo menos todos se livraram da triste condição de jantar oficial de feras famintas.
A humanidade, porém, em seus muitos acessos de criatividade e rebeldia, volta e meia tenta atualizar Coliseus, reciclando-os para as necessidades da vida moderna. Aqui no Novo Mundo, por exemplo, surge agora uma versão diferente e original, que dispensa inclusive torcidas organizadas, entidades malvadas que com o passar dos séculos só tendem a piorar, não é que até bem pouco andaram se matando a pauladas, ao vivo e em cores. Mais discreta que seu ancestral romano, camufla-se em hospícios. Não utiliza mais leões, bichos enormes que além de darem muito trabalho chamam a atenção do Ibama, e aí é uma encrenca só. No lugar dos cristãos (perseguição religiosa não tem nada a ver), entram em cena os doidos, e, substituindo os ultrapassados e pesados leões, maravilha dos tempos modernos, pavorosos e virulentos micróbios, gerados e fortalecidos por uma alquimia pestilenta mais conhecida como infecção hospitalar. Devoram os loucos, varridos ou sujos, com uma eficiência que faria corar de inveja o voraz caboclo Capiroba, um craque na arte de comer os incautos holandeses que aqui aportaram a fim de tirar uma casquinha e de encarar os portugueses, quando ainda éramos uma colônia, conforme descrito na genial obra de mestre João Ubaldo. Sem dúvida, uma maneira inteligentíssima de evitar que ocorra com nossos aprazíveis sanatórios o problemão dos presídios, pepino conhecido como superpopulação carcerária, praga terrível que volta e meia obriga as autoridades a atitudes extremadas e radicais, a última e mais grave delas internacionalmente conhecida como O Massacre do Carandiru.
Enquanto isso, cá no mundo dos lúcidos, surgem também outros equivalentes pós-modernos de Coliseus e afins, que dispensam a figura do matador. Neles, as vítimas morrem à mingua. Caso de alguns hospitais públicos, que exercem uma opção preferencial e fatal pelos pobres ainda com algum juízo, portanto inadequados para que sejam remetidos aos manicômios. Quem, além de pobre, cometer o desatino de ficar doente, poderá ganhar o supremo privilégio de agonizar no chão frio de uma dessas instituições, com direito a exposição prolongada (e póstuma) nos noticiários da TV, via satélite. Caso sobreviva, que se cale para sempre, pois se reclamar correrá o risco de aí sim ser taxado de louco irrecuperável, com grandes chances de conhecer as febres altas e as grandes septicemias de algum Coliseu Juliano Moreira por aí. Edificante coerência contemporânea: aos pobres, que se dêem hospitais pobres.
Deve ser por conta dessa obsessão igualitária, cruzada heróica e obstinada imbuída dos mais altos e nobres propósitos de provar ao mundo que somos uma nação que repele energicamente qualquer forma de discriminação social, que o ministério da Saúde adverte que vem aí o imposto sobre o cheque. Democrata de carteirinha, não reconhecerá quaisquer diferenças entre brasileiros e brasileiras, taxando todos com uma alíquota única. De uma didática espantosa, fará com que a professorinha da rede pública (pela vocação, coitada, não deve bater bem), infle o peito de orgulho cada vez que for utilizar seu talão de cheques, dura conquista alcançada em conjunto com o marido , também professor ( isso pega) e ambulante de praia nas horas extras. Afinal, cada cheque seu terá descontado o mesmíssimo valor de um outro emitido, por exemplo, pelo eminente senador Ney Suassuna, com todo o respeito um bem sucedido proprietário de escolas particulares.
Quanto aos micróbios, não podem reclamar, visto que tem sido tratados como nababos. O bacilo de Koch, que já vinha dando a batalha como perdida, está agora todo prosa. Anda fazendo com que a tuberculose dê saltos gigantescos, como os da inflação passada. Para isso, tem contado com uma forcinha. A rifampicina (parece apelido de metralhadora do Comando Vermelho), antibiótico considerado de primeira linha para combatê-lo, vende como banana em fim de feira na forma de spray, para o nobre combate a perebas, abcessos, unha encravada, bicho-do-pé, prego no pé e chulé, mordida de cachorro, de gato e de macaco, sarnas, bicheiras, bernes e pústulas em geral. Magnífica jogada de marketing, serve também para aumentar a chamada resistência, e loguinho o remédio pode virar vitamina do tal bacilo. E aí quem quiser que invente outro. E dá-lhe providenciar loucos para os bichinhos, a cada dia mais atrevidinhos.
(*) Publicado no Correio do Estado, Campo Grande (MS), em 15/02/96.
(**) Médico e jornalista
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