Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apologia ao satanismo? Onde?

RPG E MÍDIA

Fabiano Duarte Denardin (*)

Vou começar a ler jornais, revistas e assistir à TV com um novo olhar. A partir de agora vou usar a teoria do erro presumido. Como isso funciona? Simples, tudo que a imprensa falar, vou duvidar. É mais seguro. Começou na quarta, dia 18, assistindo ao Jornal da Globo: "Um crime bárbaro mobiliza a polícia de Ouro Preto, em Minas Gerais. Uma estudante foi assassinada e a polícia acredita que o crime foi inspirado nas regras de um jogo, conhecido como RPG." (texto copiado do site do jornal)

Um pouco chocado pensei: ok, agora eles vão explicar o que é o jogo, que isso é apenas uma suposição da polícia, sem provas nem nada. Ledo engano. Na voz de um delegado de polícia, a primeira pá de cal sobre o RPG: "O jogo tem de ter um desfecho. E o desfecho pode ser a morte. Então nós vamos dar uma verificada em cima desse jogo para ver se Aline estaria ou não envolvida nessa questão."

Agora, com a cabeça mais fria, eu penso: ótima saída, palmas para o responsável pela matéria. Colocar o que o título da matéria chamava ( "Jogo de morte") na boca do delegado. Grande tentativa de sair pela tangente nesse caso, legitimando o perigo do jogo por meio de uma testemunha confiável e automaticamente se isentando do caso.

Até O Corvo??

Começou aí uma polêmica gigantesca acerca do jogo. Na segunda matéria, o mesmo tom. Sob uma narração falando de livros de bruxaria e satanismo são mostradas quatro capas: a primeira do que parece ser um livro de aventuras de RPG, com histórias para jogar. O segundo é o "Livro de Nod", que ilustra a palavra "bruxaria". Tenho este livro, que de bruxaria não tem nada. É um livro de mitos e lendas para o jogo "Vampiro: A Máscara", basicamente com poesia baseada em histórias bíblicas e apócrifas. Nada sobre bruxaria.

O terceiro livro chama-se "O templo de Satã", é de autoria de Stanislas de Guaita, que viveu no século 19. Transcrevo um trecho retirado da internet, estaria na página 25 do livro: "Dar essência ao Mal é recusar a essência do Bem; sustentar o princípio do Mal é contestar o princípio do Bem; afirmar a existência própria do diabo, como o absoluto do Mal, é negar a Deus. Sustentar, enfim, a coexistência de dois absolutos contraditórios é proferir uma blasfêmia em religião e um absurdo em filosofia. O que revolta a consciência, o que ultraja a razão não é tanto a personificação simbólica das influências nefastas em ídolos na maioria das vezes odiosos e grotescos: é a deificação do Mal, disfarçando em princípio absoluto sob uma figura mitológica e, como tal, oposta ao princípio do bem, igualmente divinizado."

Isso parece com alguma apologia ao satanismo?

A quarta e última capa é de uma história em quadrinhos: "O Corvo", que todos conhecem da famosa adaptação para o cinema, com Brandon Lee, que morreu durante as filmagens, como o personagem da história.

"Atos falhos"

O assustador nisso tudo? Ninguém parece ter checado informação nenhuma. Um jornal, em cadeia nacional, foi transmitido com informações, no mínimo, duvidosas, para não dizer preconceituosas. Mais tarde, durante esta semana, recebo o golpe final: "RPG pode ser proibido no país."

Começa uma caminhada difícil para todos os jogadores do país, alguns cujo único hobby é o RPG: explicar a seus conhecidos que ele não é um assassino em potencial por se divertir daquele jeito, que o jogo não tem nada a ver com bizarrices perpetradas por criminosos, ao contrário do que "a TV disse".

Alguns se organizam, como a iniciativa dos sites <http://subversao.com/rpg>, <www.hardmob.com.br/>, <www.omelete.com.br>, <www.a-arca.com>. Outros aguardam para saber se vão poder comprar o próximo livro que queriam. Outros tratam de esconder seus dados de 6, 10 ou 20 lados, com medo de que, na próxima vez em que acontecer algo dessa natureza, seus dados possam ser confiscados pela polícia como "provas de crime".

Entenderam por que vou começar a ler as notícias da forma como eu disse? Se num assunto desses, de que tenho conhecimento, acho tantos "atos falhos", temo que em assuntos de maior importância, e que não domino, como política ou economia, esses erros possam acontecer em igual escala.

(*) Publicitário, trabalha com internet, jogou muito RPG na vida, joga vários jogos de computador e nunca matou ninguém, até hoje pelo menos. Também é conhecido como Oggh e pode ser encontrado no e-mail <oggh@terra.com.br>.

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