MÍDIA GAÚCHA
Gilmar Antonio Crestani (*)
As festas populares em honra dos deuses da mitologia, Dionísio, grego, e Baco, romano, deram origem à Comédia Clássica. Os antigos tinham-na como o "espelho da vida", posto que ela trata com desenvoltura a natureza humana e suas fraquezas. É nela também que se encontram as informações mais fidedignas de seu tempo. Isto é, levava ao palco a vida cotidiana, estereotipada, claro, mas sempre bem condimentada com os acepipes que a sociedade da época oferecia. Foi assim com a comédia grega, bem representada pela obra de Aristófanes (450-385 a.C.), e esteve igualmente presente na produção teatral dos comediógrafos latinos Plauto (224-182 a.C.) e Terêncio (192-159 a.C.). E por trabalhar com o presente, com as pequenezas e as grandezas sociais, também é a que acaba fazendo a crítica mais contundente entre as formas teatrais. Seu sucesso cresce nos momentos de transição política, em especial na decadência de determinado modelo, ao comparar os novos com os valores anteriores. Com a decadência do Império Romano, a comédia retornou aos palcos na época medieval na forma de farsa. Enquanto na Península Ibérica despontavam nomes como Calderon de La Barca e Gil Vicente, misturando aspectos religiosos, a Itália contou com nomes como Carlo Goldoni.
A Commedia dell’Arte, italiana, surgiu no início do século 16, mas alcançou seu apogeu somente no século 18. Caracterizava-se pelo uso de máscaras e tipos fixos, cujos atores improvisavam cenas, contando apenas com a ajuda de uma trama elaborada previamente. Eram atores circenses, hábeis em acrobacia, mímica e modulação de voz. Uma das personagens mais características deste gênero é o Arlequim.
Jornalismo de antolhos
Um dos principais inovadores foi o italiano Carlo Goldoni (1707-1793). A peça Arlequim, servidor de dois amos, é paradigmática até no título. Ao mesmo tempo que cumpria o papel a que se destinavam tais peças, ou seja, ao divertimento descompromissado, Goldoni introduzia elementos da realidade. Vivia a Itália de Goldoni uma época de turbulências políticas. As cidades italianas eram governadas pelos reinos de Espanha, Áustria ou pelo papa, e viviam brigando entre si. E Goldoni, cidadão veneziano, tinha de driblar a todos, já que às vezes trabalhava em Perúgia, Veneza, Milão ou Roma, também estudava em Pávia, mas seu sustento provinha de Módena.
Portanto, não é estranho que tenha se casado com uma moça de Gênova. A quantos patrões ele teve de servir?
Arlequim é a famosa máscara Bérgamo feita de losangos multicoloridos, de origem remota, muito famosa na Comédia d’Arte italiana, de que era personagem essencial. Arlequim era a máscara que, obviamente, era usada por um ator, que desempenha o papel de Arlequim. Em Vocabolario della Lingua Italiana, Lo Zingarelli, define o discurso de Arlequim como "incoerente, sem seriedade. É uma personagem vivaz, multifacetada e sem confiança, caracterizando-se por comumente faltar com a palavra". Descomprometia-se com o que dizia e fazia. O Arlequim é a imagem acabada do irresoluto e, não por acaso, seu sabre é apenas de madeira, seu rosto anda sempre mascarado e sua vestimenta é feita dos retalhos de seus senhores. Depois que se entra no mundo desta personagem, não há como não associá-la à comédia que virou o jornalismo do coronelismo eletrônico.
Ao referir-se ao papel que este arlequim representa, Chevalier constata: "Ele resume em si o conflito de um ser que não consegue desvincular-se da confusão dos desejos, projetos e possibilidades".
Desde as primeiras participações neste Observatório, aponto a prática do jornalismo de antolhos do grupo RBS. Quando mostrava a prática da "produção antecipada de provas" <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq190620021.htm> não era um anúncio cifrado, mas a certeza ditada pela reiteração de uma prática. Não deu outra. O rebento da empresa, em nova disputa pelo governo do estado, sequer esperou para usar as manchetes bombásticas do carro chefe do coronelismo sulista, publicadas no jornal Zero Hora. Logo no primeiro dia da propaganda eleitoral gratuita fez delas seu carro-chefe. Não bastasse o menosprezo pela inteligência dos telespectadores, caiu no ridículo ao tentar esconder a associação, já que uma tarja preta fazia de conta que escondia a identidade do jornal a que servira. Ao constatar a esperteza da RBS, como não lembrar do retrato que a personagem Beatriz faz do Arlequim? "Ele se faz de inteligente e tapado, segundo as conveniências." Arlequim também confunde pudim com polenta, mas acaba comendo o pudim, claro.
"Daquele amor, nem me fale."
Tivessem combinado antes e talvez não tivesse saído uma relação tão perfeita. E aí fica a dúvida: poderá o Arlequim servir a dois patrões? Ao estado e aos leitores? Que o candidato use de todos os meios, inclusive os midiáticos, para se eleger, vá lá. Agora, que o principal grupo de mídia, espalhado por todo o estado nos segmentos de TV, rádio e jornal, empreste sua máscara multicolorida no horário eleitoral já é abusar da inteligência dos leitores/eleitores.
Veja-se que o candidato do establishment, sentindo a necessidade de explicar o passado, saiu-se com esta pérola: "Não tenho compromisso com meus erros." Os leitores terão oportunidade de mostrar na prática se concordam com a "síndrome da parabólica". Contudo, outra questão se afigura quando a mídia toma para o papel de justificar tal conveniência. Em editorial (ZH, 22/8), a patronagem faz a defesa que o candidato ensaiou mas deixou em verso quebrado: "O eleitor não se contentará com a postura de quem prefere ficar olhando para o passado."
Quem pensa que se trata de mera coincidência não sabe da missa a metade. É aqui que a comédia se renova, e diverte, ao tentar esconder do público a história para proteger os interesses presentes e futuros. Quer fazer crer que o candidato ideal é um asteróide, sem história, sem qualquer ligação com a explosão que o originou, cuja única preocupação relevante resume-se a prognosticar o lugar onde poderá cair. Tivesse sido clonado em laboratório, talvez saísse mais asséptico do que a RBS quer fazer crer.
Não contente em antecipar manchetes, que os fatos desmentem dia após dia, faz da mídia um circo. Os Arlequins a serviço dos coronéis da mídia, como o da peça de Goldoni, confundem uma Beatriz vestida de homem com o homem Frederico Rasponi, fazendo suas as palavras do original: "Agora já não sou servidor de dois amos! Sou servidor de um amo e de… uma ama." Arlequim não só serve a uma ama, mas também ele ama… Esmeraldina. Por isso ele conclui, em sua última intervenção, que "a experiência foi curta, é verdade, mas ao menos me resta a satisfação de que ninguém ter-me-ia descoberto se não estivesse apaixonado por Esmeraldina".
Esta peça vem fazendo um sucesso tremendo, que se estende por mais de uma temporada, nos palcos de Porto Alegre… Na gestão anterior, quando o grupo abocanhou a Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), um dos diretores da RBS declarou que estava selando um negócio pelo qual lutara por três anos. Ato falho? Três anos antes do ato de transferência vivia-se não só a gestão Alceu Collares, mas também a temporada eleitoral que viria a eleger aquele que transferiu a CRT ao grupo RBS. O ex- governador, talvez forçado pelo desemprego que o modelo que ajudou a implantar causou, foi trabalhar como consultor do grupo Opportunity, que participou do processo de privatização da CRT, e que agora busca o monopólio da telefonia fixa no Brasil.
Como se pode ver, são muitos senhores para poucos arlequins! Muita patuscada e nenhuma informação inteligível para os leitores. Para saírem deste labirinto precisarão mais que um fio de Ariadne. Podem até marcar mais um tento nas eleições, mas, em termos de credibilidade, teriam de repetir a dose, contratando novamente um Augusto Nunes.
E assim fica claro por que o manifesto pela "liberdade de imprensa" do grupo de apoiadores daquela candidatura ganhou tanta repercussão na RBS. A "liberdade de imprensa" de que falavam, na verdade, havia saído pela porta dos fundos do Palácio Piratini, e, como Cristo, vagou pelo deserto ou pelo espaço sideral, até encontrar a salvação no Opportunity. Seria por causa deste "intermezzo" que a RBS transformou um editorial em sermão da montanha, tentando nos convencer que passado não importa?
O passado deve ter tanta importância, como quer a RBS, somente quando ouvirmos seus arlequins cantando com João Nogueira o samba do João Donato e Martinho da Vila: "Daquele amor, nem me fale."
Círculos viciosos
Não faz muito chegou ao Brasil uma coleção da editora portuguesa Gradiva chamada O Prazer da Matemática. O volume 13, de autoria de Patrick Hughes e George Brecht, trata dos Círculos Viciosos e Infinito. Mesmo quem não é da área das ciências exatas encontra uma leitura agradável, pois este volume trata também dos paradoxos. Paradoxo, na definição filosófica, é a afirmação que vai de encontro a sistemas ou pressupostos que se impuseram como incontestáveis ao pensamento. Um dos primeiros paradoxos que o livro traz, bastante simples, aliás, tem a ver com o conteúdo fornecido pelo coronelismo eletrônico: "Embora a nossa informação seja incorreta, não nos responsabilizamos por ela" (Satie). Dizem os autores que os três termos de descrição dos paradoxos são a auto- referência, a contradição e o círculo vicioso.
O paradoxo que se desenha na relação do coronelismo eletrônico sulista com o candidato das oposições contém as três condições. Mas é no círculo vicioso que quero me deter, pois talvez também tenha sido seduzido pela farsa burlesca. Como disse Ionesco, "se desenhar um círculo e lhe percorrer a periferia, ele tornar-se-á vicioso". Ora, as manchetes sintonizadas com os interesses do candidato, mostradas pelo próprio como elemento probatório de suas invectivas, fecha o "circo" e mostra-se vicioso. Quando o candidato diz "não tenho compromisso com meus erros", e depois lê-se no editorial que o passado não interessa, o eleitor/telespectador/leitor sente-se abandonado diante de um aviso que diz "por favor, ignore este aviso".
Não bastasse o editorial mandando o passado às favas e o candidato do comissário matando a cobra e mostrando as manchetes dos jornais sobre tais feitos, o jornal Zero Hora achou por bem registrar a performance do rebento: "Ao contrário do que foi ao ar à tarde, o programa substituiu a participação dos candidatos para criticar o governo, mostrando imagens de TV, fotografias e manchetes de jornais que remetiam à saída da Ford do estado, à destruição do relógio dos 500 anos, às perdas na pecuária com a febre aftosa, às invasões de terras e aos episódios de impasse com o MST." (ZH de 21/8).
"Imagens de TV" da RBS, "fotografias e manchetes de jornais" da RBS, assuntos todos explorados sem parar pelos coronéis, ao melhor estilo Goebbels. A Ford optou pela Bahia em janeiro de 1999, mas desde então não há dia que a palavra Ford não passeie pelas páginas do jornal ou por qualquer outro veículo do grupo.
Outra trilogia do jornal Zero Hora virou best-seller. As "reportagens especiais" epigrafadas de A infância massacrada, fizeram parecer que o RS viveu nos últimos quatro anos um processo semelhante ao da Intifada. Agora, no horário eleitoral, os candidatos ligados à TFP brandem as tais manchetes como quem anuncia o Apocalipse.
Editorialista de aluguel
No artigo anterior publicado neste Observatório [remissão abaixo], questionei o fato de o editorialista de Zero Hora não ler o próprio jornal, assim não seria desmentido pelo mesmo veículo e na mesma edição. O editorialista lê o Observatório, sim, como prova o editorial de 28/4 ("Ao tomar conhecimento da peça processual, um já identificado servidor público que promove delirantes e obsessivos ataques à RBS encaminhou um artigo confuso a um site especializado em imprensa, originando-se daí as mensagens via internet que estão sendo distribuídas por algumas pessoas."), mas acho que não entende.
Tenho a impressão de que meu artigo, como os que o editorialista havia lido quando do comentário acima, continua confuso. Caso contrário ele não teria incorrido no mesmo erro. Já não sei quem é mais obsessivo, se é ele em não ler o jornal em que trabalha ou eu em continuar gastando meu tempo lendo editorial. Nisto ele não deixa de ter razão. Só um obsessivo para ler editorial e ainda por cima do jornal Zero Hora…
Na edição de 16/8 o jornal Zero Hora trazia a manchete: "Trânsito gaúcho bate recorde de acidentes desde o novo código." Aí folheio o jornal, que tem um colunista que faz campanha sistemática contra os controladores eletrônicos de velocidade ("Então instalem mais milhares de pardais e diminuam a velocidade máxima permitida para 20km/h, estará enfim consolidada e mais ainda enfurecida a Grande Ratoeira para os motoristas."), e lá está dito que em 1997 foram 364 mortes, contra 295 em 2002. Que me lembre, não houve nenhum rali no RS em 1997, e mesmo o rali Paris-Dacar não provoca tantas mortes. O que teria acontecido naquele ano em que tudo era maravilhoso neste estado, que, aliás, só foi cair em desgraça a partir do término da contagem de votos no segundo turno das eleições de 1998?
O editorial do dia seguinte, 17/8, acabou revelando o retrato pronto e acabado do comportamento de quem trata os gaúchos como um coronel cuida de seu curral: "Não é o excesso de controles, sejam eles quais forem, o responsável. O raciocínio inverso é que seria o mais correto." Raciocínio inverso? Com uma raciocinada destas, mesmo "em verso", já não serão só as vítimas do trânsito que assustarão. Liberalismo no trânsito? Esta faria até o Rosenfield corar!
Embora ignorante nas questões de trânsito tenho que o paradoxo de Lichtenberg pode ajudar o editorialista a entender as mortes: "Quando todos querem chegar o mais cedo possível a maioria acaba por chegar atrasada."
Arlequim também sabe abrir cartas mas, como não sabe ler, acaba entregando-as ao patrão errado. Todo ambicioso dá uma de Arlequim. Pode ser até que os dois patrões saiam lucrando, mas sempre haverá alguém pagando por isso, seja literalmente ou mesmo em termos de credibilidade. Pelo menos o Arlequim teve tempo, no final, de constatar que não teria sido "descoberto se não estivesse apaixonado por Esmeraldina".
(*) Funcionário público federal
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