MEMÓRIA / OLDEMÁRIO TOUGUINHÓ
“Oldemário, uma legenda”, copyright Jornal do Brasil, 22/1/03
“A travessia 2002/2003 tem sido impiedosa com o universo do futebol. Perdemos dois jogadores admiráveis, dois cavalheiros dos campos: Joel Martins e Julinho. Agora, vai o terceiro e grande personagem do futebol, de cuja carreira sou privilegiada testemunha. Falo do jornalista Oldemário Touguinhó. Conheci-o, ali pelos anos 60, dividindo com ele um espaço de trabalho e de afeição na redação do Jornal do Brasil. Lembro-me de uma conversa que tive, então, com o psicanalista e poeta Hélio Pelegrino. Hélio me telefonou, querendo saber se eu era íntimo de um repórter do JB que se chamava Oldemário Touguinhó. O nome Oldemário e, mais ainda, o sobrenome Touguinhó, tinham se transformado numa obsessão do doutor Hélio, que queria porque queria conhecê-lo pessoalmente.
Infelizmente, sempre que marquei uma visita do poeta ao JB, o próprio Oldemário desmarcava, levado, às pressas, da redação, pelas intuições de um bom furo. Contei, então, ao doutor Hélio que Oldemário era uma figura singularíssima. Um devoto da notícia. Não me lembro de ter visto, em 50 anos, outro repórter mais dependente de um furo jornalístico. Oldemário passou a vida inteira de plantão, a serviço da notícia. O moço, sempre ligado, tinha nos cinco sentidos o imã de uma informação em primeira mão.
Na edificante carreira de Oldemário, há um episódio simbólico do seu amor pelo jornalismo. Certa vez, ele teria obrigado um piloto a abortar uma decolagem de um avião comercial. Plantara-se no meio da pista, disposto a morrer atropelado. Ele tinha que entregar a um colega um filme e uma reportagem pra sair dia seguinte no JB.
Em 40 anos de repórter, Oldemário só vestiu uma única camisa – a do JB. Cobrimos juntos o Mundial de 1966, sob a liderança de Carlos Lemos, querido companheiro, a quem o jornalismo esportivo deve a descoberta do grande Oldemário. Lemos apostou e acertou na aposta. Oldemário se consagraria como o mais vibrante e competente repórter esportivo do Brasil. Que Deus o tenha.”
“Uma flor para Oldemário”, copyright Jornal do Brasil, 22/1/03
“Além da Copa do Mundo de 1950, da inauguração do Maracanã, da tragédia da derrota, na final para o Uruguai, por 2 a 1 – com o famoso gol de Gigghia, que condenou Barbosa, Bigode e Juvenal à inquisição na fogueira de mais de meio século de polêmica interminável, amortecida nas cinzas dos cinco títulos -, só assisti, em condições privilegiadas, à Copa de 86, no México, a Copa de Don Diego Maradona, que levou a Argentina ao título.
A presença do veterano repórter político na equipe do Jornal do Brasil justificava-se pelo esquema tático da cobertura, mesclando a rotina do noticiário dos jogos, e da atividade dos bastidores, com crônicas de profissionais de outras áreas, mas com o indispensável elo da paixão pelo futebol. Um truque para desatar o nó da concorrência esmagadora da televisão, com a transmissão direta e ao vivo de jogos, treinos, entrevistas, mesas-redondas.
Lá dei com os costados, estranho no ninho ou apenas conhecido de vista como assíduo freqüentador do Maracanã, da cadeira cativa à tribuna da imprensa, e um passado perdido na mocidade das tardes de domingo nas arquibancadas de todos os estádios do Rio. Não era o único. O admirável cronista Joaquim Ferreira dos Santos também enfrentou o mesmo desafio e safou-se com o texto impecável e a garra de repórter.
No que me toca, misturei futebol, Copa do Mundo e política – em período de efervescência do governo do presidente José Sarney, depois da despedida dos quase 21 anos da Redentora e da saída do último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, escafedendo-se pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, e da ebulição do confronto ideológico – e decidi escapar pela tangente, tentando entrevistas com os craques com mais envolvimento com o debate que rachava o país de Norte a Sul.
Deu certo. As entrevistas abrindo a cuca política de Casagrande, do doutor Sócrates, de Leão e, na contramão, de gente boa de bola, mas boiando na mais desligada alienação política, alcançaram razoável sucesso, nas brechas do passionalismo pela Seleção montada pela competência de Telê Santana, mas perseguida pelo azar de contusões e desclassificada nos pênaltis perdidos por Zico, no tempo regulamentar, e por Sócrates e Júlio César na decisão das quartas-de-final, contra a França.
Não apenas os que se defendiam pelas beiradas: toda a equipe girava e dependia da liderança da chefia centralizada por Oldemário Touguinhó. No meu caso, as excelentes relações pessoais, fraternas e calorosas, forjadas no dia-a-dia da redação, passaram pelo teste de 43 dias de convivência nas pausas e nos sufocos da fascinante cobertura de uma Copa.
Oldemário, o saudoso Sandro Moreira, todos da turma de impecável coleguismo, facilitaram-me os contatos com o técnico e jogadores para as conversas privativas, nas horas mortas da distante concentração.
Mas Oldemário era incomparável. O seu dia espichava-se das primeiras horas da manhã até o segundo jantar no raiar da madrugada. Parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. De saída, deu o recado ao armar um banzé com a direção do hotel onde ficamos hospedados, ao reclamar contra as instalações exíguas da sala de imprensa privativa do JB e exigir solução imediata. Em meia hora estávamos instalados com folga de espaço e requinte de conforto.
E manteve a toada no mês e meio de batente. A inacreditável capacidade de trabalho, a simpatia que construía amizades de infância no estalar dos dedos, a solicitude com os pequenos problemas de cada um consolidaram nossa amizade até a despedida, na fornalha da manhã de ontem, no seu enterro no modesto cemitério do Catumbi. Com a presença emocionada de centenas de amigos. Cada um tinha uma história para contar do mito, do mais completo repórter que conheci.
Vários depoimentos desfilam pelas páginas do JB e de outros jornais, televisões e rádios. Oldemário foi amigo do Rio, de toda a população, até dos que não o conheceram pessoalmente.
Seu lugar na história da imprensa é o registro da sua vida, cunhada no bronze da sua biografia.
O mistério da insônia legendária encaixa episódios incríveis. Na madrugada de 1? de abril de 64, com a cidade bombardeada por boatos sobre os rumos do golpe ainda indefinido, no seu giro a cata de notícia, Oldemário esbarrou com o diretor do JB, Nascimento Brito, o qual, desencontrado do seu carro, vagava atrás de um táxi. E foi como carona de Oldemário que foi levado à sua casa, nos altos de Santa Teresa.
Contou-me Walter Fontoura que, ao ser convidado para diretor do JB, ouviu e guardou do doutor Brito a recomendação expressa: ?Você faça as mudanças que quiser na redação. Aqui, intocáveis, apenas o Sandro Moreira e o Touguinhó?.
Distinção honrosa, embora dispensável: quem assinaria a confissão de incompetência demitindo o Sandro ou o Touguinhó?”
“Oldemário”, cartas, copyright Jornal do Brasil, 22/1/03
“?Foi enterrado ontem Oldemário Touguinhó, o mais competente repórter esportivo do Brasil. Fui seu leal amigo por mais de 25 anos e com ele participei de todas as Copas do Mundo desde 1982, na Espanha. Ele foi o professor de todos nós. Que a filosofia de Oldemário acompanhe sempre os seus alunos, para o bem do jornalismo esportivo e da ética profissional. Oldemário era o que mais sabia, mas só divulgava para construir; era boêmio e freqüentava as madrugadas de Copacabana, depois de sair da redação, e só bebia água mineral; freqüentava o carnaval e repassava as matérias apuradas para seus colegas; e foi o pai, marido, avô, colega e amigo mais inesquecível de todos os que conviveram com ele. A sua ausência é uma lacuna que ficará na história do jornalismo esportivo brasileiro para sempre.? Valterson Botelho, Rio de Janeiro, por e-mail.“
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“?A morte do filho de Oldema e Mario é um choque para quem foi um dia (e será sempre) seu amigo. Oldemário Touguinhó era muito mais que um repórter. Era uma força da natureza. Um Zorba, o Grego, do jornalismo.? Tão Gomes Pinto, Brasília, por e-mail.”
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“?O jornalismo brasileiro, muito especialmente o esportivo, perde um dos seus mais dedicados profissionais com a morte do Oldemário Touguinhó, um craque na arte de garimpar notícias e cativar amigos.? Antonio Cunha, gerente de Comunicação Institucional da TIM Brasil, Rio de Janeiro, por e-mail.”
MEMÓRIA / AL HIRSCHFELD
“Al Hirschfeld, 75 anos dedicados à caricatura”, copyright O Estado de S.Paulo, 22/1/03
“Al Hirschfeld, autor de caricaturas que capturaram as personalidades do mundo teatral e seus trabalhos por mais de 75 anos, morreu na segunda-feira, aos 99 anos. Segundo sua mulher Louise, Hirschfeld morreu enquanto dormia em sua casa, em Nova York. Ele trabalhou até sábado, quando preparava o esboço de um desenho dos irmãos Marx.
Os primeiros desenhos de Hirschfeld começaram a aparecer na década de 20.
Natural de Saint Louis, estudou pintura, desenho e escultura em Paris. Por quase 70 anos, seu trabalho ilustrou as páginas de espetáculos do The New York Times, além de outras publicações. Era presença constante nas estréias da Broadway, universo que recriou em seu trabalho. ?Era uma honra ser desenhada por ele, que interpretava nossa atuação e redefinia tudo o que fazíamos no palco?, diz a atriz e cantora Bernadette Peters.
Museus como o Metropolitan, de Nova York, colocaram obras suas em coleções especiais. Algumas delas se tornaram selos de correio. Desde que, na década de 20, mostrou à direção do New York Herald Tribune um desenho seu, é considerado autor da principal crônica ilustrada da cultura popular, como retratos de artistas como George e Ira Gershwin, Audrey Hepburn, Paul Newman, Liza Minnelli, Cole Porter, Barbra Streisand e Woody Allen.
?Eu saía do teatro com uma série de anotações abstratas que, mais tarde, traduzia para linhas. O importante é que o desenho se pareça um pouco com o ator que estou desenhado. Há muito erro, borracha, papéis jogados no lixo.
Definitivamente, não é um processo dos mais bonitos?, disse ele em 1999, falando de seu modo de trabalho e afirmando que, após todos aqueles anos, enfim ?começava a ficar bom? em seu ofício.
?Nunca foi minha intenção ridicularizar a peça ou os atores nela envolvidos. A paixão da convicção pessoal pertence ao autor; a interpretação física do personagem pertence ao ator; a criação em linhas pertence a mim. Minha contribuição é pegar o personagem – criado pelo autor e interpretada pelo autor – e reinventá-lo para o leitor.?
Nina – Uma de suas marcas registradas era a inserção, nos desenhos, do nome de sua filha Nina, escondido entre os traços. De fato, encontrar as ‘Ninas’ perdidas em seus desenhos se tornou, ao longo dos anos, um ritual. Até mesmo do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que, em exercícios militares, reproduziam em um gigantesco telão alguns de seus desenhos, dando 20 segundos a um grupo de 100 pilotos para encontrar todos os locais em que o nome ‘Nina’ aparecia.
Em 1996, um documentário sobre sua vida, filmado por Susan W. Dryfoos, foi indicado para o Oscar. No mesmo ano, ele foi nomeado uma das seis personalidades representativas de Nova York pela New York Landmarks Conservancy. Segundo sua mulher, na sexta-feira ele havia recebido uma carta da Academia Americana de Artes e Letras informando-o de sua escolha como novo membro. Também na sexta, um telefonema de Washington comunicava-o da decisão do governo de conceder-lhe a Medalha Nacional das Artes. ?Se você vive o suficiente, tudo pode acontecer?, foi a reação dele, segundo sua mulher. Ainda na lista de homenagens, o Teatro Martin Beck passará a ter o seu nome a partir de junho, quando duas cerimônias beneficentes, em prol de uma associação de atores, também serão realizadas.
Além de retratar artistas, Hirschfeld também se dedicou ao trabalho em outras áreas, especialmente na década de 30, quando foi influenciado por grande preocupação social e colaborou com a revista comunista The New Masses. Com o tempo, no entanto, renunciou a um enfoque político em seu trabalho. ?Desde então, tenho estado mais próximo de Groucho Marx do que de Karl?, escreveu em seu livro, The World of Hirschfeld. (AP, Reuters, New York Times)”