MEM?RIA
ASPAS
"Minuto de silêncio", copyright O Globo, 29/06/01
"Olha, eu ia escrever sobre Brasil e Uruguai, que tinha tudo para ser o evento mais importante da minha semana. Infelizmente, ela começou mal, com a morte de Evandro Carlos de Andrade, diretor de Jornalismo da Rede Globo e ex-diretor de Redação do GLOBO. Chovo no molhado: era um jornalista completo. Escrevia e mandava bem, muitíssimo bem, ambas as coisas imprescindíveis a quem está no comando de pequenas multidões de jornalistas, normal e – num certo nível – saudavelmente desconfiados de qualquer autoridade. Tais virtudes, contudo, já foram louvadas nos últimos dias. Por isso, queria era acrescentar um pé-de-página ao perfil do personagem. Para mim, Evandro sempre estará ligado ao futebol e, em particular, à seleção brasileira e ao tetracampeonato.
Até terça-feira, 3 de agosto de 1993, eu nunca havia trocado nenhuma palavra com Evandro. Ele era apenas um vulto alto, que passava rápido lá no meio do salão, arrastando uma fama de severidade indescritível. Eu trabalhava no RioShow desde o final do ano anterior e assinava uma coluna no Segundo Caderno dos sábados havia três meses. Naquela manhã, pois, pipocou na tela uma mensagem de Evandro. Tremi. Ela dizia algo como: ?Caro Dapieve. Está arquivada no diretório 2.TIT uma retranca com seu nome. Leia-a, por favor, para não continuar divulgando bobagens e inverdades de segunda mão. Cordialmente, Evandro?. O 2.TIT era uma espécie de pasta, a que só os editores tinham acesso. Abri o tal arquivo. Eram telas e telas que rebatiam ponto a ponto a minha coluna do sábado anterior, de título ?Ai de nós se Zagalo tivesse brecado Pelé?.
Nela, eu repetia coisas que ouvira e lera desde que me entendia por gente, ou seja, desde a Copa de 70: João Saldanha deixara de ser técnico do escrete por se recusar a convocar o centroavante Dario, xodó do general-presidente Médici; Zagalo (então com apenas um éle ) assumira em seu lugar e convocara Dario; no entanto, não ousara mexer no time de feras do ?João Sem Medo?. Lembrava isso para criticar o defensivismo da seleção da qual Zagalo era o coordenador técnico. Evandro apresentava outra história: Saldanha caíra porque a seleção não estava rendendo bem e, ainda por cima, o técnico implicava com Pelé, a quem considerava meio cegueta. Segundo ele, Médici era até favorável à permanência de Saldanha. Contava isso com irrefutáveis veemência e riqueza de detalhes, num retrato que não endossava a imagem do herói solitário.
Tal texto foi perdido numa limpeza de sistema. Pena. Mas Evandro foi ouvido por João Máximo para o perfil de João Saldanha escrito para a editora Relume Dumará, três anos depois. Menos mal. Porque aquela foi a maior e mais instrutiva descompostura recebida em toda a minha vida. Aprendi que se deve desconfiar do senso comum. Mas, ali, na hora, diante daquele tijolada, tentei acalmar-me raciocinando: a) ele podia ter simplesmente me demitido; b) ele se dera ao trabalho de escrever aquilo tudo; e c) eu tinha de tentar me explicar. Pedi a opinião de meu chefe direto, Milton Abirached, editor do Segundo Caderno, e ele me disse, rindo: ?Vai lá conversar, ele gosta?.
Na sala da chefia estava Renato Maurício Prado, editor de Esportes. Antes de ele sair, com um tapinha de ?boa sorte? no meu ombro, ainda deu para ouvir Evandro bufando: ?E agora me vem o Dapieve escrever uma idiotice dessas!? Eu suava frio. E só quando fiquei de pé diante do olhar inquisidor de Evandro percebi que eu não tinha nada a dizer nem a contradizer. Balbuciei uma platitude, tipo ?li seu texto?. Ele arqueou as sobrancelhas, a dizer ?e…? Diante do meu silêncio, falou: ?Dapieve, você é uma das pessoas que menos entende de futebol que já conheci. Você, o Saldanha e o Nelson Rodrigues.? Diante dessa tirada humorística, suspirei aliviado. A partir daí, passamos a manter um papo sobre futebol, ressalvada nossa diferença filosófica essencial. Rubro-negro roxo, ele me cutucava: ?Não sei como você pode torcer por um time de meias cinza…?
No ano seguinte, já na Copa, às vésperas do jogo com os EUA, a seleção estava sob ataque cerrado da imprensa, sobretudo a paulista, desejosa de escalar já não me lembro qual gênio da bola de expressão regional. Irritado com o que lia e ouvia, Evandro escreveu, no caderno de Esportes do GLOBO, um primeiro artigo, intitulado ?Tudo certo?, que, desafinando o coro dos descontentes, iniciava-se assim: ?Dos vários fatores que me sustentam a esperança de comemorarmos a quarta conquista da Copa do Mundo, nenhum tem o peso da tranqüilidade demonstrada e oferecida pela dupla Parreira-Zagalo.?
O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, pegou esse texto, reuniu a delegação em Los Gatos e o leu em voz alta, como forma de motivação. Evandro cogitou cobrar-lhe direitos autorais – mas cedeu-os gentilmente a Parreira… E, daí em diante, até a conquista do tetra, foi brindando seus leitores com ironias, revelações e um inquebrantável otimismo. A última frase do artigo da sexta anterior à final contra a Itália era: ?Alguém aí duvida do resultado?? Naquela manhã, pessimista por natureza, encontrei-o na Redação e fui certificar-me: ?Será que dá mesmo?? Ele sorriu e respondeu: ?É claro. Essa Copa é nossa?.
Por isso, a morte de Evandro deve inspirar não apenas um minuto de silêncio antes de Brasil e Uruguai, mas encher de brios Felipão e Cia. no rumo do improvável penta."
"Evandro", copyright O Globo, 30/06/01
"Com a morte de Evandro Carlos de Andrade, o jornalismo brasileiro perde uma de suas mais fortes referências. Não chegamos a trabalhar juntos e durante quase 30 anos tivemos uma relação de amizade com altos e baixos, porque Evandro não era fácil – e nem fazia questão de ser. Firme e franco, ele não tinha a menor preocupação em agradar ou ser simpático. Rude por fora e terno por dentro. Profissionalmente, deixa como exemplo o rigor, a intransigência com os deslizes de moral e de gramática, e uma busca quase romântica da verdade. Para ele, a técnica e a ética eram uma coisa só. Sua principal obra, um raro e duplo feito, são duas das transformações mais bem-sucedidas do jornalismo brasileiro: a do GLOBO e a da Globo."