ELEIÇÕES 2002
“Um debate que dá sono e que acrescenta pouco”, copyright O Globo, 11/8/02
“Quem define é o Aurélio: debate é a ?troca de idéias em que se alegam razões pró ou contra, com vistas a uma conclusão?. Ou ?contestação, contradição, dúvida?. Ou ainda ?altercação, contenda, disputa?. Ou, finalmente, ?designação comum a poemas medievais dialogados, particularmente alegóricos e satíricos?. Isto posto, cabe a pergunta, o que é que a Rede Bandeirantes promoveu, no último domingo, com os quatro candidatos à presidência da República? Admitindo que algumas intervenções de Garotinho possam ser consideradas particularmente alegóricas e satíricas, mas que pouco ou quase nada tinham a ver com poemas medievais dialogados, sobram as três outras definições. Mas, fala sério, o que a Bandeirantes mostrou domingo com Lula, Ciro, Serra e o poético Garotinho não foi uma troca de idéias, nem uma contestação, muito menos uma contenda. Muito tempo no ar e pouco debate.
Houve um tempo em que debate de candidato na televisão era um programa animado, emocionante, revelador. E a Bandeirantes sempre esteve na frente. Mas as assessorias dos candidatos e a própria Bandeirantes criaram tantas regras para não favorecer um e outro que, hoje em dia, debate é quase tão eficiente quanto uma dose cavalar de Dormonid. No programa de domingo, às vezes, ficava a impressão de que não havia quatro candidatos no estúdio. Era só um. A direção fazia questão de promover cortes de imagens iguais para todos os candidatos. Não se trocavam idéias. As regras chegavam a ser surrealistas. Convidar quatro jornalistas para fazer perguntas sem que eles soubessem a que candidato caberia a resposta seria cômico se não fosse sério.
A melhor idéia da noite de domingo veio da TVE. Logo após o debate, o programa ?Olhar 2002? reuniu um grupo de jornalistas e analistas políticos para discutir a atração da Bandeirantes. Foi muito mais animado do que o próprio debate. E, surpreendentemente, o programa revelou o resultado de uma pesquisa feita naquele momento mesmo garantindo que 25% dos espectadores tinham resolvido mudar seu voto após a pretensa troca de idéias. Por que será?
O debate apresentou um perfil de cada candidato como se apresentam perfis no primeiro capítulo de uma novela. Lula foi o bonachão, otimista. Ciro era o circunspecto, de comportamento imperial. Serra, o bom moço. Garotinho, a atração do núcleo cômico. E só. Seria o bastante para alguém mudar seu voto? Se é, o debate ainda cumpre algum papel. Mas, sinceramente, acho difícil acreditar. Mesmo com pesquisa.
Pela leitura dos jornais, o que vem diferenciando esta campanha eleitoral das outras é que, agora, a mídia – ai, meu Deus, quando é que a gente começou a chamar imprensa de mídia? – está dando mais espaço aos candidatos. Até mesmo a mídia eletrônica – ai, meu Deus, quando é que a gente começou a chamar televisão de mídia eletrônica? – E as entrevistas que os candidatos vêm dando no ?Jornal Nacional?, no telejornal de Boris Casoy, na Record e, esta semana, no ?Jornal da Globo? têm sido muito mais informativas que o debate amarrado, aprisionado, cheio de regras. Um exemplo rápido: segunda-feira, Ciro Gomes mostrou mais da sua personalidade em 20 minutos de conversa com Ana Paula Padrão e Franklin Martins do que as intermináveis três horas de duração do suposto debate da Band. Ao ouvir uma pergunta sobre as acusações que pesam sobre seu candidato a vice-presidente, Ciro caiu do salto: ?Isso parece uma inquisição! Um interrogatório!?. Pois é, candidato, democracia é assim. Chato, né?”
“Quem quer debate? Pelo visto, ninguém”, copyright Época, 12/8/02
“?A imagem decidirá (outra vez) quem vai ser o futuro presidente do Brasil??
Os eleitores deveriam estar excitados: começaram os debates políticos na televisão. No domingo passado a Rede Bandeirantes recebeu os candidatos à Presidência da República. Em tese, nada mais estimulante que um debate político em ano eleitoral. Na prática, nada mais entediante que a conversinha bem-educada entre Lula, Ciro, Serra e Garotinho, todos zelosos por suas imagens de bons moços de família, engessados pelas rígidas regras antidebate da produção do programa.
Poderia ter sido um debate político – mas não foi. Exceto por alguns momentos excepcionais em que a encenação ameaçou sair do controle, por conta sobretudo do mau comportamento do ex-governador do Rio de Janeiro (claramente o mais déclassé dos candidatos, depois que Lula virou um lorde inglês), os debatedores não só não se enfrentaram como nem sequer dialogaram. Cada candidato usou seu tempo – de pergunta, de resposta, de réplica ou tréplica – para apresentar apenas sua melhor performance televisiva ao espectador. Vez ou outra José Serra, nervoso, revelou traços de humanidade sob o olhar arregalado. Ciro Gomes passava a língua nos lábios em ritmo de tique nervoso, mas não descuidou nem um minuto da pose de moço fino. Escassos sinais de vida emitidos pela platéia invisível foram severamente reprimidos pela apresentadora.
Quem queria debate saiu frustrado. Mas, pensando bem: alguém queria o debate? As pesquisas da segunda-feira indicam que o bom-mocismo agradou à maioria dos eleitores-telespectadores: Lula e Ciro, os mais contidos, foram os mais bem avaliados. O espectador, recolhido a sua privacidade, longe do espaço público, mas diante da televisão, não quer saber de estresse, de nervosismo, de grandes divergências, de enfrentamentos difíceis. Não que as pessoas fujam dos programas polêmicos ou violentos; até gostam bastante de ver uma briga na TV, desde que o assunto em questão não lhes diga respeito. Na posição de espectador, o eleitor quer distração – mas não quer compromisso.
O debate político foi engolido pela lógica do espetáculo. Hoje a cultura da imagem, no Brasil – país onde a sociedade vem sendo, há mais de 30 anos, domesticada pela televisão -, predomina sobre a cultura da palavra. O eleitor compra a ?marca de fantasia? apresentada por cada candidato. Compra o gozo imediato que o espetáculo lhe proporciona.
Por isso fica satisfeito com uma simulação de debate, em que as divergências decisivas não se explicitam. Não é à toa que os candidatos se parecem cada vez mais uns com os outros e dizem coisas cada vez mais parecidas (e mais vagas) a respeito de seus projetos de governo. Idéias e projetos de governo exigem tempo para ser explicados; diferenças ideológicas requerem esforço para ser entendidas. Uma escolha política feita com base em idéias e projetos compromete eleitores e candidatos. Mas parece que o eleitor-espectador brasileiro, iniciado nas práticas da democracia através da televisão, encara a eleição como um grande jogo, no qual o que vale é apostar em quem tem mais chances de ganhar. Para isso os candidatos não têm de apresentar projetos; muito menos expor claramente os problemas que o país tem pela frente. O importante é simular um ar de vencedor.
A imagem decidirá (outra vez) quem vai ser o futuro presidente do Brasil? (Maria Rita Kehl é psicanalista)”