DEU NO JB
Artigo de Alberto Dines ("A fome, o gargalo de Sarney e o
medo de ACM") publicado no espaço de opinião
do Jornal do
Brasil (4/1/03) suscitou resposta iracunda do ex e futuro
senador Antonio Carlos Magalhães. O teor de sua reação
revela
um político tentando intimidar um jornalista.
E que político. E que jornalista. A série As Ilusões
Armadas,
de Elio Gaspari (Companhia das Letras, 2002), uma radiografia
de corpo inteiro do regime militar, já nos dois primeiros
volumes (417 pp. e 507 pp.) traz indicações reveladoras
sobre
quem é quem e onde estava quem naqueles anos de chumbo.
A seguir, a carta do senador eleito (PFL-BA) dada no Jornal do Brasil de sábado, 11/1/03. Abaixo dela, o artigo que provocou a reação de ACM (4/1). Na seqüência, réplica do jornalista às acusações do ex-governador baiano (11/1/03). Por fim, cartas de leitores do JB sobre o assunto publicadas na edição de terça-feira (14/1) do jornal.(Luiz Egypto)
Copyright Jornal do Brasil, 11/1/03
“Sr. Alberto Dines, pensava, sinceramente, que o senhor já tivesse me esquecido. Acredito que o excelente livro do jornalista Elio Gaspari o tenha irritado bastante. Entendo. Aliás, o ódio atávico que demonstra está no âmago de uma questão bem mais importante, lá no Oriente Médio, na posição de Israel em relação aos palestinos. De logo, quero dizer que admiro os judeus, mas não a intolerância que hoje afeta o mundo inteiro. O problema, enfim, são os Dines de lá.
Conforta-me saber que, enquanto o senhor procede de forma tão leviana com relação a mim, o seu patrão e meu amigo, Dr. Nelson Tanure, me oferece sempre provas de apreço e respeito pela minha atuação na vida pública.
O senhor identifica o ministro Jacques Wagner como sendo meu inimigo. Erro grosseiro. Nem ele nem sua família. Somos adversários políticos, mas somos amigos. Quanto ao senhor Waldir Pires, acabo de derrotá-lo na eleição para o Senado com a ?pequena? diferença de 1,2 milhão de votos. E não custa informar que os baianos me honraram com cerca de 3 milhões de votos ? fato jamais ocorrido em eleição majoritária na Bahia. Aliás, acho que o senhor Waldir Pires foi para o cargo certo, pois dele já estava aposentado há mais de 10 anos, com a proeza de não ter trabalhado um dia sequer. Mas não quero aqui falar do Sr. Waldir Pires, já que o eleitorado baiano falou e encerrou o debate.
Fico feliz que o senhor acompanhe a minha forma física, mas quero que saiba que quem primeiro chamou a atenção para a necessidade de uma política nacional de combate à fome e à miséria e quem conseguiu aprovar, após uma árdua luta, medidas legislativas conseqüentes para enfrentar o problema fui eu, o seu ?amigo? ACM.
Sei que é muito difícil as pessoas se modificarem na sua idade. Mas tenho fé e espero que ocorra um milagre. De resto, acho que o antigo SNI deve sentir saudades de quando o senhor fingia-se de esquerda e atuava como alcagüete. Seja como for, desejo-lhe um feliz ano novo e que se encontre uma solução que ponha fim ao conflito no Oriente Médio, para satisfação dos democratas de todo o mundo. Antonio Carlos Magalhães, Salvador, por fax.”
Alberto Dines, copyright Jornal do Brasil, 4/1/03
Das surpreendentes conversões políticas ocorridas na disputa eleitoral, a do senador José Sarney foi expressa com a maior candidez: “Se temos que passar por esse gargalo ? passar pelo PT ?, então vamos passar logo”. Aquilo que se convencionou designar como maquiavelismo jamais foi vocalizado por um oligarca de forma tão singela e efetiva. Se na prosa literária o imortal esparrama-se, na reflexão política é de um laconismo exemplar.
Gracinha nada fortuita, Sarney é um consumado especialista em escapar de gargalos: depois de 1964, enquanto seus mais dignos colegas da UDN passaram à oposição, tornou-se representante legislativo da ditadura, presidente da Arena e, num prodigioso lance, safou-se do gargalo de uma tirania decadente passando à oposição. Os demais gargalos são de domínio público, demonstração plena e inconteste da sua maestria na arte de sobreviver.
O gargalo a que se refere Sarney precisa ser explicitado e, para isto, indispensável tirar do injusto anonimato o futuro senador ACM, que também andou perambulando pelas diferentes cerimônias de posse da última quinta-feira em Brasília. Seu propósito não declarado mas evidente era aproveitar a dieta que o tornou tão esbelto para escorregar pelo gargalo do “paz e amor”.
ACM quer que os adversários da Bahia o esqueçam. Difícil. Na Corregedoria Geral da União, está Waldir Pires, brava figura de libertário, alvo preferencial das perversidades do vice-rei da Bahia nos últimos anos. Homem certo no lugar certo para investigar, desvendar e punir os desmandos que se eternizam no Estado. E, como se não bastasse, terá que encarar no Ministério do Trabalho outro desafeto, Jacques Wagner, experimentada vítima da bonomia carlista.
O gargalo referido por Sarney não é retórico ou parabólico. Está mais para lapso freudiano. Reconhece aflições, advinha que passará por apuros. Lembra garganta (são primos etimológicos), gogó, goela, aperto, susto. ACM não o explicou com a franqueza do colega literato, mas o périplo pelos salões de Brasília foi uma tentativa de branquear (ou rosar, agora dá no mesmo) um passado marcado pelo mais puro e convicto reacionarismo.
Embora bem fornidos, a luta contra a fome vai pegar Sarney e ACM na esquina. E não apenas eles, mas o coronelismo nordestino em geral. A fome é um problema social, estado fisiológico, mas não é acidental, não cai do céu ou do inferno. Tem causas concretas, eminentemente políticas.
A inanição e a corrupção são as duas pontas do mesmo processo. A mesa miserável é conseqüência direta do banquete das oligarquias que controlam a máquina administrativa, desviam verbas, servem-se de financiamentos indevidos, protegem-se através de um Judiciário complacente e perenizam-se há gerações através do nepotismo.
A presença do padrinho ACM na posse do afilhado Ciro Gomes é preocupante porque a pasta da Integração Nacional será a alavanca para desintegrar o binômio improbidade-miséria. Ao contrário de Maluf ? “penetra” contumaz ?, ACM foi convidado e, além disso, tem faro.
A idéia do presidente Luiz Inácio de levar o primeiro escalão para despachar no Brasil Profundo é encorajadora, forma de desconcentrar o campo de visão dos governantes, mas também de visualizar para a sociedade a estreita vinculação entre diferentes fenômenos. Ao vivo e em cores, a fome poderá ficar mais visível mas só começará a ser erradicada quando a correlação entre causas e efeitos for devidamente exposta e reiterada.
A viagem dos ministros ao semi-árido funcionará como aprendizado, recurso didático, motivação. Mas, sobretudo, deve desentupir o tal gargalo de Sarney, de modo a estabelecer um sistema de vasos comunicantes regular e contínuo. Para destrancar o atraso, arejar o espírito e desintoxicar nosso processo decisório. Caso contrário será arrolada na esfera do marketing social.
Sarney usou a figura do gargalo para expressar desconforto e incômodo, mas poderia ter falado em pedra no sapato, comichão nas costas, mosca nas ventas. Tanto faz. O importante é que a sensação seja duradoura.
Alberto Dines, copyright Jornal do Brasil, 11/1/03
Cartas pessoais pertencem à esfera privada, mas a contestação do ex/futuro senador Antonio Carlos Magalhães ao meu último artigo, embora destinada à pessoa física, foi encaminhada a um jornal, por definição espaço social. Apesar da ambigüidade que caracteriza o remetente, prevalece sua intenção maior de torná-la pública, justifica-se portanto a divulgação da tréplica. E a utilização da primeira pessoa do singular num episódio de interesse plural e concernente a todos os que lutam para livrar a sociedade brasileira do preconceito e da cizânia fratricida.
O artigo “A fome, o gargalo de Sarney e o medo de ACM” trata da política brasileira, focalizou dois longevos políticos brasileiros e foi assinado por um jornalista brasileiro. Em momento algum mencionaram-se direta ou indiretamente religiões, crenças, tradições, raças ou etnias dos oligarcas em questão.
Todos os brasileiros são iguais perante a lei. O direito de opinar, como se depreende da Constituição, não pode estar sujeito à “limpeza do sangue” (para usar a expressão consagrada pela Inquisição ibérica) nem à qualificação cultural ou social daqueles que procuram exercê-lo.
Desqualificar um cidadão no pleno gozo de suas prerrogativas atribuindo-lhe dupla lealdade é estabelecer um clima de suspeição e segregação. Apartheid político. Gueto civil. Hitler começou assim, com os cidadãos de segunda classe confinados à condição de párias, sem respeito nem direitos. Acabou acionando os fornos crematórios, tudo isso no curto espaço de nove anos (1933-1942).
Herr ACM está no bom caminho. A direita brasileira mostra consistência ? devidamente disfarçada e lavada dos pecados porque, por oportunismo, votou em Lula e pretende escapulir do gargalo. Nossos reacionários, dispensados do combate ao comunismo e ao socialismo, retomam a velha pauta de ressentimentos contra os fundamentos republicanos e igualitários.
Ao longo destes 50 anos como jornalista profissional só duas vezes foi-me lembrado que era diferente ? era judeu. A primeira vez logo depois do AI-5, janeiro de 1969, quando meu carcereiro, o falecido general Montagna indagou no inquérito como o Jornal do Brasil, um jornal católico, fizera de um jornalista judeu seu editor-chefe. Respondi-lhe que a direção do jornal estava preocupada com a qualidade e não com a opção religiosa ou cultural dos seus funcionários.
Evitei dizer que à direção do JB não interessava a forma do meu prepúcio. Não queria criar caso com um militar sabidamente prepotente e sanguinário menos de 15 dias depois de instalada formalmente a ditadura.
Digo-o hoje ao legítimo herdeiro do general Montagna, Antonio Carlos Magalhães: aos leitores do JB e demais jornais que publicam estes artigos não interessa se fui circunciso ou se comemorei o bar-mitzva. Interessa a validade das minhas opiniões sobre política nacional ou internacional.
ACM não pode proclamar impunemente que, por ser judeu, devo conhecer o meu lugar e jamais ultrapassá-lo. Se tem sido poupado pela grande imprensa e agora é lembrado por alguns de seus pecados, o problema é da grande imprensa e não de um jornalista educado dentro dos princípios da ética e da moral judaicas.
Minhas posições na questão do Oriente Médio são conhecidas: abomino o terrorismo e detesto o premiê Sharon. Não há nuances. A solerte acusação de que associei fome-corrupção e miséria-oligarquias motivado pelos acontecimentos no Oriente Médio só pode ser fruto de um desvario fugaz, disfunção psíquica permanente ou parte de um organizado movimento que se aproveita do trágico conflito israelo-palestino para fomentar a maior articulação anti-semita mundial desde o fim da 2? Guerra.
Prova de que acertei na mosca é a estúpida manifestação deste quase legislador que perdeu compostura e dignidade diante da evidência de que a Bahia libertária está muito bem representada no novo governo.
A carta de ACM é um escárnio ao vernáculo, agressão à decência. Envergonha a tradição parlamentar brasileira, humilha a retórica baiana e deslustra a profissão de jornalista já que o signatário apresenta-se como homem de imprensa. Não é. Também rasgou o diploma de médico e, na véspera da posse, corre o risco de ser novamente processado.
Antes que isso aconteça, importante lembrar ao novo prócer do liberalismo um capítulo importante da história contemporânea. Já não existem os “Dines de lá” ? foram exterminados pelos ACM de lá, os ucranianos a serviço do nazismo.
Copyright Jornal do Brasil, 14/1/03
** Não pude resistir ao impulso de cumprimentar Alberto Dines pelo artigo “O apartheid de ‘Herr’ ACM” (11/10), principalmente porque acabei de ler os dois primeiros volumes de As ilusões armadas, de Elio Gaspari, e o general Montagna é um dos mais lamentáveis personagens do livro. Ainda que secundaríssimo. Acredito que ACM só aparecerá no próximo volume, ele que foi um dos que ajudaram a liquidar a ditadura, depois de servir fielmente a ela (e dela se servir). Em analogia ao que Dines diz sobre a adesão oportunista da direita a Lula, esse cabo eleitoral de Tancredo em 1984 teria lá suas sábias razões. Sérgio Luiz Mansur, Rio de Janeiro, por e-mail.
**A carta de ACM a Alberto Dines lembra Sartre quando dizia que todo anti-semita sempre declara ter um amigo judeu. O neo-anti-semita ACM faz questão de afirmar que admira os judeus. Posto isto, resvala para o discurso nazistóide, falando-nos dos “Dines do Oriente Médio”. Ou seja, confunde o nosso jornalista com os judeus que a ele diz se igualarem em suas “intolerâncias”. Repete-se a velha arenga racista de que todos os judeus, ou todos os negros, ou baianos, no fundo são iguais entre si. Para tanto, basta realçar um traço e generalizá-lo. Feito esse raciocínio, acaba também revelando o quanto o conflito na Palestina confunde política com sentimentos antijudaicos enraizados na mente ocidental. Que o Sr. ACM se autodeclare parte dos democratas do mundo já é espantoso, mas que se revele tão preocupado com a política médio-oriental sem dúvida denigre tanto não judeus quanto judeus que, como Dines no JB, almejam e lutam há anos por uma paz justa e duradoura naquela região. Paulo Blank, Rio de Janeiro, por e-mail.
** Como judeu, soldado e amante da liberdade e da democracia, intolerante para com qualquer forma de racismo, discriminação racial ou agressão ao ser humano (física, ética e moral), solidarizo-me com a carta-resposta de Alberto Dines (11/1) ao senhor ACM, que diz admirar os judeus (?). Imagine se não nos admirasse! David Zylbergeld Neto, São Paulo, por e-mail.
** A resposta de Alberto Dines à réplica de ACM é definitiva. Enquanto ACM utiliza o sarcasmo e a ironia como formas e o segregacionismo como conteúdo, Dines responde de forma direta, objetiva e contundente. A flecha lançada por ACM, que pretendera abater seu alvo, retorna-lhe como um boomerang. Não há lugar no Brasil de hoje para qualquer forma de segregação. Elza Gouvêa, Rio de Janeiro, por e-mail.
** Publicamente, como católico e cidadão de direita que acompanha há anos seus artigos, muitas vezes discordando de suas idéias, presto solidariedade a Alberto Dines no momento em que é atacado por uma das figuras mais controvertidas do país, amigo dos militares quando deles se serviu fartamente, e que agora se apresenta como herói do povo baiano, que não merece ter seu Estado representado por um paladino da ditadura. Paulo Marcos Gomes Lustoza, Rio de Janeiro, por e-mail.
** A contundência da tréplica de Alberto Dines (11/01), confrontada à réplica de ACM, é daquelas peças literárias que passam à história como definitivas, incontestáveis, humilhantes e referência (no jargão jurídico dir-se-ia jurisprudência firmada). Roberto do Lago, Rio de Janeiro, por e-mail.