AOL TIME WARNER
Nelson Hoineff (*)
A Time Warner começa a empurrar para fora de seu nome a incômoda sigla AOL, que a gigante da produção de conteúdo jamais engoliu. Tecnicamente, aliás, é o inverso: a proposta de mudar o nome da corporação partiu do próprio diretor-geral da AOL, Jonathan Miller, e vai ser analisada em setembro pelo conselho de administração da empresa ? que só não aprovará se Steve Case, o lendário presidente de honra da AOL e ainda membro do conselho, conseguir impor sua influência. Pela primeira vez desde a fusão, em 2001, surge uma autêntica compatibilidade de gênios: a AOL não quer a Time Warner e a Time Warner não quer a AOL.
É uma atitude simbólica, a de Jonathan Miller, mas que transborda significação. Menos de três anos depois do estouro da bolha das empresas virtuais, uma outra bolha começa a se formar justamente no setor que estas empresas mais afetaram: o da produção de conteúdo. Na base está o modelo de digitalização em curso das plataformas de transmissão e recepção de TV. E também as capacidades de reprodução de conteúdo por mídia que se tornaram possíveis a partir da revolução digital e que literalmente substituíram meios de reprodução tradicionais que hoje ganham sobrevida apenas pela insistência da industria de eletroeletrônicos.
Quase a totalidade dos sistemas de som colocados à venda no mercado brasileiro, por exemplo, constitui-se de sistemas integrados compostos por um amplificador, um CD player (que não é mais vendido separadamente) e um par de decks de fita-cassete, que quase ninguém usa mas tem que comprar, mesmo que queira simplesmente ouvir um CD em casa.
Conta alta
O extraordinário, no entanto, reside nos aparelhos de radio AM e FM que vêm integrados a estes sistemas. Uma criança de 5 anos, quando chegar ao segundo grau, já não acreditará que isso tenha sido possível há tão pouco tempo. Um receptor de rádio fixo, capaz de captar duas dezenas de estações pelo ar, com toda a falta de qualidade que isso implica, quando é possível, pela web, sintonizar milhares de estações, de qualquer parte do mundo, com qualidade digital, sem qualquer tipo de interferência.
O que leva a indústria a fabricar rádios de deck com tecnologia tão obsoleta? O que leva os fabricantes a empurrar compulsoriamente sobre o consumidor cassetes que já não têm mais utilidade alguma?
A razão é análoga à que faz um operador empurrar ao assinante algumas dezenas de canais pelos quais ele não tem o menor interesse; a fazê-lo pagar por canais infantis mesmo que ele não tenha crianças em casa e assim por diante.
O outro lado da moeda é que as plataformas digitais ? não importa se estamos falando de radio, televisão ou internet, porque os sinais são da mesma natureza ? têm uma capacidade infinita de distribuição de conteúdo e, portanto, estimulam sua produção. E mais: já não se pode falar de um conteúdo adaptado a todas as mídia ? como acontece, por exemplo, no caso de um filme cinematográfico que é distribuído pelos cinemas, por VHS, DVD, TV aberta, TV por assinatura, pay-per-view, streaming etc ? mas de conteúdos próprios para cada uma das mídia. O que se produz hoje para a internet, por exemplo, guarda pouquíssima ou nenhuma semelhança com o que é produzido para cinema e distribuído também pela internet (mesmo que na forma de subproduto); assim como o que se vai produzir para uma televisão digital com capacidade interativa guarda semelhanças mínimas com o que é produzido pela a TV analógica e transmitido digitalmente.
A demanda por programação é portanto gigantesca. A grande questão é a seguinte: de que maneira se poderá comercializar tudo isso? A resposta, é claro, não está na ponta da língua e seguramente foge a tudo que tenha passado pelas pranchetas dos grandes estúdios de produção, das grandes redes de televisão, dos grandes operadores e dos distribuidores de conteúdo de qualquer natureza. As novas mídia se apóiam numa oferta maciça de conteúdo próprio; há demanda para isso e uma crescente capacidade de produção no mundo inteiro. Só não há como pagar toda essa conta.
A grande batalha
Há portanto uma nova bolha no ar, que está migrando do mundo da AOL para o mundo da Time Warner. A deterioração desse casamento de 350 bilhões de dólares já era prevista há muito tempo. Já no início de 2002, quando anunciou sua renúncia, o principal executivo da companhia, Gerald Levin, lembrava que há mais na vida do que resultados trimestrais. Num artigo para o Moneyweb seis meses depois, Timothy Wood assegurava que nada na fusão apresentava qualquer sinergia, a começar pelo nome da nova companhia.
Nesse contexto, tirar o AOL da Time Warner é como tirar o sofá, na anedota do marido traído. A complementaridade de interesses capazes de existir entre um provedor de conteúdo e um grande produtor e consumidor dele não se restringe a aspectos básicos, como o cruzamento de vendas online ou o balanço entre receitas provenientes de assinaturas e publicidade, mas tem um inquestionável ponto focal na resolução de uma equação proposta pelas mídia digitais: como distribuir todo o conteúdo altamente pulverizado que elas necessitam e conseguir gerar lucros com isso.
Para os produtores e exibidores brasileiros de conteúdo é bem mais fácil se esforçar para entender o que um elefante deve fazer para levantar vôo. Há redes de TV que vivem com uma receita anual de 5 milhões de dólares. Quando se pensa em estimular a regionalização maior da produção depara-se com a inviabilidade econômica bem antes dos temores de desfaturamento das redes. Pensa-se na utopia de uma industria do audiovisual voltada para o abastecimento de um mercado de cinemas de 100 milhões de ingressos ao ano, 10% dos quais para o mercado local e de uma televisão que, com exceção da Globo e lampejos em duas outras redes, simplesmente não produz nem para o seu próprio mercado, muito menos cogita em terceirizar essa produção completamente virtual.
Por tudo isso, não deixa de ser quase surpreendente que exista hoje, no próprio âmbito do Ministério da Cultura, uma grande batalha contrapondo a necessidade de apoio ao chamado "produto cultural" com o estímulo que deva ser dado a uma concepção industrial de produção de conteúdo. Precisamos produzir mais e melhor, apregoam, para sermos competitivos. Todo mundo já sabe que tem que produzir mais, melhor e de forma radicalmente diversificada. O problema agora é que, como nos velhos episódios de Star Trek, há uma imensa bolha no meio do caminho.
(*) Jornalista