Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As carpideiras da senadora

PT vs. DISSIDENTES

José Antonio Palhano (*)

Independentemente da expulsão da alagoana Heloísa Helena das hostes petistas, uma coisa é certa: a moça tem causado um baita estrago na chamada mídia de opinião tupiniquim. Mais um pouco e já não será suficiente bater no PT com a gana de um Torquemada contemporâneo. Necessárias se farão providências mais, digamos, compatíveis com a aura de divindade sofredora e padecente das seculares secas nordestinas e da indiferença social das Casas-Grandes que teimam, entra século e sai século, em fazer pouco das famélicas e discriminadas senzalas (com minúscula mesmo) que, conforme a reza braba dos justiceiros coleguinhas, cabe em madame na exata medida com que o cintilante e aristocrático sapatinho de vidro se amoldou ao imaculado e cheiroso pé da felizarda plebéia.

O pranteador-mor e puxador do samba-procissão pró-beatificação de Heloisa Helena é o nosso bom e longilíneo Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo. Que, do alto da sua respeitável milhagem jornalística e viajora, não perde oportunidade em defendê-la com unhas, dentes e dedos no teclado, de forma a vendê-la na conta de uma inocente Chapeuzinho Vermelho posta à sanha dos seus fariseus, sanguinários e hidrófobos lobos maus correligionários.

Sua última performance deu-se em "Os amigos e a nudez do rei" (9/12). Inspirado no artigo "Até quando, companheiro?", do jurista Fábio Konder Comparato, publicado na véspera na mesma Folha, desceu mais uma vez o sarrafo no governo Lula por conta do contencioso deste com seu (de Rossi) xodó das Alagoas. Gozado que o dito artigo inspirador, um ácido libelo contra o presidente da República, não dedica uma mísera vírgula, nem contra nem a favor, à dita HH.

Registre-se, se o caso é apelar para qualquer pretexto defendendo posições ou pessoas contrapondo-as a outras posições ou pessoas na obsessiva busca do discurso politicamente correto, que o professor Comparato avisa logo de cara em seu bilioso texto: "Escrevo-lhe de público e não em particular, como convém entre amigos, por uma simples razão. Você é, agora, na qualidade de presidente da República, o principal empregado do povo".

Trejeitos cafonas

Convenhamos, preservados o portentoso currículo e a ilibada reputação do escriba, trata-se de manobra no mínimo questionável por tentar, inutilmente, ocultar uma escandalosa malandragem semântica. Ou apelação barata. Esse negócio de ocupar a mais nobre página do maior jornal do país para destilar decepções e amarguras de natureza pessoal, a despeito de injetar quaisquer e patriotas propósitos, soa de uma pieguice francamente intolerável. Na verdade, é até meio cabotino. Mais verdade ainda, brandir em páginas de opinião sentimentos de amizade inesperadamente aviltados, quando o autor da (suposta) malvadeza é o presidente do Brasil (tratado de você?!) e o ofendido um titular da USP, não passa de um pito fascistóide e, portanto, extemporâneo e condenável, com todo o respeito.

Uma coisa é pressionar o mandatário da nação com ferramentas públicas e impessoais, e portanto jornalísticas, e outra bem diferente é dar uma de amigo ressentido e decepcionado utilizando para tal espaços jornalísticos e, portanto, públicos. O veterano e inspirado Clóvis Rossi, que chegou a tascar um moralista "amigos" em seu título, escorregou espetacularmente na casca de banana.

Feita a observação, voltemos à nossa candidata a mártir e aos fundamentalistas marqueteiros da causa. Como já ficou rouca de escrever a insuspeita Tereza Cruvinel (O Globo) ? que não se cansa em defender as bandeiras da mulher brasileira, seja senadora, alagoana ou não ?, Dona Heloísa Helena entrou nessa parada por sua livre e espontânea vontade. Sua irresistível vocação para incorporar uma espécie de Joana D?Arc da caatinga não foi plantada nem irrigada por Lula, José Dirceu ou José Genoíno. É de berço mesmo.

Dessa forma, se a intenção é defendê-la e badalá-la ao limite da adoração derramada pura e simples, podemos começar por dar os nomes aos bois: seu palavreado rústico, que não raro lambe a grosseria e o chulo, diz mais dos seus sofrimentos e da sua origem desfavorecida que a mania, por parte de jornalistas, de diuturnamente se exibirem contra o governo ? algo que supostamente os carimba como independentes ? denunciando este como carrasco daquela e, assim, responsabilizando-o pelos seus trejeitos cafonas, suas diatribes rançosas e seus surtos de sectarismo.

Padim Ciço

O PT, e em última instância, o governo, já erra o suficiente para encher cadernos, suplementos e edições extras para que nós, profissionais ditos formadores de opinião, caiamos na xumbrega, paternalista e sentimentalóide tentação de vitimizar e/ou santificar quem quer que seja e lhe cobrar a fatura.

Roberto Pompeu de Toledo ("A santa e a senadora" Veja, 10/12) deu um jeito de comparar HH a Maria Madalena, aquela das Escrituras. Quase foi salvo pelo belíssimo texto de sempre, a fina ironia e o proverbial desprendimento em ministrar gotas de cultura geral em pais tão estupidamente alienado e iletrado. Já Leonardo Boff foi puro delírio, sapecando logo um hagiológio. No Jornal do Brasil (12/12), declarou HH possuída de "iracúndia sagrada", definiu-a como herdeira dos profetas e de Jesus (por manter deles a "chama viva"), decretando, furibundo, que "quem não se indignar, é inimigo da própria humanidade". De quebra, maldisse mais uma vez a Igreja Católica, "que sempre caça o pensamento divergente", não resistindo a um "fui uma das vítimas" choroso e latino que só. O Vaticano caça? De AR-15, escopeta, arco-e-flecha ou estilingue?

O Partido dos Trabalhadores tem suas regras, estatutos e cartilhas. Até antes da posse, era repetidíssimo clichê exaltá-lo como a única agremiação partidária digna do nome nestas paragens, justo por sua férrea disciplina. Mostrar-se decepcionado com o fato de ter mudado após conquistar o poder é, no caso de jornalistas, de um infantilismo constrangedor. Seus revoltosos configuram uma questão de natureza íntima e menor. O resto é conversa fiada. Leiam-se e interpretem-se as bulas da casa e pronto.

Heloísa Helena não se presta à vitimização. Chegou lá por ser forte e obstinada. Em termos estritamente políticos, porém, e é de escandalizar que certos colegas não enxerguem, a nobre senadora não soma. É emocionalmente lábil, ideologicamente defasada e partidariamente desagregadora. Deixando de lado o secular atavismo relativo à doutrina ibérico-católica, capaz de ainda hoje fazer um Clóvis Rossi e outros posarem de neocônegos paginadores de santos, resta a ela procurar seu lugar, na estrita proporcionalidade da sua dimensão política e da sua condição de comum mortal.

Pelo tranquear da mula, porém, não demora e surge um bem-intencionado a anotar suas medidas e a correr o chapéu, a fim de providenciar uma estátua que ombreie a do Padim Ciço. A ser plantada bem ali ao seu lado.

(*) Jornalista e médico