CASO SARNEY-MURAD
Ana Lúcia Amaral (*)
Os episódios envolvendo a ação policial na coleta de provas para a instrução de ações penais (ou para a prisão de indiciados ou réus para se evitar que impeçam o prosseguimento dos processos seja pela fuga do país, seja pela intimidação de testemunhas) têm sido mostrados, pela mídia em geral, sempre pela ótica de quem sofre a ação policial.
No país da impunidade ? considerada esta como fator de incentivo para a escalada da violência de todos os tipos ?, quando certas figuras detentoras de poder econômico e/ou político têm suas ações e omissões investigadas, o que se dá através de procedimentos legais previstos em códigos em vigor há muito tempo, e que se realizam por iniciativa do Ministério Público com a participação da Polícia Judiciária e sob o crivo do Poder Judiciário, as primeiras referências que são lembradas são a Santa Inquisição e o período ditatorial.
Que os investigados/processados usem de tais argumentos é compreensível, pois em nome do direito à liberdade os acusados têm até o direito de mentir, não sendo obrigados a incriminarem a si próprios. Direito de defesa é direito de defesa, ainda que não concordemos com os seus termos.
Assim se deu no caso Fonte-Cindam, com a diligência de busca e apreensão na casa do ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes; na soltura do Sr. Salvatore Cacciola pelo presidente do Superior Tribunal Federal (STF); na soltura dos responsáveis pelo escândalo envolvendo o Banco Nacional (primeiro socorrido pelo Proer), após sentença condenatória, considerados como pessoas de passado "irreprochável" pelo mesmo presidente do STF; a prisão e soltura do ex-senador Jader Barbalho; e, mais recentemente, o cumprimento de mandado de busca e apreensão em empresa de titularidade da governadora Roseana Sarney e de seu marido.
Em todos esses episódios, os investigados/réus ? sempre assistidos pelos advogados mais renomados, quando não ex-ministros das Cortes Superiores ? são, além de amparados por decisões judiciais, contemplados por declarações bombásticas de apoio pelos respectivos magistrados autores, além de outras emitidas por personalidades da vida política nacional, do presidente da República a editores e colunistas de jornais e emissoras de rádio e TV.
Em função de tais ocorrências, vez por outra surgem projetos de emenda constitucional ou projetos de leis ordinárias voltados a colocarem todos os tipos de óbices na tramitação de processos dessa natureza. Quando não conseguem aprovação ? pois parte da mídia ainda não sucumbiu ?, optam pela desqualificação dos operadores do direito incumbidos de fazerem processar aquelas ações judiciais, quer sob o aspecto cível quer criminal.
Cena de faoreste
Vamos nos ater aos dois mais recentes, envolvendo o ex-senador Jader Barbalho e a empresa da governadora do Maranhão Roseana Sarney, ambos relativos aos casos de corrupção na extinta Sudam, extinta exatamente pelo grau de corrupção que consumiu os recursos públicos a ela destinados.
Lemos e assistimos a matérias nas quais se pretendeu discutir o acerto ou não de ter sido algemado o ex-senador Jader Barbalho por ocasião de sua prisão preventiva. Não percebi qualquer tentativa dos jornais em buscar uma informação técnica e isenta. Deu-se projeção, tão-somente, ao que disse o presidente do TRF-1? Região ? que em poucas horas mandou soltar o ex-senador ? reformando decisão de mais de 40 laudas lançada em autos de vários volumes. Ou seja, uma decisão que demandou exame de volumosa documentação, exigindo dias de trabalho do seu prolator, foi desfeita sem que a autoridade judiciária competente tivesse tempo hábil para o reexame daquela documentação, e o mesmo tempo para sua reflexão. Com agilidade surpreendente, o presidente do TRF-1? Região não só reformou a decisão que determinou a prisão como se deu ao deleite de achincalhar decisão de colega seu. Juiz de primeiro grau é, sim, colega de juiz da instância superior, gostem eles ou não.
Nesse mesmo episódio, mais uma vez fomos brindados com a incontinência verbal do presidente do STF, que teria declarado não se conformar em ver um ex-senador algemado, que parecia coisa de faroeste. Acredito que o paciente leitor também deve ficar inconformado ao saber como pessoas que se propõem a ocupar os mais altos postos da administração pública podem usar desses mesmos cargos para cometer atos contrários à lei. Se o fizeram devem ser tratados como qualquer infrator da lei, devem receber o mesmo tratamento previsto em lei.
Juiz nosso
Outro caso de polícia envolvendo atividades da extinta Sudam: desta feita a investigação envolve empresa na qual a governadora do Maranhão é sócia majoritária, sendo administrada por seu marido, que já ocupou cargo na administração federal quando era presidente o seu sogro, o hoje senador José Sarney, do PMDB do Amapá. A propósito, o ex-senador Jader Barbalho também ocupou altos postos no governo Sarney.
Para conhece um pouco de História do Brasil, ou algumas obras de escritores brasileiros sobre a política na vida nacional, já deve ter lido ou ouvido falar de coronelismo e patrimonialismo. O curioso é que não são apenas registros do passado, pois continuam ainda muito vivos na vida nacional.
De tantos autores que já estudaram a forma de organização econômica, social e política do Brasil, valho-me de um dos mais conservadores, para não dizerem que é conversa da "esquerda atrasada" ? como diria o presidente da República, renomado sociólogo. Para os que já leram, e para os que não leram, sugiro uma consulta ao trabalho de Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras. Nesta obra são considerados vários tipos sociais surgidos no Segundo Império, mas que continuaram e continuam sendo encontrados na sociedade brasileira. Refere-se o autor ao oligarca, coronel, manda-chuva, caudilho, oposicionista sistemático, governista incondicional, genro, cunhado, sobrinho, afilhado, os encostados da burocracia, o político profissional, o juiz nosso, o delegado nosso etc.
Esse elenco de personagens da vida nacional, registrados em romances, filmes e novelas televisivas, parecem protagonizar o episódio envolvendo o clã Sarney.
Ombro amigo
Reagiu iradamente a governadora Roseana, pré-candidata do PFL à presidência da República, ao que chamou de "invasão" e "traição", e outras coisas mais, o cumprimento de ordem judicial de busca e apreensão em sua empresa. Segundo o noticiado, a governadora do Maranhão cobrou satisfações a respeito não só junto ao presidente da República, como junto ao presidente do STF. Ou seja, um mero caso de polícia é motivo para uma governadora de um Estado da Federação ir cobrar satisfação com a maior autoridade da República!
Reclamou a governadora que não fora avisada da diligência!!! Ora, será que a governadora não tem nenhuma assessoria jurídica para lhe explicar que diligências voltadas à coleta de provas não são avisadas ao investigados, exatamente para que não corram a tentação de destruí-las? Não se perca de vista, como dito antes, que ninguém é obrigado a se auto-incriminar, estando até autorizado a mentir. Será que a governadora do Maranhão, candidata ao mais elevado posto do país, não teve a idéia de perguntar ao advogado que faz sua defesa em ação civil por improbidade administrativa, e que versa sobre os fatos objeto da investigação criminal que tenta evitar, o que estaria acontecendo naquele momento? Será que somente o ministro Marco Aurélio, presidente do STF, poderia lhe prestar esses esclarecimentos? A esse respeito, S.Exa. teria declarado que, contatado por telefone, ofereceu seu ombro amigo à governadora do Maranhão, que estaria a espernear por ser leiga em direito. Quanta compreensão!
Ranger de dentes
A governadora do Maranhão e os integrantes de seu partido, seguidos por boa parte da imprensa, tentam fazer prevalecer a versão sobre o verdadeiro fato. A empresa da governadora Roseana Sarney teria sido invadida! Invasão?!? Ordem judicial cumprida por autoridade policial, acompanhada por representantes da empresa e seus advogados é invasão? Surpreendida a governadora? Mas já é ré em ação civil de improbidade que tramita na Justiça Federal no Maranhão, onde já foi citada.Qual é a surpresa?
Enquanto fica a governadora "esperneando", bem como os correligionários do PFL e seu pai do PMDB, alegando manobra de período eleitoral do outro candidato da coligação governista, o ex-ministro José Serra, e parte da imprensa lhe fazendo coro, além da oposição desarticulada ? PT e PPS irem nas águas turvas do PFL é sofrível! ? folhas e folhas impressas e minutos caríssimos da TV são gastos com o mesmo blablablá.
E nesse blablablá ficou de lado algo que era para ser motivo de alento, principalmente em país cujo elevado grau de corrupção e impunidade fomenta a descrença da população nas instituições públicas: em investigação criminal que começou há cerca de quatro anos, onde são apurados desvios de recursos do erário, praticados com a efetiva participação de autoridades da administração pública, fatos esses objeto de numerosas matérias pelo dito jornalismo investigativo, um órgão do Ministério Público Federal requereu ao Juiz Federal que fosse determinada a apreensão de documentos em empresa sobre a qual há fortes indícios de ter participado de operações ilícitas de outras empresas originalmente investigadas. Independentemente das pessoas envolvidas, o Juiz Federal de Palmas (TO), onde estão centralizadas as investigações sobre negócios ilícitos efetuados pela Sudam em outros três Estados da Federação, deferiu a ordem, enviando carta precatória para o Juiz Federal de São Luís (MA) que, recebendo-a, determinou à autoridade policial o seu fiel cumprimento.
Não tinha o órgão do MPF investigador que anunciar a quem quer seja, e muito menos à governadora, que iria requerer a diligência de busca e apreensão. Não tinha o Juiz Federal, ao qual foi distribuído o inquérito, que avisar o presidente do Tribunal Regional Federal da respectiva jurisdição, e muito menos à governadora do Maranhão. Não tinha o delegado da Polícia Federal que avisar ao diretor da Polícia Federal, e esse, ainda que soubesse, não tinha que avisar ao ministro da Justiça que, ainda que soubesse, não tinha que avisar o presidente da República. E ainda que este soubesse, não poderia avisar a governadora candidata à presidência da República. E por quê? Por que não está previsto em lei, e agentes públicos só podem fazer o que a lei manda.
E não é que neste país surrealista houve ranger de dentes porque certas autoridades não fizeram o que não poderiam fazer?
Limites legais
Pelo jeito a governadora do Maranhão, os seus correligionários do PFL, a oposição e boa parte da imprensa não sabem que não pode mais continuar existindo o juiz nosso e o delegado nosso considerados por Oliveira Viana.
Certas autoridades estão ainda presas àquela "norma" um tanto quanto generalizada em nosso país, que dita "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". Ao que tudo indica, para boa parte da classe política, quando a lei é cumprida, sem ser considerado quem será contrariado, é ato de inimigo. Eram amigos quando se empanturravam com a coisa pública, o que não é conforme a lei. Quando se pretende pôr cobro a esse estado de corrupção endêmica, surge a traição!
Cogitação sobre quem sabia do quê e quando em nada pode manchar a diligência que foi, ao que tudo consta, realizada dentro dos estritos limites legais. Divagações sobre vazamentos não são confiáveis, diante dos noticiados telefonemas que foram feitos durante toda a diligência quer pela própria governadora do Maranhão, quer por outras pessoas de seu grupo político. Ao que consta, incumbiu-se ela e o presidente do PFL de dar ampla divulgação. Considere-se, ademais, que a referida diligência não deve ter passado despercebida por tantos que tinham que estar na empresa, ou no prédio onde está sediada, não sendo de se esperar que aqueles que porventura tenham tomado conhecimento do que ocorria tenham se sentido compelidos a guardar silêncio a respeito.
Foro especial
Ainda que algumas informações sobre o material apreendido tenham vindo ao conhecimento público, tal como o valor em dinheiro encontrado no estabelecimento, essas não tem o condão de infirmar o que lá foi realizado. Só deixou mais uma dificuldade para a governadora Roseana: não é crime ter dinheiro em espécie nos estabelecimentos, é verdade. Mas o montante encontrado foge de qualquer prática negocial, ficando difícil explicar por que uma empresa precisa de tanto dinheiro vivo em caixa. Apenas a título de ilustração, o presidente da França Jacques Chirac ficou em apuros porque comprou, para viagem particular, bilhetes aéreos em dinheiro, e não com de cartão de crédito ou cheque…
O ar de ultrajada da governadora Roseana ? que andou dando entrevistas dizendo que espera apuração total dos fatos investigados ? fica menos convincente, para quem conhece um pouco das normas processuais, pelo simples fato de ter se valido de mandado de segurança, para o qual já obteve liminar para impedir acesso ao material apreendido, através de decisão do já conhecido presidente do TRF 1? Região ? o mesmo que achincalhou o Juiz Federal de Palmas que mandou prender Jader Barbalho ?, bem como por ter buscado a proteção através de invocação de foro especial junto ao Superior Tribunal de Justiça (do qual seu advogado já foi integrante) por ser governadora.
Ora, é sabida a dificuldade em conferir agilidade a investigações junto aos tribunais superiores. Talvez seja essa a razão para a governadora do Maranhão ter se socorrido da invocação de foro especial. A pretendida celeridade na conclusão do inquérito criminal, como declarou a candidata à presidência da República, ficará postergada até que perca o foro especial quando deixar de ser governadora. Mais do que nunca precisa a governadora vencer as eleições para ocupar a presidência da República, transferindo assim seu foro especial para o STF, onde, ao menos, terá o ombro amigo do ministro Marco Aurélio.
Diante do esperneio do PFL, que até teria deixado o governo ? pero no mucho ?, das declarações de integrantes da oposição e do barulho de boa parte da imprensa, sem falar da atuação das autoridades judiciárias, quer no exercício de sua jurisdição, quer como cidadãos, proponho ao paciente leitor uma reflexão: será que este país suporta a plena legalidade, a verdadeira licitude no trato da coisa pública? Será que licitude e legalidade põem em risco a tal da "governabilidade"? Teríamos chegado no limite tolerável de legalidade e licitude, pelas elites deste país?
(*) Procuradora Regional da República em São Paulo, associada do Instituto de Estudos Direito e Cidadania (IEDC)