Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As limitações do jornalismo e da política

DEMOCRACIA & CAPITAL

Ivo Lucchesi (*)

Às vésperas de irromper a alegria desmedida, própria do reinado de Momo, duas notícias foram manchetes em jornais: "Bush terá o maior orçamento militar desde a Guerra Fria" (O Globo, 5/2/02) e "FH abre o caixa em 2002" (Jornal do Brasil, 7/2/02). Em comum, têm ambas a questão do orçamento e de sua respectiva destinação. De um lado, Bush, presidente da pretensa hegemônica superpotência mundial; de outro, FH, presidente da suposta "Ilha da Fantasia", em meio ao "arquipélago" do flagelo latino-americano. Enquanto o primeiro pretende repassar a singela verba de 379 bilhões de dólares ao Pentágono, em prejuízo de programas sociais, o segundo informa, sem nenhum constrangimento, que foram economizados recursos para redirecioná-los a projetos em ano de eleição. Somente o Ministério da Saúde deixou de utilizar 1,9 bilhão de reais em 2001 ? a fim de, ao longo deste ano, promover a candidatura do próprio ministro.

Quantas vidas deixaram de ser salvas e quantos sofrimentos foram prolongados, por conta da "economia" eleitoreira? Trata-se da confissão de crimes, no mínimo, por negligência. Que projetos e que aplicações o Ministério da Saúde deixou de executar? Cirurgias terão sido adiadas? Equipamentos indispensáveis foram transformados em desnecessários?

No banco dos réus (ou dos reis)

Indagações como as acima formuladas, a grande mídia não as faz. Isto é grave, porque a torna, pelo menos, conivente. O que fica claramente posto nas duas notícias é a relação estratégica que vinga entre o cenário da política e o balcão de negócios, sob o controle da ordem do capital, sem nenhuma mediação crítica, seja da população inteiramente alheia à engenharia econômico-financeira, seja da imprensa oficial, não menos ausente no papel de questionadora.

O que, entretanto, mais causa estarrecimento é o fato de que, para o caso americano, o Jornal do Brasil (6/2/02) fez editorial com chamada em primeira página ("A face real do poder americano"). Para o segundo caso, deram-se páginas de matéria. Nenhuma opinião, nenhum comentário, nada, além do bem-comportado e discreto silêncio, no melhor estilo da elegância britânica. Que imprensa! Pobre país…

É preciso lembrar que, com todo o acerto a existir entre a imprensa americana e governo, lá há margem bastante larga para o exercício explícito da crítica. Não foram poucas as matérias jornalísticas a questionarem o orçamento dos EUA. Vários artigos no The New York Times e no The Washington Post pontuaram as implicações de tais verbas. Assim, porém, não atua a grande imprensa brasileira. Esta apenas fareja o denuncismo consentido. Incomoda quando tem aliados mais fortes que se apresentam para bancar a denúncia. Isto é ainda mais grave.

A orfandade da política

Não é apenas a grande imprensa brasileira a viver do que lhe ditam os "grandes senhores". Também a política passa por igual submissão. Perdeu-se a autonomia decisória. Com ela, se foi a democracia. Não está, pois, equivocado o ensaísta espanhol Manuel Castells ao reconhecer, em A necessidade de representação, artigo publicado no caderno Mais! (Folha de S.Paulo, 27/1/02), o desafio por que passa o Ocidente quanto a que caminhos tomar: reconhecer a democracia como mero deleite para reflexão ou reinventar para ela uma prática ajustada aos conflitos dos novos tempos.

Claro está que o elemento perturbador a atravancar o curso das águas no rio da democracia se deve à subserviência que, principalmente nas últimas três décadas, a política se permitiu, ao fazer-se refém dos interesses do capital, seja na forma de financiamentos para campanhas eleitorais, seja na dotação de orçamentos governamentais, sem falar na invasão da publicidade e do marketing como promotores do "estelionato político", transformando políticos em "modelitos". A contaminação é irreversível. A política foi "midiatizada". O que hoje resta é a "cultura da fofoca". Quem falou mal de quem… Quem foi visto jantando com quem… Fulaninho disse que… Idéias? Plataformas concretas? Posturas claras quanto a assuntos polêmicos? Nada. Todos fogem da raia, sob a ameaça de perda de votos. O que sobra são as migalhas do cotidiano revestidas de sensacionalismo para manter a "novela" no ar. Debates vigorosos e construções ideológicas são "ilusões perdidas" como bem antes as perdera Balzac.

Quem, no entanto, melhor resumiu a face pífia da política oficial foi o secretário de Estado americano, Colin Powell, quando, recentemente, sem o menor pudor, declarou que "os EUA vão combater a pobreza para acabar com terror". Deduz-se: a pobreza em si não seria meritória de maiores preocupações, salvo se a ela atrelado estiver o terrorismo. Simples e direto. É isto. A política oficial serve para assegurar a multiplicação da riqueza de quem já a possui e administrar a pobreza de quem sempre haverá de tê-la. E fim.

E o Império?

Para variar, a imprensa oficial adora fabricar notícias, destacando o banal e valorizando o que pouco ou nada de valor em si haveria para tal. Assim, uma vez mais se deu por conta do lançamento, no ano passado, do livro Império, de Antonio Negri e Michael Hardt e, recentemente, pela vinda do inexpressivo co-autor americano ao Brasil. Com sua estampa de atorzinho da Broadway, Hardt andou distribuindo entrevistas para falar o óbvio, não bastasse a obviedade que atravessa o alentado livro. Quem é leitor habitual de Eric Hobsbawm, Alvin Toffler, Noam Chomsky, Pierre Bourdieu, Alain Touraine e Paul Kennedy nada teve a aprender com as centenas de páginas do mencionado livro. Quanto à configuração sistêmica proposta como "império", nada de novo, menos ainda para este humilde articulista que, sobre tal temática, publicou dois ensaios ("O poder e suas máscaras", na revista Cadernos Facha 1, em setembro 1993, e "As macroáreas do poder", na revista Cadernos Facha 2, em março de 1995). A referência serve apenas de suporte para o que vou arrematar.

O processo econômico liberal se estruturou no Ocidente sob a alavanca do progresso industrial. Isto está formulado na vertente iluminista inglesa capitaneada por Adam Smith. O amadurecimento de tal concepção redunda na instalação, durante a segunda metade do século 20, das megacorporações do capital que, lentamente, foram loteando e sitiando a política pela conjunção de seis "macroáreas" que, reunidas, integram o real poder: indústria armamentista, indústria extrativista, indústria tecnológico-científica, ordem financeira mundial, instituição religiosa e indústria cultural. Ora irmanadas, ora em conflito de interesses, as macroáreas ditam e financiam os "projetos políticos", além da intervenção (nem sempre indesejada) de um "estado paralelo", sob a face nebulosa do "crime organizado".

Compreendido o enredamento acima formulado, deduz-se o estreitamento progressivo a que ficou relegada a democracia ocidental. Imaginar que a rede possa ser desfeita é padecer de ingenuidade crônica. Fato recente ainda mais ilustra a questão. Dois fóruns, marcados por interesses e focos antagônicos, discutiram, expuseram e, por fim, nada. O Jornal do Brasil assim noticiou na primeira página (6/2/02): "Fóruns chegam ao fim sem apontar saídas". Seja o de Nova York, seja o de Porto Alegre, o fato é que tudo caminha de acordo com o traçado pelos desígnios do sombrio capital.

Em síntese, a atuação política oficial e a atividade midiática vão-se rendendo ao enredamento que, cada vez mais, transforma a experiência da democracia num espasmo agônico de algo belo prometido lá no nascedouro da desgastada modernidade. Mas isto pode ser conversa para um outro artigo.

(*) Professor de Teoria da Comunicação, ensaísta, mestre em Literatura Comparada e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ. Participante do programa Letras & Mídias, exibido mensalmente pela UTV