SEMINÁRIO VEIGA DE ALMEIDA
Alda de Almeida (*)
Um interessante artigo sobre cinema publicado no JB chamou minha atenção justamente pela abertura inusitada. A autora começava relatando suas angústias sobre "como iniciar um texto". Pelo lead, ora direis! Mas, e quando não existe uma abertura clássica (caso do artigo, comentário, crônica)? É ai que nos deparamos com a tirania da folha de papel em branco. Ou na versão atualizada para o século 21, com a tela do computador em branco.
As reflexões sobre o papel e a tela em branco levaram-me direto ao tema central deste artigo: a interferência das novas tecnologias no fazer jornalístico. Principalmente a internet, com a sua concentração de agências fornecedoras de notícias, sítios "informativos" e facilidades de acesso às fontes que substituem o contato direto entre estas e os jornalistas (o correio eletrônico, por exemplo). Esses recursos vêm afetando principalmente a reportagem, coração e alma do jornalismo, o que, fatalmente, acabará por comprometer a credibilidade dos próprios veículos.
No desdobrar deste artigo tentarei demonstrar algumas das mudanças no processo de apuração, produção e veiculação da notícia e da informação, a partir das facilidades trazidas pelas tecnologias da era digital, e apontar alguns dos principais problemas apresentados por esse novo modelo que vem ganhando corpo nas redações.
O primeiro aspecto, e um dos mais problemáticos, consiste no uso excessivo de notícias e "reportagens" que têm origem em agências. Com a internet, as agências estrangeiras ampliaram o acesso e a velocidade de repasse das informações e muitos veículos transformaram-se em serviços on-line. A prática de entrar na rede e retirar informações para fazer uma "matéria", sem sair da redação para apurar os fatos, é cada vez mais comum.
Como quase todos os veículos têm acesso às mesmas agências (portanto, às mesmas informações), acaba acontecendo um fenômeno conhecido como "circularidade", quando toda a mídia trata dos mesmos assuntos, e ainda uma espécie de "pasteurização", quando estes são retratados a partir dos mesmos enfoques. Vale destacar que os erros de cobertura ? e eles são cada vez mais freqüentes ? acabam repetidos por jornais, redes de televisão e rádios.
O melhor exemplo dessa substituição gradativa da reportagem própria por matérias compradas de agências está no noticiário internacional. Qualquer leitor atento dos jornais e revistas já percebeu que nas editorias internacionais imperam as matérias "assinadas" por agências. É cada vez menor o número de correspondentes e enviados especiais. O exemplo mais gritante dos danos causados à credibilidade dos veículos por esse modelo foi o golpe frustrado na Venezuela, no início deste ano.
A mídia brasileira, sem nenhuma honrosa exceção perceptível, seguiu o noticiário das agências norte-americanas, principalmente AP e CNN, e noticiou fartamente a deposição do presidente Hugo Chávez como fruto da pressão popular. Mas em 24 horas o cenário mudou. Os fatos mostraram que a Venezuela havia sido palco de um golpe de estado, liderado por empresários locais, apoiados por segmentos das camadas médias, com participação ativa do governo norte-americano através da embaixada em Caracas, da CIA e até das Forças Armadas. A população dos muitos bairros pobres de Caracas foi às ruas exigir, de forma contundente, a volta ao poder do presidente eleito pelo voto direto.
As emissoras de rádio e tevê e os jornais puderam consertar o erro com mais facilidade, já as revistas (principalmente Veja e Época) que dedicaram as reportagens de capa a comemorar a queda do governante "populista" Hugo Chávez, sofreram a humilhação de praticamente chegar às bancas já envelhecidas e pior, com uma cobertura mentirosa dos fatos. Erros como esse acarretam uma enorme perda de credibilidade por parte da imprensa.
O combustível da notícia
Mas o fenômeno de "terceirização" da reportagem não se restringe aos acontecimentos internacionais. Recentemente, o Jornal do Brasil fechou várias sucursais, inclusive a de São Paulo, e está usando a cobertura da Agência Folha. É evidente a intenção do jornal carioca de reduzir custos. O leitor paga o preço. É obrigado a ler o diário paulista por tabela e ainda a enfrentar o relato dos fatos nacionais feito a partir do umbigo do Brasil: São Paulo. Para usar um jargão dos "coleguinhas", nunca se "chupou" tanto o trabalho alheio, sem cerimônia, muitas vezes sem sequer dar o crédito. Para quem não sabe e antes que ponham maldade, o verbo "chupar" em jornalismo designa o ato de se apropriar de uma matéria ou informação de terceiros, sem se preocupar em checar a veracidade e a origem do fato.
Na avaliação das empresas, a reportagem sai cara. É preciso pagar os salários do repórter e do repórter fotográfico, além das despesas com carro, motorista e infra-estrutura (sala, telefones, computadores, secretária, boy etc.), e o momento é de cortar custos. As empresas de comunicação fizeram empréstimos altos em dólar na última década, justamente para modernizar (leia-se informatizar) os processos de captação e veiculação de notícias e informações. Com as sucessivas crises internacionais e a desvalorização cambial, as dívidas tornaram-se cada vez maiores e difíceis de saldar. Some-se a esse quadro a alta do preço do papel, que subiu mais de 150% em dois anos, afetando principalmente jornais e revistas.
Outra forma cada vez mais comum de assassinar a reportagem no cotidiano da mídia é fazer "matéria" a partir da redação. A metodologia é simples. O "repórter" fica encarregado de acompanhar o assunto no online de outros jornais e agências e vai "colecionando" as informações. Se tiver alguma dúvida, entra em um ou outro sítio de pesquisa para se informar melhor sobre o tema. Por fim, telefona para duas ou três fontes para "repercutir" (o verbo é usado erradamente no sentido de recolher depoimentos sobre fatos ou falas de terceiros) as informações e temos uma "reportagem" pronta para ser publicada, sem que o autor, ou qualquer outro jornalista, tenha colocado o pé na rua.
As vantagens para o veículo são evidentes: maior produção a um custo menor. A economia começa no fato de que, como o repórter não vai à rua, não gera despesas adicionais. Entretanto existe ainda a questão do "volume" de material produzido. Trabalhando a partir da redação, o mesmo jornalista pode fazer várias "matérias", quando, em geral, apurando na rua ele consegue produzir apenas uma ou duas, conforme o grau de complexidade.
A perda de qualidade gerada pelo uso abusivo desse modelo de reportagem é evidente, mas vale citar o jornalista Clóvis Rossi na apresentação do livro A aventura da reportagem, de Ricardo Kotscho e Gilberto Dimenstein: "Que me desculpem Vinícius de Moraes, os editores e redatores, mas repórter é fundamental… Jornalismo, por isso, só vale a pena pela sensação de se poder ser testemunha ocular da história. E a história ocorre sempre na rua, nunca numa redação." Uma observação do jornalista Luciano de Moraes, em artigo sobre a pauta, mostra que a atividade dos repórteres na rua funciona ainda como uma espécie de "oxigênio" para os veículos. "Os repórteres, muitas vezes, auxiliam diretamente o trabalho do pauteiro fazendo propostas de pauta. São os repórteres que estão na rua, são eles que vivem a emoção da notícia, que têm contato com as fontes, portanto eles são também ricas fontes de informação para os pauteiros." A recomendação de Luciano ? já falecido ? continua mais viva do que nunca. E vem de um pauteiro, certamente um dos mais brilhantes do Rio de Janeiro, que cultivava o hábito saudável de pedir um carro da reportagem depois do expediente para passear pela cidade. Ele sabia que assim, na rua, recolheria ingredientes para a pauta do dia seguinte. Gastava-se gasolina, mas gerava-se outro tipo de combustível: notícia.
Espetáculo e consumo
Os atuais tropeços da imprensa no quesito reportagem apontam diretamente para a morte de um dos mais importantes cânones do jornalismo, senão o mais importante: o jornalista deve fazer uma rigorosa apuração dos fatos, estabelecendo relações entre eles e com os processos culturais, históricos e políticos.
O fenômeno de substituição da reportagem por material produzido dentro das redações afeta também as rádios e emissoras de televisão. O uso das novas tecnologias no rádio já foi analisado anteriormente no artigo "Notícia não é salsicha", publicado no livro Desafios do rádio no século 21, mas vale destacar que a utilização excessiva de notas redigidas a partir de material retirado da internet e de "sonoras", também apuradas e produzidas a partir da mesma fonte, em substituição ao material apurado na rua, ao vivo ou gravado, representa um real empobrecimento do radiojornalismo. Ao abrir mão do relato ao vivo e em tempo real dos acontecimentos ? sua principal característica ? o rádio abre mão da própria história. E não me venham dizer que as entrevistas ao vivo, feitas por telefone pelo apresentador, substituem o trabalho do repórter. Ao telefone, o entrevistado diz o que quer e como quer. Não há edição; no máximo interrupção.
Os exemplos do papel do rádio na história do país são muitos, entretanto vou citar apenas três: a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, que mobilizou voluntários contra o governo de Getúlio Vargas; a Cadeia da Legalidade, em 1961, liderada pelo então deputado federal Leonel Brizola a partir da Rádio Guaíba, em Porto Alegre, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros; e, em 1982, o caso Proconsult, nas eleições para governador do Estado do Rio, em que a apuração paralela da Rádio Jornal do Brasil desmontou um esquema para favorecer o candidato do PDS, partido do regime militar. A Rádio JB gastou dinheiro na contratação de repórteres e estagiários encarregados de recolher os dados dos mapas de apuração, mas recebeu em troca um título de enorme liquidez: credibilidade.
Para terminar, gostaria de destacar que a entrevista, outro formato de grande credibilidade, também sofre sérios danos com o uso ilimitado das novas tecnologias, em especial nos veículos impressos. Um dos maiores problemas é o abuso do correio eletrônico. O repórter entra em contato com o entrevistado e combina de mandar a ele as perguntas por internet que serão respondidas e repassadas de volta, pelo mesmo caminho. Chamou a minha atenção em especial uma entrevista com o prefeito César Maia publicada no JB. Respirei aliviada porque o texto deixava claro que a entrevista fora feita através de correio eletrônico, mas esse detalhe não bastou para calar a pergunta que ficou martelando meu cérebro: quem garante que César Maia respondeu as perguntas? Quem garante que o prefeito não entregou as perguntas a um assessor e o mandou respondê-las?
A perda de credibilidade não é o único problema deste método novo de fazer entrevistas. Ele apresenta outros problemas fundamentais. Por exemplo, quebra completamente a dinâmica desse formato, ao eliminar a possibilidade de interferência do repórter no decorrer da conversa. Impede o surgimento de novas e, na maioria das vezes importantes, perguntas que podem levar a um "furo" de reportagem. A entrevista à distância impede ainda que o repórter perceba outros aspectos relevantes: o entrevistado foi grosseiro? Negou-se a responder alguma das perguntas? Estava nervoso ou tranqüilo? Estes ingredientes, embora subjetivos, certamente ajudam a compor uma boa matéria.
As observações contidas neste artigo são fruto do acompanhamento do trabalho da mídia no dia-a-dia, uma atividade comum a qualquer jornalista e professor de Comunicação. Se não são definitivas, revelam pelo menos uma tendência. Neste momento, nada é definitivo em jornalismo. Ainda estamos em fase de adequação aos novos padrões e paradigmas que se estão estabelecendo com a chegada da era digital, com a substituição do real pelo virtual. O mais importante hoje no jornalismo é perceber até que ponto esses novos métodos de trabalho afetam a credibilidade da mídia. Sem credibilidade não há jornalismo, restando-nos apenas o espetáculo e o consumo.
(*) Jornalista e professora universitária